domingo, 29 de janeiro de 2023

INDIFERENÇA CÍVICA

 

Ontem, domingo, 29 de Janeiro, na placidez de uma tarde jovem, fui até à janela olhar a calma que esperava encontrar.
Eis que encontro um carro estacionado junto ao pequeno jardim em frente e, no chão, dois homens lutavam, um logrando sentar-se em cima do outro, procurando agarrar-lhe os braços. Uma mulher, junto ao carro, parecia perdida, desorientada.
Desci a correr, abri o portão da casa e fui até àquilo que parecia uma briga, e deparo-me com o senhor que estava por cima do outro homem a imobilizá-lo com as mãos prendendo as do outro por cima da cabeça. Vi então que era um rapaz com um bigode ralo que lutava agora com as pernas para se soltar. 
À minha pergunta de "que se passa" o senhor respondeu-me "é o meu filho que está com um ataque psicótico, quer-se suicidar". E o pai tinha a boca a sangrar. Eu disse-lhe que se quisesse imobilizá-lo deveria virá-lo de barriga para baixo e aí eu ajudá-lo-ia a usar uma torção de braço para firmar a imobilização. 
"Não, ele é meu filho, não o quero magoar" responde o pobre pai. A senhora atarantada diz-me que "nós damos-lhe tudo o que ele quer e mesmo assim...". Tomo conhecimento que o rapaz tem 19 anos.
Virei-me para a senhora e disse-lhe para chamar a polícia na esquadra aí a uns cinquenta metros. Aproxima-se um homem, pergunta se pode ajudar, que é escuteiro. Fala como o rapaz que mal responde. A senhora demora a voltar, o escuteiro à paisana também se dirige à esquadra. Voltam os dois, a dizer que chamaram o INEM, mas PSP nem vê-los. Continuo alerta e vou avaliando o nível intelectual dos pais, e as queixas. "Nós vinhamos de Guimarães, passámos por um Centro Comercial. Ele quis ir ao Centro Comercial, mas hoje não podia ser. Ele imediatamente entrou num acesso de raiva, e disse que se ia matar, abriu a porta do carro em andamento".
Uma senhora de branco aproximou-se, sugeriu uma linha telefónica para casos destes. Percebo à superfície que há uma história de "damos-lhe tudo o que ele quer" enquanto o pai pede à mulher que guarde os óculos do filho, explicando-nos que cada lente custa 600 €. Continuo a olhar a ver se aparece um agente da PSP vindo da esquadra. Nada!
Estavamos nós, civis, a tentar ajudar os pais daquele rapaz problemático, afinal já com um historial psicológico, como conta a mãe. 
Nisto chega ambulância do INEM. Descem o condutor e uma mulher, médica talvez. Tomam conta da ocorrência. 
O rapaz é encaminhado para a ambulância. Talvez lhe injectem um sedativo. O pai é que tem o cartão de cidadão do filho. Acentua-se a convicção de que o caso é problemático.
Eu e o escuteiro, que se apresenta como arquitecto de profissão, despedimo-nos enquanto os pais correm a meter-se no carro para seguirem a ambulância do INEM.
De tudo isto ficou-me um sabor a indignação em relação à esquadra da PSP tão próxima. À indiferença perante aquilo. Era uma questão onde civis se substituíram a uma intervenção ao nível humano e cívico que qualquer cidadão esperaria da Polícia. Não era preciso haver tiros nem mortes.
Nos tempos que correm, de contestações e reivindicações, assistir à indiferença cívica num domingo lento e frio, causou e causa-me indignação.
Fica, assim este escrito sob o tema deste blogue, Urbanidades, porque seria isso que se esperaria de um agente que invoca a família e o salário baixo, sempre que há uma reivindicação, ou justamente se queixa de lhe cortarem as férias. Há obrigações que não entram no capítulo das atribuições e competências. 

É pena, muita pena.

sábado, 17 de setembro de 2022

UMA LOJA "PORTO COM TRADIÇÃO"

 BENEDITO BARROS, LDA.



A cidade do Porto é fértil em história e em pessoas. Mas existe muito mais, existem, por exemplo, lojas com história que passam de geração em geração. No Porto não se gosta de destruir, há uma consciência que faz parte da identidade nacional e da cidade, que leva à preservação.

Há bem poucos dias o centenário Mercado do Bolhão ganhou nova vida, inteiramente renovado, como que a atestar a longevidade das casas no Porto.

Pela minha parte há muitas coisas que me interessam, desde lojas de antiguidades, mobiliário, calçado, até aos tecidos que desde meados dos anos 1980 me andam nas veias.
Sempre parti de um princípio, nem sempre fácil: se os outros podem fazer, eu também posso. E foi assim que desmanchei casacos para ver com eram construídos e nasceu, em 1985 a alfaiataria “Classic Harmony” que abri com dois sócios e amigos. A aventura não durou infelizmente muito, mas a aprendizagem, essa valeu-me de muito.

Já vivendo no Porto, e passeando pela baixa da cidade, descobri no Nº39 da Rua de Passos Manuel, num primeiro andar, uma loja, ou armazém de tecidos que vende a retalho, chamado Benedito Barros, Lda. como se pode ver no início deste texto, do passeio oposto da Rua Passos Manuel.

Foi assim que, há poucos anos, conheci o senhor Raul Martins e sua Mulher D. Fátima. Sem cair em bairrismos, no Porto somos sempre bem acolhidos, com simpatia, e foi o que aconteceu. 

Embora não tenha nada contra o pronto a vestir, os meus hábitos de vestir por medida vêm de Macau, luxo possível, sobretudo quando se conhecem os meandros. 



O senhor Raul Martins ao balcão da Benedido Barros, Lda, 
apoiado em preciosos tecidos

Aqui no Porto, embora esteja bem suprido, há sempre a tentação do designer que vive dentro de mim. E foi assim que, além do tecido, mais barato em armazém do que em loja com montra para a rua, o senhor Martins me indicou alguns nomes de alfaiates, enquanto conversávamos, cada vez mais longamente, sempre que visitava a baixa.

Já não é a primeira vez que divulgo lugares que valem a pena. Muitas entrevistas estão neste blog, a artistas, escritores, pessoas interessantes. E a conversa começou:

 

Quando foi criada A BENEDITO BARROS, LDA.?

A firma Benedito Barros,Lda, foi criada em março de 1926. Meu Pai comprou o negócio a um senhor chamado precisamente Benedito Barros, quando regressou do Brasil, isso apesar de o meu avô já ter trabalho na firma. Mantivemos o nome. 

 

Está quase a fazer um século. Quantas gerações estiveram à frente da loja?

Da minha familia estiveram 3 gerações,o meu Avô, o meu Pai e actualmente sou eu.

 

Onde se situou a primeira loja? Quer-me contar a história das localizações da Benedito Barros Lda.?

A primeira loja foi na Rua do Almada do outro lado dos Aliados. Depois passou para a Avenida dos Aliados e, em 1958, para as actuais instalações. 

 

A Benedito Barros Lda. está agora situada num primeiro andar da Rua Passos Manuel. Qual a grande diferença entre um Armazém de tecidos e uma Loja de tecidos?

A diferença  que pretendo com a designação loja de tecidos é atingir mais público do retalho.

 

Onde se abastece normalmente, em Portugal? 

Normalmente as nossas compras são feitas na zona da Covilhã. Compro artigos 100% pura lã  e algumas misturas ricas em lã. Também temos tecidos das melhores marcas estrangeiras, inglesas, francesas e italianas que o cliente pode encomendar expressamente.

 

Quando é que a Benedito Barros, Lda. se tornou num "Comércio com História?”  

O que foi este estabelecimento, antes?

Somos “Porto de Tradição” desde Setembro 2018, tendo sido honrados pela Câmara Municipal do Porto com esta designação. Estas eram as antigas instalações do consulado do Brasil.


Sr. Raul Martins com o autarca Rui Moreira, na assinatura do acordo
"Comércio com História"


Sei que aqui se vêm abastecer muitos alfaiates. Desde sempre? Como vê nos dias de hoje o futuro da profissão de alfaiate?

Sim, sempre fomos procurados pelos alfaiates. A falta que sinto é de sangue novo para esta profissão...

 

Finalmente, que perspectivas tem para a sua Benedito Barros Lda.? 

A  nossa  perspectiva  para o futuro é a aquisição de uma loja no rés do chão e dedicar-nos exclusivamente á venda de tecidos ao público.


E assim fica o registo da conversa havida nesta "Loja com História" onde o senhor Martins se move familiarizadamente entre tecidos nacionais e estrangeiros que ocupam todas as prateleiras.

 

 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

TODO O FILHO É PAI DA MORTE DE SEU PAI

 

De Frases Budistas & afins...


Não pude deixar de compartilhar... Me emocionei pela verdade no texto, não deixem de ler!

" Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

É quando o pai envelhece e começa a tropeçar como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força a nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e instransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela — tudo é corredor, tudo é longe.

É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não se lembrará de seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai.

Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece no banheiro.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro.

A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.

A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.

Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?

Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali. "

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

ANTÓNIO ARESTA

Os saberes da actualidade conduzem-nos a uma reflexão sobre a nossa interioridade, isto é, a interioridade de cada um.

E é confortado que constato que os saberes de António Damásio e Robert Lanza convergem em muitos pontos. Sob as suas batutas direi que a intangibilidade da Memória confere-nos a imaterialidade que se associa directamente à Consciência, essa condição que nos define na relação com o mundo dito material.

É assim que cada fotografia de décadas, que retrata um tempo irretornável, convoca a imemorialidade de cada um – nome que dou ao tempo que precede a existência da nossa própria consciência – por via do legado de memórias indirectamente vividas.

Entramos assim, pela chave da consciência ou do seu legado, no campo da autenticidade. A autenticidade de Macau dos princípios do século XX, ou do século XIX. Uma urbe, herdeira de séculos precedentes, uma matriz urbana e arquitectónica mista, e uma convivialidade entre Macaenses, Chineses e Portugueses os últimos dos quais, por serem poucos e virem de longe, aqui se inseriam, tornando-se, eles também, pela via do afecto à terra, em Macaenses. Desses há a destacar nomes como Camilo Pessanha, Manuel da Silva Mendes e, num tempo subsequente, Hermman Machado Monteiro, Joaquim Morais Alves, José Silveira Machado ou J. J. Monteiro entre tantos outros. Esse processo de enraizamento era único e singular, assente numa  sedimentação iniciada no século XVI, originadora e legitimadora da genuinidade da cidade.

Se é obsoleto o desejo de retornar a outro tempo, essa apiração preenche-nos a Memória, como a desejar que o mesmo ficasse congelado, contrariando o seu fluir e, com ele, as mutações, mais ou menos radicais, que foram acontecendo para além da vontade de alguns. É no capítulo da alteração do espaço envolvente, que fisicamente nos confina, que se encontra a chave da transfiguração que, quer se queira quer não, nos afecta.

Porém a mais importante dos ingredientes é, infelizmente, a incompreensão ou ignorância radical da Multiculturalidade que desde há muito existe em Macau.

Aprofundemos a questão da Consciência, aquele cérebro em forma de panejamento, pintado por Miguel Ângelo na Capela Sistina. Miguel Ângelo Buonarroti sinaliza definitivamente o cérebro como sede da Consciência, isto é, da divindade.

Com Copérnico e depois Galileu, a humanidade deu lentos passos que, para o século XVI, eram heresias proclamar que estava “teologicamente errada” a teoria de que a terra se move. Esse peso da ignorância foi conquistado, mas o peso permanece noutros planos de rotunda ignorância a que já aludi.

Ter consciência da Etnicidade Macaense e da história múltipla de Macau, talvez possa ser só percepcionada , vista de fora, como algo que desperta, geralmente, estranheza, na medida em que conflituará com a percepção que cada um tem de si e da sua circunstância, que é tudo o que define o horizonte do próprio Inconsciente de cada um, remetendo-se tudo o resto para o plano dos clichés ou mitos urbanos que há muito se foram construíndo e consolidando.

Talvez tenhamos esquecido alguns pressupostos, entre os quais o da condenação de estarmos solitariamente enclausurados num corpo material dedicado à nossa percepção das coisas do mundo. Na interpretação do Universo, um elemento essencial já anteriormente referido como Consciência, é peça de um puzzle que o paradigma predominante tem tentado contornar porque não se encaixa num mundo objectivo e materialista, independente e alheio a qualquer percepção da noção disso, anuncia precisamente a pedra angular dos princípios que compõem essa nova teoria que nos revela os aludidos planos do Ciente. Com efeito, e citando o biólogo Robert Lanza que enverada pelos mesmos caminhos de António Damásio, direi que:

- A nossa percepção da realidade exige a participação da consciência.

- As percepções externas e internas do ser humano são dois lados da mesma moeda, absolutamente inseparáveis.

- Sem consciência, a matéria reside num estado indeterminado de probabilidade.

- O universo é perfeitamente ajustado para que haja vida nele, que tem um significado real, já que a vida cria o universo, e não o contrário. O universo é simplesmente a lógica espaço-temporal do ser.

- O tempo não tem existência real fora da percepção dos animais sensoriais. É o processo pelo qual percebemos as mudanças no universo.

- O espaço, como o tempo, não são objectos. São outra forma de compreensão humana e carecem de realidade independente. Assim, não há matriz absoluta da sua própria existência e independente da vida em que os eventos físicos ocorrem.

É em todo este contexto de percepção, que encaro a extraordinária e vasta obra de António Aresta, pessoa que muito estimo e por quem nutro especial Amizade.

Aresta é professor, isto é, alguém que professou, abraçou, aderiu à causa do Ensino, de educar, elucidar, esclarecer, e logo Filosofia. Mas isto não lhe basta. Será antes motivo para se ter lançado para outros planos de interesses, daqueles que nos segredam que não há apenas uma só realidade, mas várias, condicionadas pelas experiências de vida de quem ficou no rectângulo ou ousou saír, como muitos dos nossos maiores.

Mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foi professor em Macau durante onze anos, entre 1987 e 1998, tempo mais do que suficiente para que pessoas como ele, sensíveis, cultas e atentas, sorvessem o muito que por esse Lugar mágico existe.

Será exaustivo listar a sua extensíssima bibliografia de investigador nato e dedicado à Macaulogia. De qualquer modo citarei alguma obra:

A Educação Cívico-Política em Macau, 1989

A inovação Curricular no Ensino da Filosofia em Macau, 1993

Camilo Pessanha, Professor no Liceu de Macau, 1994

O Poder Político e a Língua Portuguesa em Macau [1770-1968]

Um relance legislativo, 1995

Manuel da Silva Mendes e a Poética do Taoísmo, 1995

O Neo-Confucionismo na Educação Portuguesa: Pedro Nolasco da Silva na História da Educação em Macau, 1996

Os Estudos Sínicos no Panorama da História da Educação em Portugal, 1997

José Miranda e Lima: Professor Rágio e Moralista, 1997

Falar Português: subsídio para a história do ensino da lingua portuguesa em Macau (1960-1968), 1997.

Monsenhor Manuel Teixeira e a História da Educação em Macau, 1998

Benjamim Videira Pires, um educador português em Macau, 1999

A Educação Portuguesa no Extremo Oriente, 1999

Joaquim Afonso Gonçalves, Professor e Sinólogo, 2000

O Professor Luís Gonzaga Gomes e a divulgação pedagógica da cultura chinesa, 2001

Manuel da Silva Mendes, Professor e Homem de Cultura, 2002

Álvaro Semedo e os exames na China Imperial, 2010

A Professora Graciette Batalha, 2010

Camilo Pessanha, 2011

Cinco Figuras do Diálogo Luso-Chinês em Macau, 2012

Figuras de Jade: os Portugueses no Extremo Oriente, 2014

Álvaro Semedo, 2015

D. Arquimínio Rodrigues da Costa, Bispo de Macau [1976-1988], 2016

Macau Histórico Cultural, 2016

Um filósofo em Macau no século XIX (Francisco Severino Rondina) 2016

Manuel da Silva Mendes, 2017

O Pensamento Moral de Leôncio Ferreira, 2017

Figuras de Jade II, 2019

 

A importância da investigação de António Aresta coloca-o ao mesmo nível de Manuel da Silva Mendes, com a diferença de que, tendo António Aresta saído de Macau, não só não permitiu que Macau dele saísse, como tem estado em Macau em toda a sua extensa obra.

É sempre de fora que as realidades surgem mais nítidas, porque os actores não se podem observar, apenas os espectadores e os investigadores.

E a investigação sobre Macau apossou-se de António Aresta, calcorreando pela investigação e subsequentes palavras, ruas, calçadas e vielas das histórias que compõem a História de Macau, esse Lugar onde a Miscigenação tem sido uma constante e o Macaense uma nação de indivíduos, todos geneticamente diferentes e todos iguais, e onde as milhares de narrativas se acumulam aos personagens, tantos, que é difícil enumerá-los.

Macau foi e é o paradigma do multiculturalismo, muito antes da existência do vocábulo que a aldeia global nos trouxe. O Macaense foi ao longo dos séculos o verdadeiro embaixador, portador, e usufrutuário da cultura portuguesa que soube legitimar, tornando-se o elemento conjugador, ambivalente, habitante de uma Cidade cujo sortilégio é indizível, mas cujo apelo se fixou em homens como António Aresta, inteiramente comparável a um outro homem do Norte, Manuel da Silva Mendes. Corremos o risco de entrarmos pelo plano da mitografia. Mas mesmo resistindo a ele, é imperativo reconhecer hoje o futuro daquilo que António Aresta é: uma voz fundamental para a historiografia de Macau, porque um investigador é um arqueólogo que navega nas águas da história e António Aresta é um navegante de alto mar.

A obra que já realizou, e onde se patenteia um rigor e uma riqueza histórica no resultado da pesquisa, alcandora-o a um lugar superior no plano dos pesquisadores e autores da Macaulogia, não apenas na qualidade como na quantidade da obra produzida.

Assim, fazer a apresentação de uma obra de alguém como António Aresta é tarefa ingrata porque esgota a adjectivação. Porém uma obra que continuamente se desenrola constitui uma esperança do aprofundamento e enriquecimento dos saberes sobre Macau, acabando por se constituir, involuntariamente no melhor do seu próprio elogio pela intenção, pela investigação e pelo alcance desta, porque é obrigação de todos saber que se trabalha sempre sobre o Passado para o Futuro, mesmo que o primeiro usufruto seja o Presente.

O meu interesse pelas culturas orientais, nomeadamente a Chinesa e a Nipónica, levam-me a acreditar que o muito está no pouco e que o maior dos elogios à obra de António Aresta não reside nestas modestas palavras, mas na certeza que tenho de que a sua obra transcenderá, em muito o devir, e será esse o maior elogio e reconhecimento para com António Aresta.

A este meu distinto amigo, resta-me humildemente dizer obrigado pela sua obra, e pelo futuro que vejo para ela, e ao Instituto Internacional de Macau, o meu aplauso pela visão de dar ao futuro a forma material neste nosso presente.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

SHINGEN • A VISÃO COMPASSIVA


Para muito poucos no ocidente, e mesmo no oriente, se torna possível entender o conceito de shingen. A palavra é composta de dois caracteres chineses que em japonês se designam por kanji. Shin, aqui representado pelo carácter da esquerda que significa também kôkoro, (coração) conota-se aqui com o conceito de espírito, enquanto o segundo carácter, gen, significa olho, olhar.

Assim, desse coração associado ao olho, temos uma primeira transcrição que é  visão compassiva. Porém é preciso estarmos cientes de que essa visão anuncia a clarividência que só pode ser atingida com a visão despida de paixões.
A paixão é a emoção descontrolada.
A visão compassiva ou clarividente já ultrapassou esse descontrolo. Vê-se com a mente e o espírito, porquanto se já sabe que a visão ocular é do mero domínio da óptica.

Os nipónicos categorizavam o olhar e a visão de forma diferente. vejamos como:


Nikugen • a visão nua

Esta não é mais do que a imagem simples recebida pela retina, destituída de qualquer processo mental ou emocional. é, assim, o mais baixo dos cinco níveis de visão e possui três limitações.
Primeiro, nikugen é completamente superficial. A pessoa que possui apenas nikugen não vê mais além do que a existência dos objectos no seu campo de visão. A visão nua não comporta nenhuma compreensão mais aprofundada desses objectos tal como vieram parar aonde estão, como podem interagir, ou como podem afectar o observador ou outros.
Seguidamente, nikugen está limitada ao ponto de vista do observador. Só "vê" o lado dos objectos que estão virados na sua direcção, e é uma visão quase apenas bi-dimensional.
Finalmente, a visão nua é facilmente obstruída. A simples colocação de um objecto diante dos olhos do observador termina-lhe o olhar.
Estas características aplicam-se não apenas à visão física. Alguém que queira ver um problema usando nikugen apenas vê os seus aspectos mais superficiais.
Por exemplo,  sem dinheiro, constata que se encontra sem nada. Se quer um pão,  verá uma impossibilidade total na compra de alimento.
Esta visão bi-dimensional cega o seu portador perante outras possibilidades, como trocar trabalho por comida ou vender algo que possui para obter dinheiro para comer.


Tengen • a perspectiva neutral

O estádio seguinte do desenvolvimento da visão é tengen, literalmente visão celeste, não no sentido angelical ou transcendente do termo, mas antes do ponto de vista do observador.
Com tengen, o observador já não está preso pelo seu próprio ponto de vista, antes tem uma perspectiva neutra por via da qual vê os objectos ou o problema como se olhando para eles de uma grande altura. literalmente, a visão tengen permite "ver a floresta pelas árvores".
Assim, com uma menos auto-centrada perspectiva, a visão do observador não é tão susceptível às distorções das suas ideias pré-concebidas, reacções emocionais, ou condições de vida.
Recorrendo a exemplos prévios, alguém com esta perspectiva neutra já é capaz de perceber as faces escondidas dos objectos. aplicando conhecimento e experiência, a sua mente já permite uma visão mais alargada. isto é, alguém usando de uma perspectiva neutra, em vez de estreitamente perceber a falta de dinheiro para um pão, verá a situação como uma necessidade de comida, observação que já oferece outras opções para uma solução.
porém, ainda que com esta perspectiva de cima, as emoções do observador,  preconceitos e circunstâncias da vida interferem com a verdadeira compreensão da sua visão que ainda está limitada àquilo que os olhos vêem.


Egen • o olhar interpretativo

Literalmente significa olhar pensante, está a um nível mais elevado, no qual a imagem recebida pelo cérebro é melhorada por uma compreensão das implicações das coisas ou situações observadas.
Importa contudo não confundir egen com pensamento analítico. O olhar interpretativo não é sobre o pensar no que se vê. É antes um processo automático e subconsciente no qual o olhar e a mente operam conjuntamente uma interpretação das imagens recebidas pelo cérebro, produzindo assim uma visão mais profunda do que o mero olhar físico.
Um exemplo talvez experimentado por muitos: alguém observando dois carros aproximando-se de um cruzamento ao mesmo tempo, por duas ruas que se não vêem uma à outra, vislumbra um acidente prestes a acontecer. A maior parte das pessoas não precisará de parar para perceber isto. Pela experiência, sabendo que nenhum dos condutores vê o outro, sabemos automática e subconscientemente que irão colidir.
Se olhassemos com nikugen ou tengen (leia-se nikuguen e tenguen) veríamos apenas dois carros movendo-se, independentemente um do outro, sem estabelecer uma relação causal.
Infelizmente, enquanto a maioria dos adultos possui o olhar interpretativo no que respeita aos aspectos físicos, falta-nos egen a outro nível.
Com verdadeiro egen reconheceríamos quando um choque de personalidades ou vontades estaria da iminência de ocorrer. Veríamos um acontecimento não apenas na sua forma física, mas no contexto das forças em movimento  e os efeitos que mais tarde resultariam como consequência imediata ou remota.
Assim, o maior benefício de egen é que agora o observador percebe natural e subconscientemente a relação de causa-efeito das coisas que observa ou testemunha.
Contudo egen ainda tem insuficiências.


Shingen-hōgen • o olhar compassivo

Apesar de todos os benefícios, egen ainda está incompleto. embora o observador receba a visuão completa e desobstruída das situações, suas causas e efeitos - mesmo as razões e motivos subjacentes às acções - esta visão é distanciada e desapaixonada.
o nível de visão seguinte, shingen, confere o mais vital ingrediente de todos: a compaixão, a faísca que motiva o guerreiro da luz a tomar agir correctamente numa situação. Ele vê um acontecimento não apenas da sua perspectiva, ou como o afectará a ele, mas como o evento afectará as vidas de todos os envolvidos. Mais ainda, ele vê com compreensão e compaixão por todos os envolvidos, de modo que a sua acção não será a que mais conveniente lhe seja, mas sim aquela que melhor será para a sociedade no seu todo, independentemente da escala do conceito.
O guerreiro de luz não olha os sentimentos, acções, ou desejos dos outros como certos ou errados. Assim o seu juízo não será toldado pela necessidade de provar-se que está certo. Também não tem de ultrapassar a natural hesitação de outra pessoa admitir que está certa ou errada. O que o interessa e motiva é o que é mais valioso. Assim, num desentendimento, o guerreiro da luz observa as visões dos outros como alternativas, usando shingen para analisar qual das alternativas pode ter maior valia para o colectivo. Com esta abordagem torna-se também mais fácil persuadir os outros a aceitar a melhor escolha também.
A avaliação do guerreiro da luz está em sintonia com as imutáveis leis da natureza. Ele entende os princípios de causa e efeito, e que mesmo acções "erradas" são motivadas pelas forças de causa e efeito.
Por este motivo, shingen é muitas vezes referido como hōgen, cuja tradução literal é a da visão legal, mas não se refere às leis da humanidade. Poder-se-á talvez entender melhor utilizando o termo perspectiva universal, no sentido de que, tendo igual compaixão por todas as pessoas operando sob uma ordem natural, imutável, mas sob a qual o guerreiro da luz pode escolher intervir. É desta neutralidade inserida na ordem universal da natureza que o guerreiro da luz procura observar e agir da maneira mais benéfica.
Os antigos samurai eram treinados para uma percepção mais aguda e global das situações. Ver com o coração era o estádio máximo de desenvolvimento da visão da mente-espírito.
Hoje, o guerreiro da luz ou da paz global recupera essa visão para princípios mais nobres que a guerra. Assim, aquele que vê segundo shingen-hōgen percorreu um caminho desde o primitivo nikugen, passando por tengen e egen. Ganhou maior visão interior, maior compaixão, tornou-se mais natural por se integrar nas leis do universo.
Vejamos um exemplo do quotidiano:
• um execuivo com nikugen está atrasado para uma importante reunião de negócios, e quando se põe a caminho vê-se obrigado a conduzir velozmente no meio do trânsito congestionado, zizagueando de faixa em faixa, tentando ganhar alguns precisos minutos.
• um outro executivo possuídor de tengen perceberá que corre riscos de ser multado, poderá reduzir um pouco a velocidade, mas continua a querer ganhar tempo para chegar atempadamente à reunião.
• outro executivo possuidor de egen não deixará que o seu desejo de dar uma boa imagem de si na reunião tolde a sua visão. ele percebe que conduzir desvairadamente perigará a sua e a vida de outros, que têm o mesmo direito à segurança que ele.
• por fim, o executivo possuídor de shingen, com a ajuda de hōgen  já se encontra no local da reunião, aguardando a chegado dos outros. ele previu que haveria hora de ponta, engarrafamentos, pelo que acordou mais cedo, pôs-se a caminho de antes do congestionamento do trânsito e assim chegaria antecipadamente, ganhando um psicológico ascendente sobre os outros.(1)



(1)
No Japão toda a vida é organizada de uma forma rigorosa e até ritualística, razão porque chegar antes dos outros a uma reunião coloca essa pessoa numa posição mais privilegiada e de ascendência temporária.







quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O NOSSO VERDADEIRO LAR


 O Nosso Lar Verdadeiro

AJAHN CHAH


NESTA SELECÇÃO, O VENERÁVEL AJAHN CHAH - um monge tailandês cujo estilo de ensino simples e directo atraiu muitos estudantes ocidentais ao seu mosteiro - dirige-se a uma discípula idosa à beira da morte. O mestre recorda à moribunda os factos da impermanência. Fornece-lhe os meios concretos para lidar com o seu sofrimento - primeiro o mantra, depois, consciência da respiração. O uso do mantra aqui não tem nada em comum com a cantilena mágica de qualquer tipo. Simplesmente protege a mente, fornecendo uma palavra com conotações plenas, como uma alternativa às associações dolorosas que assaltam uma pessoa no leito de agonia. Na medida em que a atenção é gradualmente desviada do fluxo mecânico de associações e se relaciona com esta sequência de totalidade, a ansiedade vai desaparecendo e desenvolve-se uma compostura suficiente que possibilita atingir o ritmo correcto da respiração.
Consciência da respiração é a mais básica de todas as técnicas budistas de meditação, praticada em todas as tradições. O movimento não manipulado da respiração surge por si só, uma expressão contínua e natural da simplicidade do aqui e agora. São utilizados dois termos sânscritos, dharma e samskaras. O uso mais familiar do termo dharma é como parte do Buda Dharma. Aí, significa algo como «caminho» ou «norma». Mas nos escritos budistas é frequentemente utilizado, como aqui, para significar um fenómeno ou facto. Tudo que se transforma no objecto da atenção é um dharma. Um samskara, em sentido restrito, é um impulso mental; em sentido lato, é qualquer formação que ocorreu em dependência de condições. Isso inclui quase tudo quanto existe. E o Buda estava continuamente a recordar aos seus discípulos: «Tudo quanto está sujeito a aparecer está sujeito a cessação.»
Na tua mente, decide-te a escutar atentamente o Dharma.
Durante o tempo que estiver a falar contigo, presta tanta atenção às minhas palavras como se fosse o próprio Senhor Buda que estivesse aqui sentado à tua frente. Fecha os olhos e põe-te à vontade, prepara a tua mente e concentra-a num só ponto. Humildemente, permite que a Jóia Tripla da sabedoriaverdade e pureza habite no teu coração, como forma de mostrar respeito ao plenamente Iluminado.
Hoje, não trouxe nada de substancialmente material para te oferecer, mas apenas o Dharma, os ensinamentos do Senhor Buda. Escuta bem. Deves compreender que mesmo o próprio Buda, com a sua grande quantidade de virtude acumulada, não podia evitar a morte física. Quando chegou à velhice, libertou o seu corpo e deixou partir o seu fardo pesado. Agora, tu também deves aprender a satisfazer-te com os muitos anos em que já dependeste do teu corpo. Deves sentir que já chega.
Podes compará-lo aos utensílios caseiros que usaste durante muito tempo - as tuas chávenas, os pratos, os pires, etc. Quando os usaste pela primeira vez, estavam limpos e a brilhar mas agora, depois de os utilizares durante tanto tempo, começam a gastar-se. Alguns já se quebraram, outros desapareceram e os que restam estão a deteriorar-se, já não possuem uma forma estável e é da sua própria natureza serem assim. Com o teu corpo passa-se o mesmo - tem estado continuamente a alterar-se desde o dia em que nasceste, da infância à juventude, até chegar agora à velhice. Deves aceitar esse facto. O Buda disse que as condições (samskaras), sejam elas internas, corpóreas ou externas são não-ser, a sua natureza é a mudança.
Contempla esta verdade até a veres com clareza.
Este pedaço de carne que aqui jaz em declínio é satyadharma, a verdade. A verdade deste corpo é satyadharma e esse é o ensino imutável do Buda. O Buda ensinou-nos a olhar para o corpo, a contemplá-lo e a chegar a acordo quanto à sua natureza. Temos de ser capazes de estar em paz com o corpo, seja qual for o estado em que ele se encontre. O Buda ensinou-nos que devemos ter a certeza de que é apenas o corpo que está encerrado numa prisão e não permitir que a mente fique presa juntamente com ele. Ora, quando o teu corpo começa a gastar-se e a deteriorar-se com a idade, não resistas a isso, mas não permitas que a tua mente se deteriore com ele, mantém a tua mente separada. Dá energia à mente, percebendo a verdade da forma como as coisas são. O Senhor Buda ensinou que essa é a natureza do corpo, não pode ser de outra forma, pois tendo nascido, envelhece, adoece e depois morre. Essa é a grande verdade que estás presentemente a enfrentar. Olha para o corpo com sabedoria e entende isso.
Mesmo que a tua casa seja inundada ou incendiada, sejam quais forem os perigos que a ameacem, isso concerne apenas à casa. Se houver inundação, não deixes que as águas invadam a tua mente. Se houver fogo, não deixes que ele queime o teu coração. Que seja apenas a casa, que te é exterior, a ficar inundada ou queimada. Deixa que a tua mente se liberte das suas amarras. O tempo está maduro.
Já viveste muitos anos. Os teus olhos viram inúmeras formas e cores, os teus ouvidos ouviram muitos sons, passaste por inúmeras experiências. E tudo não passou disso - apenas experiências. Ingeriste comidas deliciosas e todos os bons sabores não foram mais do que bons sabores. Os sabores desagradáveis foram apenas sabores desagradáveis. Se os teus olhos virem uma forma maravilhosa, é isso que ela é - uma forma maravilhosa. Uma forma feia é apenas uma forma feia. O ouvido ouve um som melodioso e ele não é mais do que isso. Um som inarmónico é simplesmente isso.
O Buda disse que o rico ou o pobre, o jovem ou o velho, o humano ou o animal, nenhum ser deste mundo pode manter-se durante muito tempo em qualquer estado, pois tudo experimenta mudança e alteração. Esse é um facto da vida que não podemos alterar. Mas o Buda disse que o que podemos fazer é contemplar o corpo e a mente para ver a sua impessoalidade, para ver que nenhum deles é «eu» ou «meu». Possuem uma realidade meramente provisória. É como esta casa, é apenas nominalmente tua, não podes levá-la contigo para onde quiseres. Passa-se o mesmo com a tua riqueza, os teus bens, a tua família - são to dos teus apenas de nome e realmente não te pertencem, pertencem à natureza. Ora, esta verdade não se aplica apenas a ti. Todos estão na mesma posição, mesmo o Senhor Buda e os seus discípulos iluminados. Diferiram de nós num único aspecto e esse foi na sua aceitação da forma como as coisas são, pois viram que não havia outro caminho.
Assim, o Buda ensinou-nos a vasculhar e a examinar este corpo, da planta dos pés ao topo da cabeça e depois de novo da cabeça aos pés. Olha para o corpo. Que tipo de coisas vês? Vês nele algo de intrinsecamente limpo? Consegues descobrir alguma essência permanente? Todo este corpo está a degenerar-se rapidamente e o Buda ensinou-nos a ver que ele não nos pertence. É natural que o corpo seja assim, porque todos os fenómenos condicionados estão sujeitos à mudança. Como querias que fosse? Realmente, nada há de errado com a natureza do corpo. Não é o corpo que provoca o teu sofrimento, são os teus pensamentos errados. Quando vires erradamente o certo, então estarás presa à confusão.
E como a água de um rio. Naturalmente, ele corre a partir da nascente e nunca ao contrário, pois essa é a sua natureza. Se uma pessoa vai até à margem de um rio e vê a água a correr firmemente para baixo e se estultamente quiser que ela corra para cima, irá sofrer. O seu pensamento errado não lhe permitirá gozar paz de espírito. Sentir-se-á infeliz por causa da sua visão errada, pensando contra a corrente. Se tivesse uma visão correcta, veria que a água deve inevitavelmente correr em direcção à foz e enquanto não perceber e aceitar esse facto, tal pessoa ficará agitada e preocupada.
O rio que corre a partir da nascente é como o teu corpo.
Tendo sido jovem, o teu corpo envelheceu e agora corre para a sua morte. Não desejes que seja de outra forma, pois é algo contra o qual não tens poder. O Buda disse-nos que víssemos as coisas como são e nos desprendêssemos dos laços que nos ligam a elas. Refugia-te nesse sentimento de deixar ir as coisas. Continua a meditar mesmo que te sintas cansada e exausta. Permite à tua mente viver com a respiração. Inspira profundamente e depois concentra a mente na respiração, utilizando o mantra BUDDHO. Faz desta uma prática habitual. Quanto mais cansada te sentires, tanto mais subtil e focada deve ser a tua concentração, a fim de poderes suportar as sensações dolorosas que surgirem. Quando começares a sentir-te fatigada, então interrompe todo o teu pensar, deixa que a mente se recomponha e depois volta a aplicar-te à respiração. Continua a recitar interiormente BUD-DHO, BUD-DHO. Esquece tudo quanto é externo. Não te agarres a pensar nos teus filhos e parentes, não te agarres seja ao que for. Esquece o resto. Deixa que a tua mente se concentre num único ponto e que a tua mente recomposta se concentre na respiração. Permite que a respiração seja o único objecto de conhecimento. Concentra-te até a tua mente se tomar crescentemente subtil, até os sentimentos se tomarem insignificantes, até haver dentro de ti uma grande clareza e consciência. Depois, quando as sensações de dor surgirem, elas gradualmente cessarão. Finalmente, encara a respiração como se fosse um parente que te viesse visitar. Quando um parente se vai embora, acompanho-lo com o nosso olhar. Observamo-lo até ter desaparecido de vista e depois voltamos para dentro de casa. Observamos a respiração da mesma maneira. Se a respiração for difícil, sabemos que é difícil; se for suave, sabemos que é suave. Ao tornar-se crescente mente mais ténue, continuamos a segui-la, enquanto simultaneamente acordamos a mente. Eventualmente, a respiração acaba por desaparecer totalmente e tudo o que resta é o sentimento de acordar. Isso é o que chamamos encontro com o Buda. Temos essa clara consciência desperta, chamada «Buddho», aquele que sabe, aquele que está desperto, o radioso. É o encontro e o habitar com o Buda, com o conhecimento e á claridade. Foi por o Buda histórico de carne e osso ter entrado no Parinirvana, o verdadeiro Buda, o Buda que é conhecimento radioso, que podemos ainda experimentar e atingir hoje e quando o conseguirmos, e o coração é um só.
Assim, esquece tudo, desprende-te de tudo, de tudo, excepto do conhecimento. Não te deixes enganar se na tua mente durante a meditação surgirem sons ou visões. Deixa-os de lado. Não te agarres a nada. Permanece apenas com esta consciência não dual. Não te preocupes com o passado ou com o futuro, permanece apenas calma e atingirás o lugar de onde não há avanço, não há recuo, não há paragem, onde não há nada a que te agarres. Porquê? Porque não há o ser, não há o «eu» ou o «meu». Desapareceu tudo.
O Buda ensinou-nos a esvaziar-nos assim de tudo, a não transportar nada connosco. Conhecendo e tendo conhecido, larga tudo.
Compreender o Dharma, o caminho para a liberdade da roda do nascimento e morte é uma tarefa que todos temos de executar sozinhos. Assim, procura tentar largar as coisas e compreender os ensinamentos. Esforça-te na tua contemplação.

Não te preocupes com a tua família. De momento, eles são como são, no futuro serão como tu. Não há ninguém no mundo que possa escapar a este destino. O Buda disse-nos que quebrássemos com tudo a que falte uma verdadeira substância permanente. Se puseres tudo de lado, verás a verdade, se não, não a verás. É assim que as coisas são e é a mesma coisa para todos neste mundo. Assim, não te preocupes e não te agarres a nada.

Mesmo que dês contigo a pensar, tudo bem, desde que penses sabiamente. Não penses estultamente. Se pensares nos teus filhos, pensa neles com sabedoria, não com estultícia. Seja o que for em que a tua mente se prenda, então pensa e conhece essa coisa com sabedoria, consciente da sua natureza. Se conheceres algo com sabedoria, então solta-te e não experimentarás sofrimento. A mente ficará brilhante, alegre e em paz e ao afastar-se das distracções fica indivisa. Mesmo agora, podes procurar ajuda e o apoio é a tua respiração.

Esta é a tua própria tarefa, de mais ninguém. Deixa os outros fazerem o seu trabalho. Tu tens o teu próprio dever e responsabilidade e não tens de carregar os da tua família. Não carregues nada mais. Abre mão de tudo. Esse abrir mão acalmar-te-á a mente. A tua única responsabilidade neste preciso momento é focar a tua mente e dar-lhe paz. Deixa tudo o resto aos outros. Formas, sons, odores, paladares - deixa isso para os outros. Põe tudo para trás das costas e cumpre a tua própria responsablidade. Seja o que for que surgir na tua mente, seja medo da dor, medo da morte, ansiedade quanto aos outros, seja o que for, diz-lhe: «Não me perturbes. Já não tenho que me preocupar contigo.» Continua a dizer isso para ti mesma quando vires surgir esses dharmas.

A que se refere a palavra dharma? Tudo é um dharma. Não há nada que não seja um dharma. E que dizer do «mundo»? O mundo é o próprio estado mental que te está a agitar neste momento. «Que irá fazer esta pessoa? Que irá fazer aquela pessoa a si mesma?» Assim, seja o que for que te vier à mente, diz: «Não tenho nada a ver contigo. És impermanente, insatisfatório e não-ser.»

Pensar que gostavas de continuar a viver durante muito tempo far-te-á sofrer. Mas pensar que gostarias de morrer mesmo agora ou morrer muito depressa também não está certo, pois é sofrimento, não é? As condições não nos pertencem; elas seguem as suas próprias leis naturais. Nada podes fazer quanto à forma de ser do corpo. Podes petrificá-lo por um pouco, torná-lo atraente e puro durante algum tempo, como as jovens que pintam os lábios e deixam crescer as unhas, mas quando a velhice chega, estão todos no mesmo barco. É assim que o corpo é, não podes fazê-lo de outra forma. Mas o que podes melhorar e embelezar é a mente.

Todos podem construir uma casa de madeira e tijolos, mas o Buda ensinou que esse tipo de lar não é o nossa verdadeira casa, é apenas nominalmente nossa. É um lar no mundo e segue os caminhos do mundo. O nosso verdadeiro lar é a paz interior. Uma casa material exterior pode ser muito bonita, mas não tem muita paz. Há esta preocupação e depois aquela, esta ansiedade e depois aquela. Por isso, dizemos que não é o nosso verdadeiro lar, é-nos exterior, mais tarde ou mais cedo, temos de desistir dele. Não é um lugar em que possamos viver permanentemente porque realmente não nos pertence, faz parte do mundo. Com o nosso corpo é o mesmo, aceitamo-lo como sendo ser, como sendo «eu» e' «meu», mas de facto não é nada disso, é apenas outro lar mundano. O teu corpo seguiu o seu curso natural do nascimento até agora, está velho e doente e não podes impedi-lo de ser o que é, pois as coisas são assim. Querer ser diferente seria tão estulto como querer que um pato seja um frango. Quando vires que isso é impossível, que um pato tem de ser um pato, que um frango tem de ser um frango e que os corpos envelhecem e morrem, encontrarás força e energia. Por muito que queiras que o corpo continue e dure um longo tempo, isso não acontecerá.

o Buda disse:


Anicca vata sankhara

Uppadavayadhammino

Upajjhitva nirujjhanti

Tesam vupasamo sukho.


A palavra sankhara (samskara) refere-se a este corpo e mente. Sankharas são impermanentes e instáveis, chegando a existir, desaparecem. Tendo surgido, desaparecem, e, no entanto, todos querem que sejam permanentes. Isso é estultícia. Olha para a respiração.

Tendo aparecido, desaparecem, essa é a sua natureza, é assim que tem de ser. A inalação e a exalação têm de se alternar, tem de haver mudança. Os sankharas existem através da mudança, não o podes impedir. Pensa: poderias exalar sem inalar? Sentir-te-ias bem? Ou podes só inalar? Queremos que as coisas sejam permanentes, mas elas não o podem ser, é impossível. Assim que o ar da respiração entra, ele tem de sair, quando sair, volta de novo e isso é natural, não é? Nascemos, envelhecemos e adoecemos e depois morremos e isso é totalmente natural e normal. É porque os sankharas fizeram o seu trabalho, é porque a inspiração e a expiração se têm alternado que a raça humana ainda hoje existe.

Assim que nascemos, morremos. O nosso nascimento e a nossa morte são uma só coisa. É como uma árvore: quando existe raiz, tem de haver ramos. Se há ramos, tem de haver raiz. Não podes ter uma sem a outrá. É engraçado ver como na morte as pessoas ficam tão desanimadas e chorosas, temerosas e tristes e no nascimento felizes e contentes. É ilusão; ninguém jamais encarou isto claramente. Penso que se quiseres chorar, então é melhor fazê-lo quando alguém nasce. Porque realmente nascer é morrer, morrer é nascer, a raiz é o ramo, o ramo é a raiz. Se tens de chorar, chora na raiz, chora com o nascimento. Presta atenção: se não houver nascimento, não haverá morte. Consegues compreender isso?

Não penses muito. Pensa apenas: «É assim que as coisas são.» É o teu trabalho, é o teu dever. Neste preciso instante, ninguém te pode ajudar, não há nada que a tua família e os teus bens possam fazer por ti. A única coisa que te pode ajudar agora é uma correcta consciência.

Então, não vaciles. Não te prendas. Lança tudo fora. Mesmo que não queiras abrir mão, tudo está a começar a partir. Não percebes que todas as diferentes partes do teu corpo estão a tentar escapar? O cabelo, por exemplo: quando eras jovem, era espesso e preto; agora, está a cair. Está a ir-se embora. Os teus olhos eram sãos e fortes e agora estão fracos e a tua vista está nublada. Quando os órgãos já trabalharam o suficiente, vão-se embora; este não é o seu lar. Quando eras criança, os teus dentes eram saudáveis e firmes; agora, abanam; talvez até tenhas dentadura postiça. Os teus olhos, ouvidos, nariz, língua - tudo está a tentar partir, porque este não é o seu lar. Não podes fazer uma habitação permanente de um sankhara, podes ficar apenas durante um breve instante e depois tens de partir. como um inquilino a vigiar a sua casa com olhos enfraquecidos. Os seus dentes já não são bons, os seus ouvidos já não são bons, o seu corpo já não é tão saudável, tudo está a partir.

Então, não precisas de te preocupar com nada, porque esta não é a tua verdadeira casa, é apenas um abrigo temporário. Ao entrares neste mundo, deves contemplar a sua natureza. Tudo quanto nele existe, está a preparar-se para desaparecer. Olha para o teu corpo. Tens nele algo que ainda conserve a sua forma original? A tua pele é como costumava ser? Para onde foram essas coisas? É essa a sua natureza, é assim que as coisas são. Quando o seu tempo chegar ao fim, as condições seguem o seu caminho. Não podemos confiar neste mundo - é uma roda infindável de perturbação e dificuldade, prazer e dor. Não há paz.

Quando não temos um lar verdadeiro, somos como o viajante sem rumo a caminhar pela estrada, seguindo o seu caminho umas vezes por aqui, outras por ali, parando de vez em quando e recomeçando depois. Até regressarmos ao nosso lar verdadeiro, não nos sentimos à vontade, façamos o que fizermos, tal como alguém que deixa a sua aldeia e parte em viagem. Só quando ele chega a casa pode realmente descansar e repousar.

Em lado nenhum neste mundo encontramos verdadeira paz.

O pobre não tem paz e o rico também não. Os adultos não têm paz, as crianças não têm paz, os incultos não têm paz, nem tão pouco os muito cultos. Não há paz em lado nenhum. Essa é a natureza do mundo.

Os que têm poucas posses sofrem e o mesmo sucede aos ricos. Crianças, adultos, idosos, todos sofrem. O sofrimento de se ser velho, o sofrimento de se ser jovem, o sofrimento de se ser rico, o sofrimento de se ser pobre - tudo não passa de sofrimento.

Quando contemplares as coisas a esta luz, verás anitya, impermanência e duhkha, insatisfação. Por que razão estas coisa são impermanentes e insatisfatórias? Porque elas são anatman, não-ser.

Tanto o teu corpo deitado aqui doente e cheio dores como a mente que está consciente da sua doença e dor, chamam-se dharmas.

Aquilo que é informe, os pensamentos, sentimentos e percepções chamam-se namadharma. O que está atacado de achaques e dores chama-se rupadharma. O material é dharma e o imaterial é dharma. Assim, vivemos com dharma, em dharma e somos dharma. Na verdade, não encontramos o ser em lado algum, só há dharmas continuamente a aparecerem e a desaparecerem, pois essa é a sua natureza. Em cada simples momento passamos por nascimento e morte. Essa é a natureza das coisas.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

VENDO AS COISAS COMO ELAS SÃO

 

NYANAPONlKA THERA (Thera significa «Ancião») nasceu em 1901 na Alemanha, filho de pais judeus. Tornou-se budista aos vinte anos e em 1936 mudou-se para o Ceilão, onde se tornou monge. Tem permanecido desde então principalmente no Ceilão e fundou a Sociedade Budista de Publicações em Kandy, que desempenhou um papel relevante no reavivamento do Theravada ocorrido no século xx.
Nesta selecção, Nyanaponika Thera ajuda-nos a captar o significado e o ensino de Buda sobre as três marcas da existência: impermanência, sofrimento e não-ser. Particularmente, clarifica como, do ponto de vista da experiência, o sofrimento pode ser uma característica geral da existência, embora pareça ser apenas uma qualidade psicológica subjectiva. O não-ser, também, como ausência de essência pessoal, pode aplicar-se tanto a fenómenos como a pessoas, pois as coisas do mundo são também vazias de essência. Assim, o mundo criado pela análise dualista que separa o eu do outro manifesta-se como um fantasma mutável. Os que se relacionam com ele como sendo sólido e real estão condenados à frustração descrita na Primeira Nobre Verdade.
Se contemplarmos um sector mínimo que seja da vida, somos confrontados com uma variedade de formas vivas tão tremendas que desafiam todas as descrições. No entanto, podemos distinguir três características básicas comuns a tudo quanto tenha existência animada, desde o micróbio ao homem, das sensações mais simples aos pensamentos de um génio criativo:

impermanência OU mudança (anitya)
sofrimento ou insatisfação (duhkha)
não-ser ou insubstancialidade (anatman)

Estes três factos básicos foram primeiro descobertos e formulados há mais de 2500 anos pelo Buda que correctamente foi designado «o Conhecedor do Mundo». Na terminologia budista, são chamadas as três características - as marcas ou sinais invariáveis de tudo quanto entra no ser, os «signata» estampados no rosto da própria vida.
Dos três, o primeiro e o terceiro aplicam-se directamente tanto à existência inanimada como à animada, pois cada entidade concreta, pela sua própria natureza, passa pela mudança e é desprovida de substância. A segunda característica, o sofrimento, é, naturalmente, apenas uma experiência da vida animada. Mas o Buda aplica as características do sofrimento a todas as coisas condicionadas, no sentido em que, para os seres vivos, tudo que é condicionado é uma causa potencial do sofrimento experimentado e é em todo o caso incapaz de dar satisfação duradoura. Assim, as três são verdadeiramente marcas universais, características daquilo que está abaixo ou além do nosso nível normal de percepção.
O Buda ensina que a vida só pode ser entendida correctamente se estes três factos básicos forem entendidos. E esta compreensão deve ocorrer não apenas logicamente mas em confronto com a experiência pessoal. A sabedoria intuitiva, que no Budismo é o factor libertador final, consiste nesta compreensão experimental das três características aplicadas aos processos mentais e físicos da própria pessoa e aprofundadas e amadurecidas em meditação.

Ver as coisas como elas realmente são, significa vê-las consistentemente à luz das três características atrás citadas. Não vê-las desta maneira ou enganar-nos quanto à sua realidade e variação de aplicação, é marca definitória de ignorância e a ignorância por si mesma é uma causa potente de sofrimento, preparando a rede em que o homem é apanhado - a rede das falsas esperanças, dos desejos irrealistas e nocivos, de ideologias enganadoras de valores e alvos pervertidos.
Em última análise, ignorar ou distorcer os três factos básicos conduz apenas à frustração, ao desapontamento e ao desespero.

Mas se aprendermos a ver através das aparências enganadoras e discernirmos as três características, isso trará imensos benefícios, tanto à nossa vida diária como à nossa luta espiritual. Ao nível mundano, a compreensão clara da impermanência, do sofrimento e do não-ser fornece uma perspectiva mais sã da vida. Livra-nos de expectativas irrealistas e leva-nos a uma aceitação corajosa do sofrimento e do fracasso, protegendo-nos contra o engano de assunções e crenças erradas. Na nossa busca do supramundano, a compreensão das três características será indispensável. A experiência meditativa de todos os fenómenos, inseparável das três marcas fará perder e finalmente cortará os laços que nos ligam a uma existência falsamente imaginada a ser duradoura, prazenteira e substantiva. Com crescente clareza, todas as coisas, internas e externas, serão vistas segundo a sua verdadeira natureza: como constantemente mutáveis, como presas ao sofrimento e como insubstanciais, sem uma alma eterna ou essência permanente. Vendo as coisas assim, o desprendimento crescerá, trazendo maior liberdade da posse egoísta e culminando no nirvana, a libertação mental final do sofrimento.

TERCEIRO E ÚLTIMO TEXTO

O NOSSO VERDADEIRO LAR