quinta-feira, 24 de setembro de 2020

NAS COMISSURAS DO TEMPO

 


Entre o tempo que hesita em se pôr frio e o sol que se vai, pondo-se em raios de fénix apavorada, paira por aqui uma como que aragem congelante das horas, dos minutos e dos sentidos, espécie de absinto bebido no feérico mundo que antecede o do silêncio, quando as horas já não são e o dia ainda assim se não chama.


Não se mede esse hiato em horas, minutos ou segundos, não tem métrica marcada, é antes doença ou convalescença, tempo coado onde, por uma meia-mão se espera que tudo se abata, só o erguido cai, o rastejante arrasta, e o mundo divide-se também no punhado de fantasmas que a hora deles se vai chegando à medida que se fina um tempo para a outro dar lugar.


Nesse hiato que disse, a cidade doura-se de sol e fénix, e as gentes preparam-se para conviver com o reverso delas, tudo insonoro, como mudez musicada, como no tempo da última guerra. Escurecia e dançava-se, era assim a fuga, cantata, cantabile, um copo em corropio do copo ao corpo e deste a outro e ambos rodando, tudo vogando, ninguém tinha pés, apenas fumo rasando o sonho que descontínuo permeava os fantasmas. Como eram jovens e felizes, não tinham passado a recta da meta nem a sabiam, riam apenas do tempo em que este não contava nem escoava e o riso era só riso, não esgar ou trejeito de olhar suspeito, perdida a razão de uma ordem, outra se apronta e abastece, e prepara novos fantasmas de reencontros para que sobre esses corpos ainda por unir se expie a culpa de tantos sortilégios que se foram, e uma vez mais conduzidos, não condutores, mandados não mandadores, desembarcando da hipótese de cinco quadrantes, já memórias empalidecidas de folclore, vem quem dança ao lugar onde começou, e recomeça fingindo que é verdade que a verdade era assim, como se aqueles dias pudessem ser estes, e neste faz-de-conta mergulham o resto dos sentidos e façamos todos de conta.


Fazer de conta é não contar nem ir dizer, é virar a face e suspirar, olhar a moeda abrasada em que o sol ficou e preparar o mergulho nas sombras e esquecer que nos lembramos do tempo em que o mundo nem era nosso nem de ninguém, apenas não existia, e nos contentávamos com o que ao olhar se ostentava, não me lembro se era pouco se bastante, terá talvez sabido a pouco, apoucado que hoje é tanto e já não há.


Tocou estranha uma música, era estranha sempre que mudava, depois era o hábito do repetido e conformado, exaustão de ouvidos, e por vezes a marcha continuava e mesmo insólita e sem gosto se repetia, maldosa de tanto gostar de se ouvir, tínhamos de nos pôr a falar o que era pecado, sombra inventada para fustigar de medo o medo que se criava e se pressentia.


Diziam que medo substituía bem o prazer, eu ficaria na origem em vez da dobragem, de dobras já chegavam as da roupa e que por esse tempo eram miragem, que desse tempo não sou, nem daquele.


Sou do meu que acontece, como a sombra arrancada, fixa, perdida na contemplação do ocaso de um tempo perpetuado no som dos passos em sobrado rangente, inexistente, apenas rangendo a memória daqueles sapatos pretos e brancos que eu fixei, ainda me não serviam, e hoje perdidos estão, como tanto se perdeu por não se ter usado. A mim os sapatos não serviam, àqueles não sabiam de sapatos, e entre o achado e o perdido fez-se das achas uma fogueira e do perdido um incêndio que ainda lavrará quando a noite se cansar de se repetir, tal o olvido e tanta a ignorância espraiada na distância de onde nunca devia ter saído.


Há apenas um colar de luzes no horizonte, fez-se noite finalmente. E deste cansaço de esperar a alvorada, reina a esperança ainda, que nasça numa manhã um dia em que reinem a sensatez e o saber, para que de entre os dias ocorra um que à memória se junte, e em memória fique.


© António Conceição Júnior • 1999

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