Neste húmido mês de Março, servido por uma frente fria, a cidade, com o nevoeiro que a invade, nem se reflecte nas águas pouco transparentes e lodosas deste braço do delta, num momento em que se vertem ao conhecimento do público algumas decisões para enfrentar o grave problema do excesso – sempre o excesso – da imensa população automóvel e outros veículos, que foi invadindo, impune e desregradamente, a cidade até ao pejamento e total insustentabilidade.
Durante todo este processo de importação de automóveis, que se estendeu por anos, não se vislumbrou – por parte, supostamente, da DSAT – qualquer medida capaz de evitar o descalabro existente, que, além do pejamento, da tremenda poluição, conduziu à autêntica lotaria que é encontrar um lugar de estacionamente na cidade.
Mas compreende-se todo este processo de necessidade de aquisição, de mostrar poder de compra. Compreende-se a necessidade de, à falta de outros objectivos, ostentar. Uma margem, muito marginal, de habitantes busca o sonho do estatuto, e nada melhor que a equação entre a falta de espaço e a cilindragem de alguns automóveis – que já não são poucos – para se perceber quanto de novo-riquismo infesta esta velha e bela urbe.
Cruzei-me com um Ferrari negro, de tinta fosca, possivelmente para mostrar o vanguardismo do fascinado dono, que se passeia em segunda e atravessa a ponte em terceira. Mais além um BMW topo de gama, também negro fosco (ele há modas que sim), entalado como eu no trânsito. Pouco depois, passou por mim um Mazda desportivo rubro, dois lugares, ronronante, a ameçar velocidade. Acolá um Bentley negro, silencioso.
E por esta cidade, que tão excelente seria se passeada a pé, sem pressas, em sintonia com as temperaturas que lhe presidem, perpassam estas peculiaridades de quem, à maneira do Macaco Nu, de Desmond Morris, não tendo mais que mostrar, exibe o carro.
De entre o nevoeiro que se abateu, ainda assim se vislumbram as metades inferiores dos prédios, não se sabendo quantos têm parques de estacionamento ou são portadores da tecnologia de papelão, nem se alguns dos autores serão porventura chamados a depôr sobre as novas técnicas de construção, antes que a natureza, que tudo comanda, pense em despir certas paredes ao primeiro abalo.
Estamos num mês do faz de conta. Não chove nem faz frio ou calor. Mas este mês dedicado a Marte, que se entretém mais para o Oriente-Médio, vai revelar também quais as linhas da acção governativa desta nova equipa executiva. Muito se espera e muitas são as expectativas sobre as soluções a apresentar para resolução dos problemas que mais afligem a população que, segundo sondagens recentes, passam prioritariamente pela habitação e transportes.
Mas Março foi, é e será ainda montra para outros importantes eventos, como a inauguração da instalação da portuguesa Joana de Vasconcelos no MGM, o "Carnevale" dito Veneziano do Venetian, e o Festival Literário Rota das Letras, a arrancar com a apresentação d"Os Rapazes dos Tanques" de Adelino Gomes, que também por Macau andou nos tempos heróicos da TDM.
Tirando o capacete plúmbeo que nos toca a todos, ressalta o facto de os dias deste tempo de transição serem todos muito iguais para muitos, sobretudo para aqueles cujo prazer máximo é rodar sonora e desmedidamente de madrugada, sendo indiferentes ao que realmente importa, enquanto as águas do delta correm silentes para o mar, também indiferentes às desmesuras dos homens, a ambições, ódios, afectos ou simplesmente omissões.
Para que tudo fosse algo diferente, importava que as LAG trouxessem consigo uma verdadeira reorganização urbana, uma Cartilha para o Mando e para os Cidadãos, na certeza porém que as águas do delta continuarão impassíveis, apesar de os vivos se esquecerem vezes sem conta que a Memória não é deferência, antes a obra que deixarem atrás de si. Vem numa Cartilha.
O problema é ser uma cartilha muito pouco lida.
ResponderEliminarGrande abraço