terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A EXPECTÁVEL VIRTUDE DA IGNORÂNCIA


Popularidade é o primo distante do prestígio.
Alejandro Iñarruti

E a sétima arte encerrou a sua 87a. edição, nos princípios do Ano da Cabra, premiando Birdman. Como tudo na vida, é uma escolha, mas uma escolha baseada numa opção que é a de que, em cinema, a principal regra é não ter regra. Isto é, a que melhor se adequa ao que se deseja registar.
Recordo-me como, nos meus tempos de estudante, seria impossível congeminar o tempo futuro e as tecnologias que a ele hoje presidem. Todos os vaticínios falharam.
Nesse tempo, ainda não se tinham inventado os pixels e a cassete áudio começava a sua incursão no mundo da música, competindo com os long plays e EPs de vinil.
Curiosamente, de volta ao filme premiado, este é da autoria de um latino, o mexicano Alejandro González Iñarritu, autor de outros títulos, entre os quais 21 gramas e Babel.
O interesse desta história (Birdman) não está meramente na decadência que o tempo traz aos heróis, verdadeiros ou fictícios. O filme transpira um olhar sobre si próprio e algumas das contradições ou perversidades que ele contém no que respeita não ao tempo do fotograma, mas àquele outro que atravessa os homens, transformando-os em outros, sombras ou amplificações do que foram.
É admissível aqui que o narcisismo persista, decrépito, no lodo do tempo e dos ritos que conduzem aos mais diversos conflitos inspirados pela solitária nostalgia de Michael Keaton, outrora super-herói, cuja memória lhe obscurece o tempo real e dá o mote à narrativa.
Do mesmo modo, e tomando o filme por paralelo, as cidades e os seres que as habitam tornam-se pólos de conflito quando o tempo atravessa o seu inusitado e desmedido crescimento.
Essa desmesura, quando ocorre, faz emergir não a virtude da ignorância, mas antes a sua condição e essência, isto é, não se saber que não se sabe.
É uma circunstância em tudo idêntica à edificação de uma metáfora do inferno, quando este significa a ausência da divindade que confere o conhecimento. Aí, então, tudo decai e se mumifica, imutável numa desmedida busca inconsequente do sentido das coisas, que apenas existem na imaginação que lhes procura dar forma, imaginação alimentada pela ausência de saber e conhecimento, porém nutrida por uma ilusão de felicidade.
Assim nasce a fantasia, entre o absurdo, o patético e o horrendo, fachadas e cenários de vidas despidas de outro sentido que não seja o da mais pura vocação materialista.
Esta a origem de toda a indiferença face a quaisquer outros cenários, que não os do lucro, num guião por demais conhecido.
Sucede porém que, nesta desesperança para a maioria dos figurantes desta longuíssima metragem chamada Macau, emerge um personagem de nome Alexis, homónimo de um outro, mediterrânico, que rasgando a tela transmuta o filme em realidade, luzes da sala acesas, e no dia primeiro do Ano Novo da Cabra veio dizer ao público que havia figurantes excessivos, afogando o guião desta nossa realidade, e que, assim sendo, era necessário resgatar a cidade e devolvê-la aos cidadãos.
Os trabalhos que esperam o nosso Alexis são tão hercúleos quanto os do grego, diferindo apenas nos orçamentos.
Perante os desideratos de Alexis Tam, do seu pelouro e do cruzamento com outros, espera a população que se tomem por padrões os internacionais, em tudo. Melhor dizendo, na Educação, na Cultura, na Saúde, nos Transportes, na Segurança, na Habitação, numa Economia saudável, eliminando os filmes de terror.
A ajuizar pelas acções já desenvolvidas, como a velocidade com que já se encontram em fase de contratação de meio milhar de médicos para a saúde e outros trabalhos, acabo por admitir seriamente que, a este saudável ritmo, Macau poderá em 2020 ganhar o Óscar da melhor realização por ser, finalmente, um qualificado Centro Mundial de Turismo e Lazer, e para o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura a distinção de melhor realizador.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

INSUBMISSOS


Aqui, neste arrabalde do Universo, no sistema solar de uma modesta estrela da periferia de lado nenhum, temos muitas vezes o atrevimento de esquecer.
Olvidar é esquecer de um modo radicalmente definitivo. É o ostracizar da Memória de uma raça, a humana, que, ainda em formação, se esquece e se vem esquecendo de si mesma. 
O olvido parece, assim, fazer parte da espécie que somos, reduzindo a maioria a uma amorfa massa funcionando na manada do conformismo.
E neste pequeno planeta que habitamos, aqui é ali e o inverso também, e uma manada dali é igual à que por aqui se deixa conduzir, tudo neste recanto chamado Terra.
A manada remói sob a sapata do conformismo, da opressão e, consequentemente, da submissão. É a conformação ao que fica decidido, é a renúncia à dignidade do livre arbítrio, onde se não vislumbra um assomo de desobediência. Apenas e, quando muito, a maledicência, a insubordinação dos submetidos.
A inteligência é, em si, não um mero atributo, mas um imperativo para a dignificação do homem e da sua existência. 
A inteligência é a chave que interpela o presente, o analisa e interroga, e recusa a sujeição, tanto aos poderes oligárquicos, edifícios pouco edificantes que dominam a seu gosto e capricho, como a todos os pedantes frequentadores.
É nesta situação que o meu país se encontra, e que, conformado, obediente e manso, submisso se submete ao processo de exaurir compariotas – à maneira dos prebostes – que mesmo protestando, se encontram exangues, desempregados, a um passo da morte.
Sucede porém que, quando a inteligência se não acoita e interroga, nascem os insubmissos, incómodos seres tresmalhados que ousam. E na sua ousadia se confirma a rebeldia do agir, consequência do acto pensado, e assim se confessam, confissões extremadas mas em postura lúcida, culta, humana e igualitária.
No velho Continente, a Grécia ressurge da humilhação, indómita, voltada para, como em Termópilas, liquidar todos os Xerxes de hoje, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Montetário Internacional. 
A Grécia, comandada por Alexis Tsipras e Yaris Varoufakis, emerge com vontade indomável de, dizendo basta, renegociar a evidência insolúvel da dívida, usura dos gigantes. A Grécia, tendo dado miticamente o nome ao continente, quer demonstrar à evidência que o poder só pode quando há manadas, quer demonstrar que a inteligência é, assim, mais poderosa que os Ciclopes. A Grécia quer, finalmente, demonstrar que a fragilidade é, em muitos casos, a grande força, quando a razão comanda. 
Isto dito, resta olhar para o que pelo meu país vai imoralmente acontecendo.
Por tudo isto, é fundamental que se opere o resgate da Memória. Para que não se abata novamente o olvido.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

CIDADE E ORDEM


Não sei o conceito que os diversos poderes que se sentaram em Macau ao longo das últimas décadas tinham sobre esta extrema complexidade chamada cidade. Em alguns vislumbrei ideias claras, noutros algumas orientações e, noutros ainda, a ilegibilidade total.
Nunca será demais dizer que uma cidade não é apenas um aglomerado de ruas, casas, planos urbanos. A cidade é um organismo, uma teia holistica onde se jogam esperanças e se edifica o palco para todos os sonhos.
Citarei aqui Helder Pacheco sobre o seu, e também um pouco meu, Porto:
"O Porto, cidade, somos nós, as pessoas, mais a nossa cultura (que a construiu e lhe deu sentido). A cidade somos nós, com a memória que dela mantemos e a asa de futuro que queremos para ela. A cidade é um grande, um vasto objecto das emoções, dos sonhos, ternuras e desperos que fazem a vida.
Lugar onde nascemos ou vivemos, a cidade também nos constrói e nos dá sentido, e, por isso, deveria ser cuidada, reutilizada, construída (e renovada) quotidianamente, com amor."
O mais interessante é que estes dois parágrafos foram retirados da parede de um café, na Baixa Portuense. Nesse lugar poético bebe-se café e olha-se o pequeno texto escrito, a relembrar aquilo que cada um é. Cultura é isto também, distinta de erudição.
Não será pois, demais, repetir que a cidade é um corpo vivo, pulsante e cuja principal prioridade é uma, os seus cidadãos. O poder deve ter apenas em mente uma coisa: servir, dialogar, ouvir, sobretudo aquelas outras vozes silentes.
O evoluir de uma cidade é o produto de uma reflexão, da existência de um corpo de ideias a que se poderia chamar -  e porque não - de uma ideologia para a cidadania.
Uma cidade não é um vazadouro nem o empilhamento de diversos casos caóticos. De uma cidade digna desse nome espera-se capacidade de ordenar, isto é, pôr em ordem. 
Em Macau, ordenar é preciso, porquanto as imensas moles humanas que invadem a cidade são um atentado contra os direitos mais elementares dos seus habitantes. Ordenar significa arrumar, dispor, organizar e exercer princípios de autoridade com vista à eficiência.
Uma cidade não é um campo de deferências, mas antes de diálogos transparentes e eficazes. Uma cidade é, obrigatoriamente, um terreiro de igualdades convergindo para a excelência e para o bem dos seus habitantes.
Nos tempos que correm da sociedade da informação, não existem mais os álibis etno-culturais. Todos sabem gostar dos melhores carros, de relógios fulgentes e, alguns, da ostentação que substitui o que lhes falta em outros domínios.
E sob a luz desta ausência de álibis não pode existir a indiferença, antes a imperativa exigência da solidariedade actuante, o exercício da ordem e do poder cívico contra todas as formas de discriminação, cárcere privado, extorsão, ameaça, contra o que à cidade e aos que a governam deve ser o bem mais precioso: os cidadãos que a habitam.
As cidades transportam história e estórias. Possuem, detentoras dos vários compassos do tempo, a dignidade que é imperativo que seja respeitada, porque se se invoca o patriotismo para algumas situações, invocarei eu a cidadania para todas as realidades que dizem respeito à cidade.
E falando em cidades, ocorrem-me Lisboa e o Porto. Lisboa do céu azul, para onde desaguam gentes de tantos lados e canoas no Tejo, e o Porto, essa outra dignidade de cantaria, esse orgulho que os cidadãos dela têm, nas pontes, nesse "velho casario que se estende até ao mar, da Ribeira até à Foz", e a todos os lugares onde, orgulhosas, se erguem igrejas, a torre dos Clérigos, a Câmara e a Praça da Liberdade. Mais além, subindo Santa Catarina, os cafés com esplanadas assegurando o pedonal, onde se sente a cidadania no olhar franzido do cidadão que olha o transgressor que infringe as leis do civismo.
Há nisto tudo uma respiração que subsiste e persiste, apesar da crise, porque a cidadania é uma consciência, não uma conta bancária.
Porto, também classificada Património Mundial da Humanidade pela Unesco, assim como Lisboa, são modelos singulares de cultura citadina.
Hoje existem padrões tão comuns de comportamentos culturais e cívicos, que os mesmos estão condenados a serem semelhantes em todo o mundo.
Isto é, um táxi é um táxi em qualquer lado, e tem de agir como mandam as normas. Uma Polícia deve ser igual em todo o lado. O seu princípio é o da protecção e não o de punição. Uma economia regulada é-o igualmente em todo o mundo. E a inflacção desregulada é-o universalmente, bem como as ilacções que daí se extraem. Uma transgressão é-o aqui como em toda a parte, tanto quanto um sorriso é universal. Nada distingue semelhanças senão a geografia.
Assim sendo, a qualidade de vida de uma cidade depende dos seus planificadores, depende da qualidade do Ensino desde a infância, depende não de rituais, já mais ou menos despojados de significado, nem de mesuras, mas do contínuo exercício de igualdades e inteligências.
A democracia não é o voto nem a sua caça. A democracia é a distribuição equitativa do conhecimento, do trabalho, da acessibilidade à habitação, do direito à saúde, ao ensino, ao transporte, à qualidade de vida, à inclusão por oposição à exclusão. A democracia não é uma feira nem um manifesto, mas uma maturidade.
A cidadania, por seu lado, não precisa de recorrer à política mas sim à polis para que, conjuntamente com a ética e a moral, possa construir para a urbe um devir onde a qualidade de vida se paute, ela também, pelos ditos princípios universais.
As fotografias que se juntam a estas palavras são do Porto enquanto cidade, corpo de cultura, simultaneamente monumental e humilde, antiga e bela - geminada com Macau desde os anos 1990 - e servem para ilustrar o cenário de uma plenitude urbana, num país em crise económica. Porque a abundância traz riscos, como a constatação "pobres deles, só têm dinheiro!".

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A CRIATIVIDADE E A SOCIEDADE CIVIL

Legado latino a uma larguíssima faixa da humanidade, a palavra societas, "associação ou convívio amistoso com outros, que partilham gostos, intenções, hábitos e preocupações, interagindo entre si", mantém-se actual, sobretudo nas sociedades cujo florescimento material é de natureza recente, atributo que anuncia o novo-riquismo como característica de um significativo sector da população ou, melhor dizendo, da sociedade.
O caso de Macau é disto paradigmático, na radical transformação epidérmica, física e social.
A sua economia disparou para níveis nunca antes atingidos, face ao aumento substancial das receitas da sua maior indústria. Resumidamente, concentraram-se os ovos todos numa só cesta, ficando alguns poucos de fora para a construção civil e o inevitável imobiliário do dinheiro rápido.
Natural, pois, que face a uma abundância superlativa, passe a redundância e o arremedo de pleonasmo, operou-se uma como que cristalização das potencialidades que a cidade sempre teve, sobretudo para consigo mesma.
Recentemente, surgiram novas dinâmicas, das quais é de destacar a das Indústrias Criativas. Vale a pena referenciar, desde logo, que as mesmas são primeiro que tudo um Conceito e que quase toda a sua "listagem" é pré-existente à formulação do conceito.
A liberdade de exercitar o pensamento, a exploração, a indagação e a investigação são de grande importância, para citar John Howkins, nas economias que se desejam criativas, o que pressupõe também abundantes reflexões sobre o modo como estas podem coexistir com outras de extraordinário peso e arcaboiço.
Sucede que Macau é proprietária de uma condição paradoxal: possui uma área física diminuta, mas, por ser assim, possui as condições ideais para se tornar uma cidade-piloto, um centro de inteligência que permita torná-la numa ou em várias plataformas.
Mas isso implicaria que o conceito das Indústrias Criativas e Culturais fosse entendido, no caso de Macau, como uma economia criativa de exportação, face à exiguidade do mercado do território e à natureza específica do tema: Indústrias.
É interessante compreender que a dimensão de Macau a vocaciona incontornavelmente para o exterior. Porém, à partida, faltam-lhe instrumentos para o fazer.
Há muitos anos venho dizendo o quão fundamental é facultar à população em geral, e aos vários tipos de projectos comerciais e industriais em particular, a possibilidade de acederem ao comércio electrónico. Persiste porém, teimosamente, o paradoxo de, na cidade onde circulam milhares de milhões, os bancos não disponibilizarem comércio electrónico, na forma de Merchant's Accounts, nem se saber se existe a intenção de oferecer de uma forma equiparada a outras abundâncias, alojamentos para sítios digitais, porquanto é negócio virtual, não requerendo assim tanto espaço quanto se suporia, trazendo igualmente suporte local para os alojamentos domésticos.
No que concerne propriamente às Indústrias Criativas e Culturais, creio ser melhor assinalar a importância do estudo do pensamento de John Howkins do que proceder à sua categorização que, como a pescada, já o eram antes de serem. Refiro-me à definição clássica de Howkins: a Arquitectura, Arte, Artes Performativas, Antiguidades, Brinquedos, Cinema, Design Gráfico, Design de Moda, Edições, Fotografia, Jogos de Consolas, Música, Publicidade, Rádio e Televisão.
O panorama é vasto, mas o instinto diz-me que, a haver intenção de tocar todos os instrumentos no começo, resultará numa fragmentação de esforços e energias, além de ser conveniente lembrar, uma vez mais, que a indústria é sempre uma produção massificada que, regra geral, implica uma ou mais linhas de montagem, como o Cinema, as Edições, a Moda, a Rádio e a Televisão.
Por outras palavras, é aconselhável que se proceda à prudente criação de alguns núcleos ou incubadoras no sentido de testar a sua viabilidade.
É que, faço questão de acentuar, falamos destas indústrias como algo que se pretende seja uma das alternativas económicas à principal indústria do território, e não simples exercícios de respeitáveis diletantes.
À priori, parece-me importante privilegiar, potenciando, o que já existe de mais construído e próximo da indústria. Refiro-me à produção de conteúdos de interesse internacional por autores locais quer a nível de documentários quer, ainda, a nível de séries televisivas. A criação de uma Editora de Música agindo directamente no ciberespaço também parece ser um nicho interessante, bem como a criação de Rádios digitais alternativas, sendo estas áreas potenciais rampas de lançamento para voos mais altos.
Do mesmo modo, foi há bem pouco tempo apresentada na TDM uma interessante reportagem sobre  a indústria de Jogos de Consola que factura 100 mil milhões de USD por ano. Seria excelente que em Macau se captassem investimentos e know how para a produção digital de conteúdos. E que se ensinasse CGI - Computer Graphics Imagery, gama de ilustrações digitais que se encontram em filmes, em jogos de computador e em ilustrações modeladas, conhecidas também por 3D.
No que toca às Artes, a Kulturindustrie parece ser uma das áreas que mais aderentes tem, pela esperança no chamado sucesso que existe sempre que o verdadeiro talento se manifesta, sendo instantaneamente reconhecido. Por definição, “talentorefere-se a pessoas inteligentes ou adequadas para determinada ocupação. Inteligentes, no sentido de que entendem e possuem a capacidade de resolver os problemas, visto terem a experiência e competências necessárias para tal e, ou ainda, aptidão para operar com competência uma actividade face à sua capacidade para o bom desempenho do objectivo (Dicionário Wikipedia.)
Estamos então a falar na Cidade Criativa, que é não só um novo contrato social mas também um método de planificação estratégica, examinando e estimulando o modo como as pessoas podem pensar, planear e agir criativamente na cidade. Em suma, é a instalação do diálogo pleno com vista a conduzir a uma compreensão sobre a maneira como se pode humanizar e revitalizar as cidades tornando-as mais produtivas e eficientes, recuperando o talento e a imaginação dos cidadãos.
Daí que a premissa elementar para a emergência de uma Cidade Criativa é não apenas a configuração da Urbe vocacionada para esse desiderato, mas também a implementação da cultura, também enquanto instrumento educativo.
Assim, o que na essência distingue o conceito da Cidade Criativa é a eleição da cultura como elemento fundamental para algo que é de importância vital: a visão esclarecida que a cultura, no seu entendimento globalizante, necessariamente confere.
Há novas formas de criação de empregos, de valorização do ócio no seu significado original, de desburocratização e informalismo que ajudam a conduzir a um maior sentido de pertença, a uma percepção exacta do lugar de cada um na estrutura social, de garantias de continuidade, de segurança e previsibilidade social, conjugadas com a possibilidade de usufruir facilidades urbanas, interacção, ludismo e, acima de tudo, criatividade.
Por outro lado, é imperativo que o conceito de governação, que se preocupa com o papel comportamental das hierarquias, se transmute em estruturas mais horizontais, com partilha de responsabilidades entre governo e instituições da sociedade civil, estruturas decorrentes de sociedades de capital misto, mecenato, redes e mesmo organizações virtuais. Isto é, o conceito de poder terá de ser não um exercício do mesmo, na sua matriz tradicional, mas a relação dialogante assente naquela máxima de que nenhuma enciclopédia se faz com o que cada um de nós sabe individualmente, nem tão pouco se fará sem o nosso saber individual. É, mais uma vez, a convocação do contrato social a emergir como inevitável.
Só face à consciência de que as Indústrias Criativas, a Cidade Criativa, a Cultura e o diálogo com o Poder fazem parte de um todo holístico, que tem como suporte a Cidade, que rodeia o cidadão e o deve estimular a uma interacção geral construtiva, é que se poderão atingir os desideratos aqui expressos.

OS OBEDIENTES


11 de Fevereiro de 2015

A obediência tanto pode ser um acto de disciplina como de servidão.
Tudo depende de quem obedece e porque obedece. Obedecer em si não é coisa má. Todos procuramos obedecer às leis, apesar de esta ser, tradicionalmente, uma cidade de transgressões.
Sempre disse que a coexistência ou coabitação na cidade não é um registo de formalidades, deferências e mesuras. Uma existência saudável é, sempre, uma relação de igualdades.
Se o pensamento Socrático nunca por aqui se enraizou, que o conceito de filosofia é diferente por estas bandas, o Confucionismo existe apenas pela rama. Entrega-se o cartão com as mãos ambas, serve-se chá independentemente dos gostos, fala-se em público com ar manso, e o ramalhete fica composto.
Neste contexto, sinalizam-se "Os Analectos", "O Livro dos Ritos", a obra de Sima Qian, o "Tao te Qing", o "I-Qing", "O Sonho do Pavilhão Vermelho" ou os "Fora-da-lei do Pântano" como acessórios inúteis para a esmagadora maioria de uma população que cresceu em cenários de escolas com 80 alunos por classe, professores mal pagos e sem formação adequada, associadas a uma cultura de televisão que terá contribuído para que uma grande parte da população se prenda ao superficial, à busca do material em prejuízo da cultura, à adaptação a ambientes insalubres e à indiferença tão pouco solidária que redundou na falta de civismo agudizada pelo inaudito congestionamento demográfico em que vivemos.
Sucede que, inesperadamente, emerge um Executivo surpreendente no agir, a despertar esperanças várias de que, à campanha do anti-tabagismo se associe a emergência de uma geração de autocarros inteiramente ecológicos, que há já muito que o ar se tornou irrespirável, demasiado poluído e congestionado para uma cidade que se espera cosmopolita, e se quer Centro Mundial de Turismo e Lazer.
Se o fim do "rodízio" de meninas do continente no Hotel Lisboa, a primeira vaga de combate à actividade verdadeiramente criminosa, porque discriminatória e encarceradora, dos táxis  da RAEM(1), insulto à imagem de Macau, e as primeiras análises à Saúde que é dispensada ao cidadãos, são indícios de esperança para todos nós, é expectativa de todos que a dinâmica continue, nestes primeiros dias de Fevereiro.
Estou convicto que toda a população aspira por uma qualidade de vida que implique a aplicação de valores universais, tão localizáveis em Singapura como na Suíça: o direito à esplanada, o direito ao ar livre,o direito a uma qualificada lei do ruído, o direito a um trânsito devidamente planeado, o direito a uma polícia que tenha a consciência para servir, formar e operar não pelo princípio da punição mas antes pelo da protecção.
É preciso fazer dos infractores gente obediente, não por medo, mas por consciência cívica. Impõe-se dar ao cidadão a consciência de que o é. 
Impõe-se conferir à cidade a  maturidade a que tem direito.
É premente que, ao improviso, se contraponham planos claros, coerentes, porque Macau governada pelas suas gentes é sobretudo uma responsabilidade, não apenas para com os concidadãos, mas também para com o segundo sistema.
Obedecer não é coisa má, sobretudo quando o sinal é de arrumar a confusão.
E neste dar e receber, vem de novo à baila o monóxido de carbono que é de consumo diário.
Por nisso falar, fui, há tempos, estacionar numa reentrância no passeio, para cargas e descargas, que deveriam ser feitas nocturnamente. E estacionei aí à porta do supermercado, encaixando-me entre outros automóveis igualmente particulares, na manhã de um Sábado.
Andava entre as prateleiras, quando fui alertado para o facto de um polícia estar a aplicar multas. Saí, abeirei-me do polícia e perguntei-lhe se me dava uns momentos. Mostrou-se disposto a ouvir. E lá lhe fui dizendo que a cidade já tinha chegado a um ponto tal de ruptura, que não existiam condições para um cidadão estacionar. Respondeu-me que ele próprio tinha vendido o carro.
Animei-me com a esperança de que tinha encontrado um sôr agente com ideias próprias. E lá fui dizendo que isto de estacionamentos era como se nos alugassem uma casa sem quarto de banho e depois nos punissem pelas urgências naturais. Ouviu-me sempre a olhar para a frente, que olhar nos olhos seria compromisso de quem participa na conversa.
Terminei dizendo-lhe, ele que fizesse o que quisesse. Deixava isso à sua consciência.
Quando regressei das compras vi que todos os carros tinham a multa da praxe. Tinha sido em vão. Era mais um que se recusava à lógica e à evidência. Era mais um obediente. Um daqueles cujos princípios se resumem a reprimir e punir o cidadão, nunca de o proteger. Jamais vi um guarda a apitar a uma das centenas senão milhares de infracções de trânsito que ocorrem diariamente das formas mais surrealistas.
Mas pergunto-me, a culpa será deles ou antes daquela educação que receberam, oitenta alunos numa sala, a balir até à exaustão tudo aquilo que pobres professores, mal pagos, sem formação adequada, lhes afinfavam na altura?
Mas... e os outros? Os que tiveram uma educação mais esmerada e, mesmo assim, andam curvados sob o peso do interesse no lugarzinho onde ajoelham para cima e carregam para baixo?
 A cidade cresceu, o trânsito desmediu e, após largos anos, ainda se não encontrou solução para os Mercedões, os Porsche, e todo o préstito de carrões que abundam onde há novos-ricos e amantes da Hello Kitty, bem como para as carripanas de lineu comum.     
A receita seria simples. Assegurar um circuito periférico com silos de estacionamento, e toda a cidade servida por autocarros de grande qualidade.
Conduzir às horas de ponta é a suprema loucura, e esta cidade que se pretende, seja o Centro do Entretenimento e Lazer, oferece a quem cá vive, um ambiente que hesita entre a alucinação e o surreal. Esta não é, decididamente, a cidade que eu conheci. Sobretudo não havia tantos obedientes, cegos ou por conveniência. 

(1)Região Administrativa Especial de Macau