quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O BARRO E O SOPRO - ENTREVISTA A MARTA CRISTINA CARVALHO


Das artes do fogo, a cerâmica, o vidro, a joalharia,  e a cutelaria, a primeira transporta uma carga eivada a ocidente de uma ancestralidade que remonta ao Livro do Génesis e ao sopro divino.
Marta Cristina Carvalho nasceu em Coimbra, em 1964. Entre 1986 e 87 obtém um diploma de moldes para a indústria da cerâmica. No ano seguinte trabalhou na indústria cerâmica portuguesa. Entre 1988 e 1990 frequentou o curso de escultura da Escola Superior de Belas Artes do Porto.
Em 1990 lançou-se à aventura e veio para a Ásia por onde deambulou até poisar em Macau e aqui trabalhar com designer gráfica.
Em 1993 levanta âncora e viaja para o Japão onde trabalha com ceramistas nipónicos.
Em 1994-94 torna-se ceramista residente no Parque Cultural de Cerâmica de Shigaraki.
Em 1995-96, em part-time, torna-se professora convidada assistente do Departamento de Cerâmica da Universidade de Arte e Design de Kyoto.
Em 1996, apenas três anos depois de chegar a Kyoto, na região de Kansai, torna-se ceramista independente, viajando frequentemente para Macau para expôr e ensinar.

Marta, da leitura da sua resumida biografia e curriculum nota-se uma grande irrequietude até chegar ao Japão, onde já reside há 22 anos. O que é que a prendeu à prática da cerâmica no Japão?
A prática da cerâmica no Japão, para mim, quase foi como uma consequência natural de me encontrar na Ásia precisamente na altura em que, como artista, procurava o meu próprio caminho e expressão estética.
 A cerâmica sempre foi uma constante presença na minha vida, por ter nascido numa familia com ligações a essa indústria. O meu pai como geologo encontrou muitos dos existentes jazigos de matéria prima para a indústria ceramica portuguesa, e muitas vezes  me levava em trabalho de campo,onde sempre havia descobertas de muitos minerais, muitas vezes quartzos raros e outros de origem muito específica daquela zona atlântica. Desde adolescente passava os tempos livres trabalhando com esse lado da minha familia que possuia ateliers de ceramica artistica também. Quando abandonei um curso de geologia para escultura mas uma vez iniciei a cerâmica paralelamente com um curso técnico,  mas sem qualquer intenção profissional,  apenas  me era natural poder trabalhar em algum ramo da cerâmica para poder financiar por alguns anos a universidade onde estudava no Porto.
Acontece que, quando na Ásia, mais uma vez me tocou a curiosidade de conhecer novas técnicas , materiais e outras maneiras de ver a cerâmica me levou ao Japão pelo qual tinha um especial interesse.

Sendo portuguesa, e com curso de moldes de cerâmica, frequência em cerâmica industrial e curso de escultura na ESBAP, existe algum vestígio ocidental na cerâmica que faz desde que chegou ao Japão?
Começo por dizer que nunca acabei o curso da ESBAP, pois na altura algo do ambiente académico não me satisfez como artista, e senti naquela altura particular que tudo o que tinha para '' estudar'', ou procurar  como artista não precisava de ser numa coisa chamada escola.  Quanto a influências  culturais acho que é impossivel nos livrarmos da nossa cultura e das influências estéticas e emocionais do sitio que nos fez crescer.
 Como tal, e mesmo já vivendo no Japão quase há tantos anos como os que vivi em Portugal, em grande parte do meu trabalho, tenho que admitir que possuo uma visão bastante ocidental  apesar de tudo.  Quero dizer que,  mesmo nas minhas  peças de uso utilitário a componente artesanal e tecnologia de materiais, bem como a visão filosófica que os japoneses têm relativamente aos materiais usados na cerâmica, apesar de ser importante, não toma no meu caso um papel relevante ou fundamental.
De uma maneira simplista  diria que os japoneses vêem qualquer que sejam as arts and crafts no sentido: matéria-forma-estética, e o ocidente no sentido: estética-forma-matéria.
O shintoísmo religião primordial no Japão tem muito  a ver com este fenómeno em minha opinião, mas isso já é outra conversa.
Sendo a cerâmica tão vasta e complexa em termos de técnicas, materiais e possibilidades desses minerais serem transformados em algo pela mão do homem, artista ou artesão, acabei por perceber que não seria nunca um potter ou oleiro.  Isso no sentido em que a busca de técnicas para conseguir milhares de efeitos derivados de diferentes barros, cores ou certos resultados nas queimas consome por assim dizer toda a energia e tempo disponível na  vida inteira de um ceramista.  Aperfeiçoar técnicas exaustivamente a todos esses níveis, nunca foi  no meu trabalho o mais importante.
 Na realidade a busca na cerâmica para mim é mais centrada em encontrar uma verdade, uma expressão própria e inerente quase que universal em qualquer material, como também a madeira terá, outra o metal e por assim dizer todos os materiais. Então conseguir ultrapassar finalmente o factor ''os materiais''. Ou seja, o que acontece no meu trabalho muitas vezes até no mais ''utilitário'' é quase um paradoxo:  na realidade os materiais são tão essenciais quanto pouca relevância têm. Pode ser um qualquer, mesmo plástico, apenas emergem, este ou aquele, pela necessidade de encontar uma mais perfeita composição, cor, equilibrio ou expressão.

Sei que a cerâmica japonesa é altamente apreciada pelos japoneses, que por ser utilitária não deixa de ser menos artística. Esta atitude e visão contradiz de certo modo aquele (falso) paradigma ocidental que diz que a arte, para o ser, não pode ter uma utilidade. Quer comentar? 
Esta questão é complexa e só pode ser vista à luz dum conceito de beleza muito próprio e inato aos japoneses. Na realidade até na cerimónia do chá,  que é onde se atinge o auge deste conceito, como falo mais adiante, por estranho que pareça, ia buscar tijelas com várias outras funções e objectos que não eram feitos por japoneses. Muitas tijelas e escolas de chá usaram e apreciaram tijelas e utensílios até de diferentes eras  na história, encontrados na China e Coreia.
 Isto apenas  prova que não são as técnicas ou tradições de um artesanato japonês, e o seu aperfeiçoamento ate à exaustão que podem levar a que um objecto seja tido como de grande valor artistico para satisfazer o conceito de beleza nos Japoneses.
A existência do conceito wabi sabi, ou os três iis, imperfeito, impermanente, incompleto, derivado de ensinamentos budistas, e associado a outras influências shintoístas como a assimetria, simplicidade, austeridade, e sentido  de  economia de meios na concepção dos objectos e uso de imagem, criam uma sensação de intimidade profunda com a natureza.  E é assim que esses objectos, de uma ingenuidade íntegra, criam um muito  particular conceito de estética,  pelo que objectos de uso diário, podem também ser elevados por tal, ao mais alto sentido artístico.

Além do barro, que outros materiais utilizas para as tuas peças? Consideras-te pioneira na utilização dos diversos materiais e na sua combinação?
  Acho que já respondi um pouco a esta pergunta. Há muitos artistas que combinam materiais, mas sim cada um encontra o seu caminho e expressão e nesse sentido todo o artista é pioneiro em algo.    Uso muito o gesso, que é considerado um material menos nobre na cerâmica e escultura, pelas suas características de pouca durabilidade, mas que para mim é um material rico e infinito de possibilidades técnicas e expressivas. Também uso metal e madeira,  e vidro  fundido, não vidro soprado, esse só muito esporadicamente. Combino para além disso técnicas de gravura e serigrafia em todos esses materiais, sejam essas impressões feitas depois cozidas a alta temperatura ou não.

Como é a vida cultural no Japão e como se consegue expôr em galerias no Japão?
Acho como um pouco em todo lado, ou se entra num círculo de galerias comerciais, depois de se apresentar ou ser apresentado, que fazem contratos com os artistas e os representam, ou se apresenta o trabalho a galerias para exposições esporádicas e as que gostam convidam para expôr. No entanto no Japão há uma grande quantidade de galerias que são alugadas, e artistas que querem estar independentes de horários e restrições de vária índole por parte das galerias de convite, acabam por uma ou duas vezes por ano alugar e pagar as suas próprias galerias, no entanto todas as vendas são na mesma divididas pelo artista e galerista,  independentemente de serem ou não alugadas pelos artistas.
No caso de trabalho mais artesanal e funcional há uma grande variedade de lojas/galerias que vendem à  comissão fazendo exposição individual por uma semana ou duas e que depois têm sempre algum stock em exposição permanente na loja de trabalhos dos artistas que vão expondo ao longo do ano. Mas estas embora sejam em maior número são no fundo lojas mais dedicadas  a peças de artesanato e uso mais comum, pois faz parte da vida quotidiana dos japoneses usarem louça feita à mão, por razões de tradição, noção de conforto, noções de estética, etc .
 Há depois galerias , no mundo da cultura à volta da cerimónia do chá que é bastante estanque do resto das galerias de arte e mesmo artesanato. Todos os instrumentos usados na cerimónia do chá são tidos como peças fundamentais de todo um ritual e filosofia onde a tijela de chá, por exemplo, é mais um item, a par de chaleira em metal, colheres em bambu, instrumentos de queimar incenso ou preparar cinzas para ferver a água etc. etc. A tijela de chá em cerâmica na cerimónia do chá não é tida como artesanato,  terá de ser sem duvida um objecto de contemplação já elevado a um outro nível a que o artesanato por si só não satisfaz, mais perto de um objecto de arte, que tem tanto valor artístico por si só como a capacidade de criar um ambiente ou um espaço emocional, mais perto de um conceito existente na escultura e mesmo em muita da pintura.

Continua ligada a Macau. Porquê?
Em Macau continuam amigos queridos, e às vezes sinto que existe também um pouco de Portugal aqui à mão de semear.  Para além disso encontrei Macau numa fase importante de mudança da minha vida, e como tal voltar, ver as diferenças e, se puder, fazer  algo por Macau com alguma exposição ou algum workshop em que possa ajudar com novos conhecimentos e ideias estará sempre nos meus planos e será sempre um prazer.

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