Intangível é palavra imaterial, como todas as palavras,
floração de ideias e memórias.
Neste vestíbulo do século XXI, as ideias devem presidir
ao bem comum, assentes em bases culturais que denotem discernimento, sentido de
pertença e de futuro, nutridas pelo alimento do passado comum.
Um adolescente, que participou na consulta sobre o
destino a dar ao edifício do velho Hotel Estoril, terá dito que se a memória
era colectiva, essa não era a dele. Isto é, exclui-se do colectivo. Pensará,
porventura, que isto de colectivo é um valor dividido por gerações. Não tem
culpa de viver na ignorância e na inocência. A inocência perdoa-se. A
ignorância, a verdadeira ignorância, afirmação repetida até à exaustão, é não
saber que não se sabe. E isso é uma omissão legada.
Não será, assim, um processo isolado, antes como que uma
epidemia que provém de um tempo para além do tempo do adolescente e que se tem
vindo a agravar com a tangibilidade do vil metal, e que tantos julgam poder
substituir-se ao conhecimento. O dinheiro não tilinta, tange, e nesse tanger
incrusta-se em camadas de ignorância, porque o imaterial deixou de interessar
em sociedades eminentemente materialistas.
Se transformar o já transformado espaço do Tap Seac num
centro de actividades culturais se afigura uma boa ideia, as concentrações só
são desejáveis se contrabalançadas com outros pólos.
Neste campo da tangível intangibilidade, povoada de
memórias, que nem a todos, pelos vistos -independentemente da idade -
interessa, ocorrem-me à memória dois edifícios emblemáticos: o Hotel Central e
o Grand Hotel, ambos numa das principais artérias da cidade, que une o caminho
do antigo Porto Exterior ao Porto Interior.
Este percurso tem vindo a ser delapidado, começando pela
Tabacaria Filipina e pelo Restaurante Long Kei, cujos exteriores por sob as
arcadas foram simplesmente destruídos, quero crer que por crasso mau gosto,
falta de entendimento histórico e cultural do que é património quotidiano, e
continuando pelo velho e desaparecido Soi Cheong, de quem Manuel da Silva
Mendes era amigo e frequentador. Em seu lugar, aços polidos, vidros, carnes
secas, pastéis, sapatarias, tudo naqueles ajoujados brilhos de novo-rico,
equívoco dos equívocos.
O Hotel Central é charme em potência. Não sei a quem
pertence hoje, mas o estado a que chegou é de tal modo decadente que constitui
um gritante cartaz do abandono. Embora pintado, a quem (não) servirá um hotel
de interiores Art Deco que noutras épocas foi o centro da vida diurna e
nocturna de Macau, quando era propriedade da Tai Hing de Kou Ho Neng e Fu Lou
Iong? Abandono que partilha com o
esventrado Grand Hotel, por onde passaram estrelas como William Holden.
Possivelmente, à noite, bailes fantásticos com orquestras
de metais, figuras de ópera chinesa esvoaçando sobre os ecos de pregões das
iguarias do iam chá, enquanto os
anúncios do Fan Tan e as cestas a descer do piso superior com as apostas,
entremeadas de gritinhos de damas acompanhantes de jogadores mais prósperos,
percorrerão fantasmagoricamente esses espaços vagos, tão vagos quanto estava o
edifício do antigo Tribunal, aguardando resgate total e retorno aos seus tempos
áureos.
Poderá parecer redundante falar sobre esta matéria, mas
perante a ganância pelo metro quadrado, não basta apenas prevenir. É preciso
valorizar, dar-lhes uso intensivo para que não perpassem décadas de olvido
antes que se olhe para estes testemunhos.
A Memória, essa, não se secciona. Mas, infelizmente, já
vamos com várias décadas de atraso em relação ao que deveria ter sido feito.
Faz porém falta uma lei mais estruturada sobre a preservação de interiores. Não
são apenas as fachadas e montras dos edifícios que têm importância. É preciso
que indoutos se não imiscuam naquilo que pertence a todos.
Como exemplo, refiro, na cidade do Porto, o antigo Café
Imperial, na principal praça da cidade, hoje transformado num Mc Donald's. Se a
notícia é banal, o que merece referência é a preservação do seu interior e
fachada, onde apenas foi permitido colocar o nome da cadeia de fast food.
Impõe-se, para o que resta do Património desta cidade, um
grande rigor, tão grande quanto a intolerância para o tabagismo. Afigura-se
imperativo que se autonomize o Património para aliviar a carga, já pesadíssima,
atribuída ao Instituto Cultural de Macau. Trata-se de uma questão de eficiência
que requer, como em todas as áreas, a presença de especialistas para cada ramo,
com a mesma abordagem que as Universidades têm pelo mundo fora. Que venham os
melhores, não importa de onde. O que interessa é que se definam princípios mais
restritivos, porque o sentido do colectivo começa com a preservação do tangível
para o sustento da intangibilidade.
"Poderá parecer redundante falar sobre esta matéria, mas perante a ganância pelo metro quadrado, não basta apenas prevenir. É preciso valorizar, dar-lhes uso intensivo para que não perpassem décadas de olvido antes que se olhe para estes testemunhos."
ResponderEliminarO que mais me revolta é que creio bem que este abandono, este presumível esquecimento, é propositado.
Para poder deitar abaixo e construir em altura.
Mais caixotes com buracos, em doses brutais de mau gosto.
Grande abraço, bfds