Não sei o conceito que os diversos poderes que se sentaram em Macau ao longo das últimas décadas tinham sobre esta extrema complexidade chamada cidade. Em alguns vislumbrei ideias claras, noutros algumas orientações e, noutros ainda, a ilegibilidade total.
Nunca será demais dizer que uma cidade não é apenas um aglomerado de ruas, casas, planos urbanos. A cidade é um organismo, uma teia holistica onde se jogam esperanças e se edifica o palco para todos os sonhos.
Citarei aqui Helder Pacheco sobre o seu, e também um pouco meu, Porto:
"O Porto, cidade, somos nós, as pessoas, mais a nossa cultura (que a construiu e lhe deu sentido). A cidade somos nós, com a memória que dela mantemos e a asa de futuro que queremos para ela. A cidade é um grande, um vasto objecto das emoções, dos sonhos, ternuras e desperos que fazem a vida.
Lugar onde nascemos ou vivemos, a cidade também nos constrói e nos dá sentido, e, por isso, deveria ser cuidada, reutilizada, construída (e renovada) quotidianamente, com amor."
O mais interessante é que estes dois parágrafos foram retirados da parede de um café, na Baixa Portuense. Nesse lugar poético bebe-se café e olha-se o pequeno texto escrito, a relembrar aquilo que cada um é. Cultura é isto também, distinta de erudição.
Não será pois, demais, repetir que a cidade é um corpo vivo, pulsante e cuja principal prioridade é uma, os seus cidadãos. O poder deve ter apenas em mente uma coisa: servir, dialogar, ouvir, sobretudo aquelas outras vozes silentes.
O evoluir de uma cidade é o produto de uma reflexão, da existência de um corpo de ideias a que se poderia chamar - e porque não - de uma ideologia para a cidadania.
Uma cidade não é um vazadouro nem o empilhamento de diversos casos caóticos. De uma cidade digna desse nome espera-se capacidade de ordenar, isto é, pôr em ordem.
Em Macau, ordenar é preciso, porquanto as imensas moles humanas que invadem a cidade são um atentado contra os direitos mais elementares dos seus habitantes. Ordenar significa arrumar, dispor, organizar e exercer princípios de autoridade com vista à eficiência.
Uma cidade não é um campo de deferências, mas antes de diálogos transparentes e eficazes. Uma cidade é, obrigatoriamente, um terreiro de igualdades convergindo para a excelência e para o bem dos seus habitantes.
Nos tempos que correm da sociedade da informação, não existem mais os álibis etno-culturais. Todos sabem gostar dos melhores carros, de relógios fulgentes e, alguns, da ostentação que substitui o que lhes falta em outros domínios.
E sob a luz desta ausência de álibis não pode existir a indiferença, antes a imperativa exigência da solidariedade actuante, o exercício da ordem e do poder cívico contra todas as formas de discriminação, cárcere privado, extorsão, ameaça, contra o que à cidade e aos que a governam deve ser o bem mais precioso: os cidadãos que a habitam.
As cidades transportam história e estórias. Possuem, detentoras dos vários compassos do tempo, a dignidade que é imperativo que seja respeitada, porque se se invoca o patriotismo para algumas situações, invocarei eu a cidadania para todas as realidades que dizem respeito à cidade.
E falando em cidades, ocorrem-me Lisboa e o Porto. Lisboa do céu azul, para onde desaguam gentes de tantos lados e canoas no Tejo, e o Porto, essa outra dignidade de cantaria, esse orgulho que os cidadãos dela têm, nas pontes, nesse "velho casario que se estende até ao mar, da Ribeira até à Foz", e a todos os lugares onde, orgulhosas, se erguem igrejas, a torre dos Clérigos, a Câmara e a Praça da Liberdade. Mais além, subindo Santa Catarina, os cafés com esplanadas assegurando o pedonal, onde se sente a cidadania no olhar franzido do cidadão que olha o transgressor que infringe as leis do civismo.
Há nisto tudo uma respiração que subsiste e persiste, apesar da crise, porque a cidadania é uma consciência, não uma conta bancária.
Porto, também classificada Património Mundial da Humanidade pela Unesco, assim como Lisboa, são modelos singulares de cultura citadina.
Hoje existem padrões tão comuns de comportamentos culturais e cívicos, que os mesmos estão condenados a serem semelhantes em todo o mundo.
Isto é, um táxi é um táxi em qualquer lado, e tem de agir como mandam as normas. Uma Polícia deve ser igual em todo o lado. O seu princípio é o da protecção e não o de punição. Uma economia regulada é-o igualmente em todo o mundo. E a inflacção desregulada é-o universalmente, bem como as ilacções que daí se extraem. Uma transgressão é-o aqui como em toda a parte, tanto quanto um sorriso é universal. Nada distingue semelhanças senão a geografia.
Assim sendo, a qualidade de vida de uma cidade depende dos seus planificadores, depende da qualidade do Ensino desde a infância, depende não de rituais, já mais ou menos despojados de significado, nem de mesuras, mas do contínuo exercício de igualdades e inteligências.
A democracia não é o voto nem a sua caça. A democracia é a distribuição equitativa do conhecimento, do trabalho, da acessibilidade à habitação, do direito à saúde, ao ensino, ao transporte, à qualidade de vida, à inclusão por oposição à exclusão. A democracia não é uma feira nem um manifesto, mas uma maturidade.
A cidadania, por seu lado, não precisa de recorrer à política mas sim à polis para que, conjuntamente com a ética e a moral, possa construir para a urbe um devir onde a qualidade de vida se paute, ela também, pelos ditos princípios universais.
As fotografias que se juntam a estas palavras são do Porto enquanto cidade, corpo de cultura, simultaneamente monumental e humilde, antiga e bela - geminada com Macau desde os anos 1990 - e servem para ilustrar o cenário de uma plenitude urbana, num país em crise económica. Porque a abundância traz riscos, como a constatação "pobres deles, só têm dinheiro!".
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