quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A CRIATIVIDADE E A SOCIEDADE CIVIL

Legado latino a uma larguíssima faixa da humanidade, a palavra societas, "associação ou convívio amistoso com outros, que partilham gostos, intenções, hábitos e preocupações, interagindo entre si", mantém-se actual, sobretudo nas sociedades cujo florescimento material é de natureza recente, atributo que anuncia o novo-riquismo como característica de um significativo sector da população ou, melhor dizendo, da sociedade.
O caso de Macau é disto paradigmático, na radical transformação epidérmica, física e social.
A sua economia disparou para níveis nunca antes atingidos, face ao aumento substancial das receitas da sua maior indústria. Resumidamente, concentraram-se os ovos todos numa só cesta, ficando alguns poucos de fora para a construção civil e o inevitável imobiliário do dinheiro rápido.
Natural, pois, que face a uma abundância superlativa, passe a redundância e o arremedo de pleonasmo, operou-se uma como que cristalização das potencialidades que a cidade sempre teve, sobretudo para consigo mesma.
Recentemente, surgiram novas dinâmicas, das quais é de destacar a das Indústrias Criativas. Vale a pena referenciar, desde logo, que as mesmas são primeiro que tudo um Conceito e que quase toda a sua "listagem" é pré-existente à formulação do conceito.
A liberdade de exercitar o pensamento, a exploração, a indagação e a investigação são de grande importância, para citar John Howkins, nas economias que se desejam criativas, o que pressupõe também abundantes reflexões sobre o modo como estas podem coexistir com outras de extraordinário peso e arcaboiço.
Sucede que Macau é proprietária de uma condição paradoxal: possui uma área física diminuta, mas, por ser assim, possui as condições ideais para se tornar uma cidade-piloto, um centro de inteligência que permita torná-la numa ou em várias plataformas.
Mas isso implicaria que o conceito das Indústrias Criativas e Culturais fosse entendido, no caso de Macau, como uma economia criativa de exportação, face à exiguidade do mercado do território e à natureza específica do tema: Indústrias.
É interessante compreender que a dimensão de Macau a vocaciona incontornavelmente para o exterior. Porém, à partida, faltam-lhe instrumentos para o fazer.
Há muitos anos venho dizendo o quão fundamental é facultar à população em geral, e aos vários tipos de projectos comerciais e industriais em particular, a possibilidade de acederem ao comércio electrónico. Persiste porém, teimosamente, o paradoxo de, na cidade onde circulam milhares de milhões, os bancos não disponibilizarem comércio electrónico, na forma de Merchant's Accounts, nem se saber se existe a intenção de oferecer de uma forma equiparada a outras abundâncias, alojamentos para sítios digitais, porquanto é negócio virtual, não requerendo assim tanto espaço quanto se suporia, trazendo igualmente suporte local para os alojamentos domésticos.
No que concerne propriamente às Indústrias Criativas e Culturais, creio ser melhor assinalar a importância do estudo do pensamento de John Howkins do que proceder à sua categorização que, como a pescada, já o eram antes de serem. Refiro-me à definição clássica de Howkins: a Arquitectura, Arte, Artes Performativas, Antiguidades, Brinquedos, Cinema, Design Gráfico, Design de Moda, Edições, Fotografia, Jogos de Consolas, Música, Publicidade, Rádio e Televisão.
O panorama é vasto, mas o instinto diz-me que, a haver intenção de tocar todos os instrumentos no começo, resultará numa fragmentação de esforços e energias, além de ser conveniente lembrar, uma vez mais, que a indústria é sempre uma produção massificada que, regra geral, implica uma ou mais linhas de montagem, como o Cinema, as Edições, a Moda, a Rádio e a Televisão.
Por outras palavras, é aconselhável que se proceda à prudente criação de alguns núcleos ou incubadoras no sentido de testar a sua viabilidade.
É que, faço questão de acentuar, falamos destas indústrias como algo que se pretende seja uma das alternativas económicas à principal indústria do território, e não simples exercícios de respeitáveis diletantes.
À priori, parece-me importante privilegiar, potenciando, o que já existe de mais construído e próximo da indústria. Refiro-me à produção de conteúdos de interesse internacional por autores locais quer a nível de documentários quer, ainda, a nível de séries televisivas. A criação de uma Editora de Música agindo directamente no ciberespaço também parece ser um nicho interessante, bem como a criação de Rádios digitais alternativas, sendo estas áreas potenciais rampas de lançamento para voos mais altos.
Do mesmo modo, foi há bem pouco tempo apresentada na TDM uma interessante reportagem sobre  a indústria de Jogos de Consola que factura 100 mil milhões de USD por ano. Seria excelente que em Macau se captassem investimentos e know how para a produção digital de conteúdos. E que se ensinasse CGI - Computer Graphics Imagery, gama de ilustrações digitais que se encontram em filmes, em jogos de computador e em ilustrações modeladas, conhecidas também por 3D.
No que toca às Artes, a Kulturindustrie parece ser uma das áreas que mais aderentes tem, pela esperança no chamado sucesso que existe sempre que o verdadeiro talento se manifesta, sendo instantaneamente reconhecido. Por definição, “talentorefere-se a pessoas inteligentes ou adequadas para determinada ocupação. Inteligentes, no sentido de que entendem e possuem a capacidade de resolver os problemas, visto terem a experiência e competências necessárias para tal e, ou ainda, aptidão para operar com competência uma actividade face à sua capacidade para o bom desempenho do objectivo (Dicionário Wikipedia.)
Estamos então a falar na Cidade Criativa, que é não só um novo contrato social mas também um método de planificação estratégica, examinando e estimulando o modo como as pessoas podem pensar, planear e agir criativamente na cidade. Em suma, é a instalação do diálogo pleno com vista a conduzir a uma compreensão sobre a maneira como se pode humanizar e revitalizar as cidades tornando-as mais produtivas e eficientes, recuperando o talento e a imaginação dos cidadãos.
Daí que a premissa elementar para a emergência de uma Cidade Criativa é não apenas a configuração da Urbe vocacionada para esse desiderato, mas também a implementação da cultura, também enquanto instrumento educativo.
Assim, o que na essência distingue o conceito da Cidade Criativa é a eleição da cultura como elemento fundamental para algo que é de importância vital: a visão esclarecida que a cultura, no seu entendimento globalizante, necessariamente confere.
Há novas formas de criação de empregos, de valorização do ócio no seu significado original, de desburocratização e informalismo que ajudam a conduzir a um maior sentido de pertença, a uma percepção exacta do lugar de cada um na estrutura social, de garantias de continuidade, de segurança e previsibilidade social, conjugadas com a possibilidade de usufruir facilidades urbanas, interacção, ludismo e, acima de tudo, criatividade.
Por outro lado, é imperativo que o conceito de governação, que se preocupa com o papel comportamental das hierarquias, se transmute em estruturas mais horizontais, com partilha de responsabilidades entre governo e instituições da sociedade civil, estruturas decorrentes de sociedades de capital misto, mecenato, redes e mesmo organizações virtuais. Isto é, o conceito de poder terá de ser não um exercício do mesmo, na sua matriz tradicional, mas a relação dialogante assente naquela máxima de que nenhuma enciclopédia se faz com o que cada um de nós sabe individualmente, nem tão pouco se fará sem o nosso saber individual. É, mais uma vez, a convocação do contrato social a emergir como inevitável.
Só face à consciência de que as Indústrias Criativas, a Cidade Criativa, a Cultura e o diálogo com o Poder fazem parte de um todo holístico, que tem como suporte a Cidade, que rodeia o cidadão e o deve estimular a uma interacção geral construtiva, é que se poderão atingir os desideratos aqui expressos.

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