I
Virei a esquina para uma rua secundária. À minha frente estava uma paragem de autocarros toda em vidro, de onde pude vislumbrar um homem idoso, de idade indefinida, entre os setenta e os oitenta, magro, de boné, sentado a contemplar algo, um infinito muito seu, desses olhos encovados no rosto esquálido ornado de orelhas enormes.
Continuei o meu caminho, agora mais lento, reflectindo aquele olhar silencioso, vago, porém tão cheio de evocações. Dei-me a pensar se ele teria conhecido o último esplendor da rua Central. Certamente que o da Avenida Almeida Ribeiro conhecera, bem como os policias sinaleiros "mouros", de turbante verde rubro. Será que teria frequentado o Hotel Central, tomado chá à hora do meio-dia ouvindo ópera chinesa? Teria, à noite, frequentado o “dancing” e comprado bilhetes para dançar com as dançarinas de sedutoras cabaias, ou seria mais assíduo na Rua das Felicidades? Teria presenciado as provocações dos oficiais japoneses aos oficiais portugueses e americanos nesse espaço de neutralidades? Teria passeado pela Praia Grande desde o Hotel Riviera até ao palácio do Barão do Cercal? Uma enorme torrente de perguntas perpassavam-me pela mente.
Que memórias lhe povoavam o olhar fixo, perdido, na espera do autocarro?
Enquanto esses pensamentos me ocorriam, havia-se feito um tremendo silêncio em meu redor, uma ausência inaudita de som, de ruído, como se de repente por ali se desse o vácuo.
O incidente passou, estranho, com outras solicitações a convocarem a minha atenção.
II
Passados anos, devido ao reaparecimento uma dor paralisante que me acometeu, vi-me obrigado a recorrer aos serviços de um “tit tá” (endireita), a conselho de um amigo. Este conhecia um, que embora velho, ainda atendia. Dirigimo-nos ao Porto Interior, pela Almeida Ribeiro, Ponte Cais 16 até à Demétrio Cinati, ornada de pontes e armazéns de peixe. Um jovem, vestido de jeans, veio atender-me.
O “consultório” não tinha tabuleta. Ficava situado quase em frente a uma dessas pontes onde atracam barcos de pesca. O rapaz entrou comigo e convidou-me a sentar. Foi por uma porta semi-aberta e ouvi-o a dizer “sifu” (mestre) em voz sumida. O mestre disse qualquer coisa e o jovem trouxe-me um copo de chá quente. Com a sua ajuda, levantei-me e transpus o umbral para o outro quarto cujo chão estava coberto por um linóleo gasto. Num velho sofá de pau preto, olhou-me o homem da paragem de autocarro. As orelhas enormes não enganavam. O olhar era o mesmo, inexpressivo, cavado do fundo das órbitas. Apagou o cigarro, pigarreou, perguntou onde me doía. Mandou-me tirar a camisa e disse-me para me sentar no chão. O meu amigo saudou o velho, que parecia conhecer bem, com um “Fóng pák” (tio Fóng) e este limitou-se a retorquir com um “wei”. Tentei sentar-me o melhor que podia mas ele disse que não, para me sentar com as pernas cruzadas. A mudança de posição custou, mas coloquei-me de pernas cruzadas, apoiado por um braço. Pela primeira vez dirigiu-se-me:
Essa articulação não dói com facilidade. Não acho que seja daí. A-Kan, estica-lhe as costas, disse para o jovem assistente. Tentei mexer-me, mas foi-me dito para estar quieto. A-Kan sentou-se à minha frente, pôs sem cerimónia os pés nos meus joelhos, agarrou-me nos pulsos e puxou-me para a frente.
Fóng pák arrastou os pés até ficar atrás de mim, passou lentamente os dedos pelas minhas vértebras. Onde terminam as dorsais e começam as sacras demorou-se mais. Fez um “hmm” surdo, tossicou. Senti-o mexer-se atrás de mim. Era um joelho que buscava o local exacto. Depois disse ao assistente para me soltar lentamente, enquanto as suas mãos e antebraços passavam por debaixo das minhas axilas. Era como uma gravata, só que o joelho empurrava as vértebras enquanto me puxava o tronco para trás com uma força que eu não imaginava. Esteve assim uns bons 30 segundos. Apenas o joelho incomodava, ali espetado. De repente a dor desaparecera por milagre.
Já está, disse Fóng pák. A-Kan, isto nunca viste, disse o mestre. Respirou fundo enquanto eu me punha de pé com toda a normalidade e vestia a camisa. Antigamente, continuou, os discípulos sabiam que nunca sabiam o suficiente e seguiam o mestre por décadas. O olhar fitava, com nostalgia o infinito. Sentou-se, acendeu outro cigarro. No meu tempo aprendíamos com ossos de verdade. O meu “sifu” obrigava a que pegássemos num saco de ossos e os ordenássemos até o esqueleto ficar completo. Obrigava a que soubéssemos a posição correcta de cada um só com os dedos.
Falava sem se dirigir a ninguém, o olhar, como sempre, perdido. Suspirou um “aaaaaiii” prolongado, roufenho, como que a exorcizar memórias que não partilhava, sentimentos que calava, emoções engolidas.
Agora, esta gente nova, aprende umas coisas, pensa que sabe tudo e estabelece-se. Só posso rir. Estou velho, mas como diz o ditado, já comi mais sal do que eles arroz, já andei mais por pontes do que eles por estradas.
Olhou para mim e disse: São duas mil patacas. No regresso, o meu amigo disse-me que Fóng pák tinha vindo de Sân Wui, fora discípulo dilecto do famoso mestre Wong Pui e herdara o título de “sifu”, o discípulo mais qualificado e preferido após a morte do mestre. Tinha vindo pelo rio para Macau quando os japoneses chegaram a Foshan.
A Macau que conhecera era uma Macau de refugiados, de fome, de gente que vendia arroz aos punhados. No mercado negro um maço de cigarros chegara a custar quarenta patacas.
Trabalhara num junco, pois no mar sempre se vivia melhor. Comia do que pescava, muitas vezes sem arroz.
Entretanto a guerra havia terminado. Muitos refugiados partiram, outros ficaram. Ele ficou a trabalhar em terra, na ponte cais ali defronte. Aos poucos tornou-se encarregado. Ao mesmo tempo ia curando este e aquele e a fama de “tit tá” foi-se espalhando. Mas recusara sempre ter tabuleta à porta. Só há bem pouco tempo deixara de parte o láne de peixe e ficara apenas como endireita.
Não me foi adiantado muito mais, mas agradeci muito o que tinha feito por mim. Depois, já sozinho, sorri ao recordar o ditado que o velho recitara: “Comi mais sal do que eles arroz”. Falava pouco, mas na sua idade avançada, a experiência conferia-lhe sabedoria.
Memórias de uma Macau que já não volta
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