quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

OS OBEDIENTES


11 de Fevereiro de 2015

A obediência tanto pode ser um acto de disciplina como de servidão.
Tudo depende de quem obedece e porque obedece. Obedecer em si não é coisa má. Todos procuramos obedecer às leis, apesar de esta ser, tradicionalmente, uma cidade de transgressões.
Sempre disse que a coexistência ou coabitação na cidade não é um registo de formalidades, deferências e mesuras. Uma existência saudável é, sempre, uma relação de igualdades.
Se o pensamento Socrático nunca por aqui se enraizou, que o conceito de filosofia é diferente por estas bandas, o Confucionismo existe apenas pela rama. Entrega-se o cartão com as mãos ambas, serve-se chá independentemente dos gostos, fala-se em público com ar manso, e o ramalhete fica composto.
Neste contexto, sinalizam-se "Os Analectos", "O Livro dos Ritos", a obra de Sima Qian, o "Tao te Qing", o "I-Qing", "O Sonho do Pavilhão Vermelho" ou os "Fora-da-lei do Pântano" como acessórios inúteis para a esmagadora maioria de uma população que cresceu em cenários de escolas com 80 alunos por classe, professores mal pagos e sem formação adequada, associadas a uma cultura de televisão que terá contribuído para que uma grande parte da população se prenda ao superficial, à busca do material em prejuízo da cultura, à adaptação a ambientes insalubres e à indiferença tão pouco solidária que redundou na falta de civismo agudizada pelo inaudito congestionamento demográfico em que vivemos.
Sucede que, inesperadamente, emerge um Executivo surpreendente no agir, a despertar esperanças várias de que, à campanha do anti-tabagismo se associe a emergência de uma geração de autocarros inteiramente ecológicos, que há já muito que o ar se tornou irrespirável, demasiado poluído e congestionado para uma cidade que se espera cosmopolita, e se quer Centro Mundial de Turismo e Lazer.
Se o fim do "rodízio" de meninas do continente no Hotel Lisboa, a primeira vaga de combate à actividade verdadeiramente criminosa, porque discriminatória e encarceradora, dos táxis  da RAEM(1), insulto à imagem de Macau, e as primeiras análises à Saúde que é dispensada ao cidadãos, são indícios de esperança para todos nós, é expectativa de todos que a dinâmica continue, nestes primeiros dias de Fevereiro.
Estou convicto que toda a população aspira por uma qualidade de vida que implique a aplicação de valores universais, tão localizáveis em Singapura como na Suíça: o direito à esplanada, o direito ao ar livre,o direito a uma qualificada lei do ruído, o direito a um trânsito devidamente planeado, o direito a uma polícia que tenha a consciência para servir, formar e operar não pelo princípio da punição mas antes pelo da protecção.
É preciso fazer dos infractores gente obediente, não por medo, mas por consciência cívica. Impõe-se dar ao cidadão a consciência de que o é. 
Impõe-se conferir à cidade a  maturidade a que tem direito.
É premente que, ao improviso, se contraponham planos claros, coerentes, porque Macau governada pelas suas gentes é sobretudo uma responsabilidade, não apenas para com os concidadãos, mas também para com o segundo sistema.
Obedecer não é coisa má, sobretudo quando o sinal é de arrumar a confusão.
E neste dar e receber, vem de novo à baila o monóxido de carbono que é de consumo diário.
Por nisso falar, fui, há tempos, estacionar numa reentrância no passeio, para cargas e descargas, que deveriam ser feitas nocturnamente. E estacionei aí à porta do supermercado, encaixando-me entre outros automóveis igualmente particulares, na manhã de um Sábado.
Andava entre as prateleiras, quando fui alertado para o facto de um polícia estar a aplicar multas. Saí, abeirei-me do polícia e perguntei-lhe se me dava uns momentos. Mostrou-se disposto a ouvir. E lá lhe fui dizendo que a cidade já tinha chegado a um ponto tal de ruptura, que não existiam condições para um cidadão estacionar. Respondeu-me que ele próprio tinha vendido o carro.
Animei-me com a esperança de que tinha encontrado um sôr agente com ideias próprias. E lá fui dizendo que isto de estacionamentos era como se nos alugassem uma casa sem quarto de banho e depois nos punissem pelas urgências naturais. Ouviu-me sempre a olhar para a frente, que olhar nos olhos seria compromisso de quem participa na conversa.
Terminei dizendo-lhe, ele que fizesse o que quisesse. Deixava isso à sua consciência.
Quando regressei das compras vi que todos os carros tinham a multa da praxe. Tinha sido em vão. Era mais um que se recusava à lógica e à evidência. Era mais um obediente. Um daqueles cujos princípios se resumem a reprimir e punir o cidadão, nunca de o proteger. Jamais vi um guarda a apitar a uma das centenas senão milhares de infracções de trânsito que ocorrem diariamente das formas mais surrealistas.
Mas pergunto-me, a culpa será deles ou antes daquela educação que receberam, oitenta alunos numa sala, a balir até à exaustão tudo aquilo que pobres professores, mal pagos, sem formação adequada, lhes afinfavam na altura?
Mas... e os outros? Os que tiveram uma educação mais esmerada e, mesmo assim, andam curvados sob o peso do interesse no lugarzinho onde ajoelham para cima e carregam para baixo?
 A cidade cresceu, o trânsito desmediu e, após largos anos, ainda se não encontrou solução para os Mercedões, os Porsche, e todo o préstito de carrões que abundam onde há novos-ricos e amantes da Hello Kitty, bem como para as carripanas de lineu comum.     
A receita seria simples. Assegurar um circuito periférico com silos de estacionamento, e toda a cidade servida por autocarros de grande qualidade.
Conduzir às horas de ponta é a suprema loucura, e esta cidade que se pretende, seja o Centro do Entretenimento e Lazer, oferece a quem cá vive, um ambiente que hesita entre a alucinação e o surreal. Esta não é, decididamente, a cidade que eu conheci. Sobretudo não havia tantos obedientes, cegos ou por conveniência. 

(1)Região Administrativa Especial de Macau

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