terça-feira, 12 de maio de 2015

A RAIZ E A FOLHA


"Uma folha quando cai, retorna à raiz".
Este ditado chinês é também metáfora, proponente de um percurso natural que anuncia o ciclo, isto é, o planeamento que a Natureza opera sobre si mesma. Planeamento que a ideia de cidade deveria integrar, sobretudo no século XXI.
Macau neste século é outra cidade, fruto de uma outra forma de olhar, circunscrita à sua escala, mas almejando outra dimensão. Porém, por muito que se deseje, "santos da casa não fazem milagres", tal ainda não ocorreu.
Neste mês de Maio decorrem em duas cidades de Itália dois eventos internacionais. Desde 1 de Maio a Exposição Mundial de Milão 2015 e, aberta dia 9, a Bienal de Veneza. Em plena crise europeia, duas cidades tornam-se montra do mundo, o que faz trazer à mesa das ideias a necessidade de uma retorta e de um catalizador para este velho Entreposto na costa meridional da China.
A urgente emergência de uma vontade política, decorrente da compreensão de Macau enquanto Centro de Exposições e Convenções, aposta para a diversificação económica, poderá ser simultaneamente a retorta e o catalizador para a capacidade da sua reformulação enquanto cidade case study. Olhada de fora para dentro, em diálogo de osmoses que possam operar um plano geral de ordenação, a cidade pode ser pensada com a maturidade que ela mesma requer.
Suponhamos que seria possível realizar uma Expo Ásia em Macau. Tal constituiria não apenas um desafio para todas as frentes que compõem a cidade, mas sobretudo a incontornável planificação entre o que é Património e o que, sendo novo, pode (e deve) ter qualidade.
A folha regressando à raiz requer uma reorganização sustentada da cidade, que possa ser o palco de todos os sonhos e utopias a haver, sem derrapagens, assente na mobilização de equipas internacionais de economistas, sociólogos, antropólogos, arquitectos, engenheiros, técnicos de saúde, de marketing, design, gestão, recursos humanos que ajudem a reorganizar esta pérola do delta do mesmo nome.
Porque esta cidade merece ser celebrada e, para o ser, requer o ímpeto de um leit motiv eivado de civilidade e cultura para que possam definitivamente ser estabelecidas orientações consensuais, entre quem manda e quem é especialista, numa convergência premente para reformatação do que ainda está informe e descarrilado.
A cidade precisa de know how especializado, capaz de organizar, treinar, propor e realizar.
Acresce que o gosto não é nem uma interpretação nem uma miscigenação. O gosto e a qualidade de vida são opções decorrentes da capacidade de absorção, da capacidade de conjugação da(s) cultura(s). Daí a osmose. Por isso, também, a necessidade de treino no exterior de quem tem responsabilidades de decisão, a necessidade de serem fluentes, no mínimo, em duas línguas, seja inglês ou português, porque importante a abertura das mentes ao mundo para que esta cidade não seja um lugar de alguns, mas um lugar construído por alguns para todos.
Utopia é acreditar que a cidade poderá ter uma economia diversificada, que se tornará um centro mundial de turismo e lazer, quando o que de mais básico e necessário para a qualidade de vida do cidadão está por fazer.
Há que proceder ao equilibrado resgate de tudo isto e, utopia por utopia, prefiro as que visam uma abordagem global das questões e, de forma holística, apontem as soluções.
A cidade, a primazia dos seus habitantes, merece uma utopia em nome da excelência que, sem dúvida, todos de boa fé desejam. Que todos, tal como a folha, venham trazer algo mais à raiz desta cidade.

terça-feira, 5 de maio de 2015

MEXILHÃO


Austin Coates definiu Macau à sua maneira, através do seu livro "The City of Broken Promises". Ao longo de várias décadas tenho ouvido inúmeras vezes chamá-la de "cidade de transgressões”.
A propósito de transgressões, em 1980 alguém me disse que o Governo faria muito bem se pagasse aos stands de automóveis para estes não venderem. Permaneço estupefacto com esta afirmação visionária, a consagrar os epítetos da cidade.
Se houve desgoverno, falta de visão ou o tradicional laxismo, provavelmente ninguém acreditará que alguém tenha afirmado o que citei, e na data em que o fez. Porém, a vida é feita de incredulidades, para o melhor e para o pior.
Ao longo dos anos, Macau foi assistindo a uma progressiva enchente de veículos e, consequentemente, a um pejamento das suas ruas, em termos de circulação e de estacionamento. Era inevitável, mas perante o que era mais que patente, a inércia dos responsáveis manteve-se.
Essa inércia, essa falta de capacidade de intervenção no capítulo dos transportes públicos continuou, enquanto os táxis de Macau excluíam cidadãos, buscando lucros astronómicos, num ciclo de perversidades, sem que a DSAT apresentasse solução alguma. Sem qualquer consciência cívica, foi preciso que o novo governo tomasse medidas punitivas para que essa ganância taxista enfraquecesse.
No capítulo dos transportes privados, nada se fez nem se vislumbra a restrição mais que óbvia da importação e venda de novos veículos, numa mercado saturadíssimo até ... ao passeio.
Só se pode chamar, de facto, "cidade de transgressões" quando estas, neste capítulo, perpetradas por automobilistas e por loucos condutores de motinhas, andam a par com a ausência de decisões claras e frontais.
Agora, com o anúncio de que vão retirar os passes mensais dos parques de estacionamento públicos, toma-se não apenas uma medida que convida ao maior pejamento de circulação como se retira aos seus utilizadores um direito elementar, já que em Macau nem todos os residentes dos prédios de habitação têm direito a garagem. Isto é, quem quiser que a compre ou arrende à parte, porque o apartamento não inclui necessariamente a garagem existente,  lugar para especulação, ao contrário de qualquer cidade civilizada. Mas aqui impera a lei das promessas quebradas e das intenções anunciadas.
E é nesta amarga ironia que me vejo ameaçado de ter de dizer, em nome do meu carro, à maneira de outros bocados de antigos gládios, "morituri te salutant", pensando já nos cemitérios de automóveis.
Retiraram-me qualidade de vida, poluíram o ambiente de tal maneira que perdi o direito a um aprazível passeio a pé, e agora até o pequeno espaço onde sossegadamente ainda tenho direito a estacionar o carro me querem tirar.
Macau tornou-se numa selva para o safari dos 30 milhões que nos visitam e nos confinam. Deixaram que a cidade se enchesse de um número mais que exagerado de automóveis. Três companhias de autocarros a operar quando bastaria uma, bem organizada e com veículos amigos do ambiente. O mercado automóvel, especialmente o de luxo, ri de contente, enquanto carros de serviços da Administração ocupam autoritariamente lugares fixos nos silos públicos, porque o Governo é o Governo e, podendo, usa o poder, ou pelo menos assim está patente em muitos parques, originariamente dedicados aos cidadãos.
Não sei de onde partiu a ideia de pôr fim aos passes mensais nos parques públicos que, curiosamente, não é posta à consulta pública. Esta medida ameaça lançar nas ruas de Macau ainda mais automóveis e, simultaneamente, retira um direito elementar aos cidadãos que não possuem garagem própria, impedindo-os de poderem encontrar num silo público um lugar estável e garantido. Isto, face ainda à ausência de legislação que exija que os espaços de estacionamento dos prédios habitacionais sejam prioritariamente disponibilizados aos seus residentes.
Se esta medida pretende resolver parte dos problemas de estacionamento, não o faz, e atenta contra o direito do cidadão a ter um lugar num silo público para o carro, quando não o pode usar sequer todos os dias, dada a congestão do tráfego e falta de lugar de estacionamento nos locais de destino.
Contra os direitos elementares não se deve atentar, nem fazer a população pagar pelos erros, incompetências e omissões que há décadas se acumularam. Se Macau prevê quotas para entrada de pessoas, com maior razão deveria pensar em quotas para entrada de veículos. Chamaria a tal decisão de gestão moralizadora.
Já se aventa, à maneira do jogo, tirar às sortes os passes mensais, o que significa ignorar a cuidadosa inscrição que cada utilizador fez para o obter. Será Macau também a “cidade de direitos perdidos”?
Políticas que retirem direitos ao cidadão, sobretudo quando este não tem alternativas, não são recomendáveis. Ainda mais quando, a quem compra parques de estacionamento, é autorizado alterar a sua finalidade, transformando-os em espaços comerciais.
A cada acto que o Governo pratica faz-se história. Por isso, espera-se que em vez da guilhotina ou do cilindro se encontrem soluções bem mais construtivas, como, a título de mero exemplo, construção de silos, definição de uma idade limite para os veículos automóveis, imposição de uma quota, desvio dos carros do Governo para parques próprios.
É que a imposição desta medida nada mais faz do que consagrar o velho ditado: quem perde é sempre o mexilhão (em versão politicamente correcta).