segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

IN MEMORIAM


Hoje, dia 26 de Fevereiro de 2019, data de nascimento de meu Pai, recordo-o de modo particular, agora que também eu já sou avô, prosseguindo a sucessão geracional na natural ordem das coisas.

Meu Pai era um homem essencialmente bom, sábio, silente.

Em outro momento prestei-lhe homenagem como desportista. Foi o único campeão nacional de Macau até hoje, então com apenas dezoito anos. Repetiu a mesma proeza aos vinte anos.

No liceu foi discípulo de Camilo Pessanha, de Manuel da Silva Mendes e de José Vicente Jorge.

LICEU CENTRAL DE MACAU

Não sei se foi bom ou mau aluno. Quero crer que foi mediano. Deixou-me memórias, sobretudo do poeta.

Ali no Tap Seac, onde o antigo asilo dos órfãos se tinha transformado no Liceu Central de Macau, chegou um dia um jovem, vindo de Portugal que, ostentando umas luvas novas de boxe, perguntou quem era o aluno mais forte do Liceu. Apontaram o António. O António, com apenas 16 anos, às escondidas do pai Leocádio combatia contra militares, homens já feitos. Aceite o desafio, marcou-se dia e hora no terreno defronte, onde funcionava a Caixa Escolar. O ringue era a quadratura dos alunos. Um directo aos queixos do recém-chegado fez este cair e bater com a cabeça no chão, perdendo os sentidos. Ficou aflito, mas a notícia galgou a estrada do cemitério, contornou a igreja de Sto. António e desaguou na rua do mesmo nome, onde morava o meu avô e a família. Ali mesmo lhe foram retiradas as luvas para todo o sempre, mas o gosto pela arte permaneceu. Ficaria amigo para a vida do seu "adversário", que ainda conheci.
Participava nas tropelias próprias da idade, como a de galgarem o cemitério e, enquanto tuna do liceu, tocarem à noite para terror dos vizinhos chineses mais supersticiosos.

António partiu de barco para estudar em Portugal. Aquilo era uma longa viagem. Confessou-me um dia que, quando partiu, estava convicto de que já não voltaria a ver os Pais com vida. E assim foi...

Tirou o curso de Filologia Românica, trabalhou em Portugal e regressou a Macau nos finais dos anos 1930, onde ainda jogou futebol entre solteiros e casados.

Foi director da Secção Masculina da Escola Primária Oficial, enquanto Áurea Maria Salvado, cunhada, era, por coincidência, directora da Secção Feminina da mesma Escola, quase defronte do Liceu onde estudara e onde viria a dar aulas, a ser reitor e Chefe dos Serviços de Educação.


O investigador António Aresta relatando a sua demissão de reitor deixa esta pergunta:
"Terá o Conselho entendido estas palavras como uma inominável fraqueza do Reitor? Ou, pelo contrário, terá compreendido essa atitude profundamente educativa, de leal bondade, de humanismo e de compreensão do Outro?"

Nos anos da guerra, começou a trabalhar como jornalista desportivo no "Notícias de Macau", onde onde viria a encontrar minha Mãe, Deolinda Salvado da Conceição nos idos de quarenta, e ali casar, em plena sala da redacção, na Calçada do Tronco Velho. Foram apadrinhados por Hermman Machado Monteiro e por Cassiano da Fonseca , pelo irmão, Adelino Barbosa da Conceição, e outros colegas.  


CASAMENTO DOS MEUS PAIS NO "NOTÍCIAS DE MACAU"

Meu Pai foi professor de Francês de gerações e gerações de estudantes que muito o estimavam pela bonomia, tolerância e bondade com que tratava os alunos.

Nas viagens anuais a Hong Kong, queriam que fosse "our Tony" com eles, o mesmo que desenhara o equipamento do Liceu, camisola verde e calções brancos ou pretos, puxando para o seu Sporting, substituindo o evidente leão por uma raposa, cuja origem não conheço, mas posso desconfiar.



Uma equipa de Futebol do Liceu dos anos 50

Foi sempre um desportista nato. Foi mestre do bilhar inglês. Dava gosto vê-lo fazer incontáveis jogadas, somando paulatinamente pontos.
Aprendi com ele os efeitos, a estratégia, enfim, todo um conjunto de saberes que ficaram muito aquém do meu mestre.

Foi o último director do "Notícias de Macau". Já após o 25 de Abril, uma comissão "ad hoc" censurou o jornal para sempre. Doeu-lhe muito, certamente. Mas nunca proferiu um queixume. Era de um extraordinário estoicismo.

Com a idade dedicou-se mais ao bridge. Detestava jogos de azar. Fundou a Associação de Bridge de Macau. Não tinha memória para outras coisas, mas tinha memória treinada para as cartas que tinham saído. 

Recordo-me da sua bondade, da sua forma sábia de estar na vida. Modesto e circunspecto. Alguém um dia o chamou de "verdadeiro buda".  

Enquanto seu filho, posso apenas bendizê-lo pelo tanto que foi. 
No dia de hoje é-me impossível esquecer o meu Pai. Homenageio-o aqui, em privado, partilhando apenas com muito poucos esta saudade.










4 comentários:

  1. Que tributo maravilhoso, António. O texto, as fotos, são belíssimos remetendo-nos para um mundo feliz. Adorei!
    Parabéns ao teu Pai pela data e pelo testemunho de vida que nos legou através de ti e dos teus.

    Rosário

    ResponderEliminar
  2. António, conseguiu o que hoje em dia vai sendo mais raro em mim, conseguiu pôr-me com lágrimas nos olhos tal me identifiquei como filha. Que bom ter esta visão do nosso Pai, e ter tanto orgulho em ter tido, como nosso herói, a pessoa que nos educou(juntamente com a nossa mãe) e a quem devemos a maneira de ser e os valores humanos que nos regem até hoje!Foi lindo ter lido e visto as fotos! Obrigada por ter partilhado connosco este dia tão importante para si. Beijinhos PS: tenho um irmão que tb faz hoje anos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desculpe António não me identifiquei acima Isabel Trigo de Mira

      Eliminar
  3. Obrigado queridas amigas. Só hoje vi os V. comentários. Bem hajam.

    ResponderEliminar