Legado latino a uma larguíssima faixa da humanidade, a palavra
societas, "associação ou
convívio amistoso com outros, que partilham gostos, intenções, hábitos e
preocupações, interagindo entre si", mantém-se actual, sobretudo nas
sociedades cujo florescimento material é de natureza recente, atributo que
anuncia o novo-riquismo como característica de um significativo sector da
população ou, melhor dizendo, da sociedade.
O caso de Macau é disto paradigmático, na radical
transformação epidérmica, física e social.
A sua economia disparou para níveis nunca antes atingidos,
face ao aumento substancial das receitas da sua maior indústria. Resumidamente,
concentraram-se os ovos todos numa só cesta, ficando alguns poucos de fora para
a construção civil e o inevitável imobiliário do dinheiro rápido.
Natural, pois, que face a uma abundância superlativa,
passe a redundância e o arremedo de pleonasmo, operou-se uma como que cristalização
das potencialidades que a cidade sempre teve, sobretudo para consigo mesma.
Recentemente, surgiram novas dinâmicas, das quais é de
destacar a das Indústrias Criativas. Vale a pena referenciar, desde logo, que
as mesmas são primeiro que tudo um Conceito e que quase toda a sua "listagem"
é pré-existente à formulação do conceito.
A liberdade de exercitar o pensamento, a exploração, a
indagação e a investigação são de grande importância, para citar John Howkins,
nas economias que se desejam criativas, o que pressupõe também abundantes
reflexões sobre o modo como estas podem coexistir com outras de extraordinário
peso e arcaboiço.
Sucede que Macau é proprietária de uma condição
paradoxal: possui uma área física diminuta, mas, por ser assim, possui as
condições ideais para se tornar uma cidade-piloto, um centro de inteligência
que permita torná-la numa ou em várias plataformas.
Mas isso implicaria que o conceito das Indústrias
Criativas e Culturais fosse entendido, no caso de Macau, como uma economia
criativa de exportação, face à exiguidade do mercado do território e à natureza
específica do tema: Indústrias.
É interessante compreender que a dimensão de Macau a
vocaciona incontornavelmente para o exterior. Porém, à partida, faltam-lhe
instrumentos para o fazer.
Há muitos anos venho dizendo o quão fundamental é
facultar à população em geral, e aos vários tipos de projectos comerciais e
industriais em particular, a possibilidade de acederem ao comércio electrónico.
Persiste porém, teimosamente, o paradoxo de, na cidade onde circulam milhares
de milhões, os bancos não disponibilizarem comércio electrónico, na forma de Merchant's Accounts, nem se saber se
existe a intenção de oferecer de uma forma equiparada a outras abundâncias, alojamentos
para sítios digitais, porquanto é negócio virtual, não requerendo assim tanto
espaço quanto se suporia, trazendo igualmente suporte local para os alojamentos
domésticos.
No que concerne propriamente às Indústrias Criativas e
Culturais, creio ser melhor assinalar a importância do estudo do pensamento de
John Howkins do que proceder à sua categorização que, como a pescada, já o eram
antes de serem. Refiro-me à definição clássica de Howkins: a Arquitectura,
Arte, Artes Performativas, Antiguidades, Brinquedos, Cinema, Design Gráfico,
Design de Moda, Edições, Fotografia, Jogos de Consolas, Música, Publicidade,
Rádio e Televisão.
O panorama é vasto, mas o instinto diz-me que, a haver
intenção de tocar todos os instrumentos no começo, resultará numa fragmentação
de esforços e energias, além de ser conveniente lembrar, uma vez mais, que a
indústria é sempre uma produção massificada que, regra geral, implica uma ou
mais linhas de montagem, como o Cinema, as Edições, a Moda, a Rádio e a
Televisão.
Por outras palavras, é aconselhável que se proceda à prudente
criação de alguns núcleos ou incubadoras no sentido de testar a sua
viabilidade.
É que, faço questão de acentuar, falamos destas
indústrias como algo que se pretende seja uma das alternativas económicas à principal
indústria do território, e não simples exercícios de respeitáveis diletantes.
À priori, parece-me importante privilegiar, potenciando,
o que já existe de mais construído e próximo da indústria. Refiro-me à produção
de conteúdos de interesse internacional por autores locais quer a nível de documentários
quer, ainda, a nível de séries televisivas. A criação de uma Editora de Música
agindo directamente no ciberespaço também parece ser um nicho interessante, bem
como a criação de Rádios digitais alternativas, sendo estas áreas potenciais
rampas de lançamento para voos mais altos.
Do mesmo modo, foi há bem pouco tempo apresentada na TDM uma
interessante reportagem sobre a indústria
de Jogos de Consola que factura 100 mil milhões de USD por ano. Seria excelente
que em Macau se captassem investimentos e know
how para a produção digital de conteúdos. E que se ensinasse CGI - Computer
Graphics Imagery, gama de ilustrações digitais que se encontram em filmes, em
jogos de computador e em ilustrações modeladas, conhecidas também por 3D.
No que toca às Artes, a Kulturindustrie parece ser uma das áreas que mais aderentes tem,
pela esperança no chamado sucesso que existe sempre que o verdadeiro talento se
manifesta, sendo instantaneamente reconhecido. Por definição, “talento” refere-se a pessoas inteligentes ou adequadas para determinada ocupação.
Inteligentes, no sentido de que entendem e possuem a capacidade de resolver os
problemas, visto terem a experiência e competências necessárias para tal e, ou
ainda, aptidão para operar com competência uma actividade face à sua capacidade
para o bom desempenho do objectivo (Dicionário Wikipedia.)
Estamos então a falar na Cidade Criativa, que é não só um
novo contrato social mas também um método de planificação estratégica,
examinando e estimulando o modo como as pessoas podem pensar, planear e agir
criativamente na cidade. Em suma, é a instalação do diálogo pleno com vista a
conduzir a uma compreensão sobre a maneira como se pode humanizar e revitalizar
as cidades tornando-as mais produtivas e eficientes, recuperando o talento e a
imaginação dos cidadãos.
Daí que a premissa elementar para a emergência de uma
Cidade Criativa é não apenas a configuração da Urbe vocacionada para esse
desiderato, mas também a implementação da cultura, também enquanto instrumento
educativo.
Assim, o que na essência distingue o conceito da Cidade
Criativa é a eleição da cultura como elemento fundamental para algo que é de
importância vital: a visão esclarecida
que a cultura, no seu entendimento globalizante, necessariamente confere.
Há novas formas de criação de empregos, de valorização do
ócio no seu significado original, de desburocratização e informalismo que ajudam
a conduzir a um maior sentido de pertença, a uma percepção exacta do lugar de
cada um na estrutura social, de garantias de continuidade, de segurança e previsibilidade
social, conjugadas com a possibilidade de usufruir facilidades urbanas,
interacção, ludismo e, acima de tudo, criatividade.
Por outro lado, é imperativo que o conceito de
governação, que se preocupa com o papel comportamental das hierarquias, se
transmute em estruturas mais horizontais, com partilha de responsabilidades
entre governo e instituições da sociedade civil, estruturas decorrentes de
sociedades de capital misto, mecenato, redes e mesmo organizações virtuais.
Isto é, o conceito de poder terá de ser não um exercício do mesmo, na sua
matriz tradicional, mas a relação dialogante assente naquela máxima de que
nenhuma enciclopédia se faz com o que cada um de nós sabe individualmente, nem
tão pouco se fará sem o nosso saber individual. É, mais uma vez, a convocação
do contrato social a emergir como inevitável.
Só face à consciência de que as Indústrias Criativas, a
Cidade Criativa, a Cultura e o diálogo com o Poder fazem parte de um todo
holístico, que tem como suporte a Cidade, que rodeia o cidadão e o deve
estimular a uma interacção geral construtiva, é que se poderão atingir os
desideratos aqui expressos.
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