O Tempo é Espaço onde a Memória reside, onde flui e se
vivifica, ressurgindo como viagem dimensional para retomar o fio da meada, à
maneira de Teseu.
Esse Tempo que tudo leva ou traz é, em si, o novelo que
transporta o passado e com ele uma parte pequena do que era Macau:
O Hotel Riviera ficava na Rua da Praia Grande. Grandes
arcos de volta perfeita, ornados de janelas em madeira escura, rematavam o
rés-do-chão da fachada. Os dois pisos superiores tinham aprazíveis varandas que
repetiam os mesmos arcos. A porta principal giratória dava para o salão de
jantar, de sobrado escuro, onde, num palco à esquerda, uma orquestra tocava nas
matinées dançantes. O ambiente era sombrio, apropriado a combater a canícula do
verão. Silenciosas ventoinhas giravam no tecto. A área sob as varandas dos
andares superiores era o lugar de eleição de tertúlias, que ali faziam os seus
convívios frente à placidez da pacata Praia Grande e do aterro ainda parcamente
povoado. Ao lado, entre o edifício do Tribunal e o Riviera, ficava uma
simpática vivenda, sede da Sociedade de Abastecimento de Águas de Macau,
propriedade de Pedro José Lobo.
Saindo pela porta lateral do Hotel Riviera, onde um
balcão vendia famosos pães-de-leite, abria-se ao passeante o início da Avenida
de Almeida Ribeiro e, defronte, o ainda sólido edifício do Banco Nacional
Ultramarino.
Mais adiante, na esquina da Rua Central, um polícia
mouro, turbante verde rubro com franjas da mesma cor, estrela de seis pontas no
centro da atadura da cabeça e barba negra colhida numa rede, desenhava uma
figura imponente que causava algum temor.
No quarteirão seguinte, antes de se chegar ao edifício do
Leal Senado, uma porta dava acesso a um salão de bilhar no primeiro andar, funcionando
no rés-do-chão o Café Ruby, onde a juventude se reunia, e que se distinguia
pela coluna com um dragão de olhos acesos. Depois ficava a loja do senhor Lemos
e uma outra do Paquistanês "Moosa & Cia.". Pintada de cor creme,
em estilo Art Deco, a Tabacaria Filipina oferecia cigarros, cigarrilhas,
charutos, tabaco para cachimbo e toda a parafernália necessária. Seguia-se-lhe
uma pequena banca, onde um homem baixo, de cabelo à escovinha, vendia cigarros,
bebidas, pastilhas elásticas e tudo o que se desejasse para uma tarde no cinema
Apollo.
Do outro lado da rua, no edifício dos Correios, viam-se
pessoas nas janelas, recorrendo a umas maquinetas rolantes para dispensar
goma-arábica para os selos das cartas, portadoras de saudades e notícias.
O edifício do Leal Senado, virado para o Largo onde a
estátua do Coronel Mesquita ameaçava sacar da espada, com portas secundárias na
fachada, permitia, a quem por lá passava, discernir, por uma, um posto de
enfermagem e sua maca de grandes rodas, e, pela outra, um ar sombrio que o
calor apertava e os fiscais revezavam-se a sorver a frescura do piso de
granito.
O Long Kei como que acenava das arcadas do edifício no
Largo Senado, chamando as gentes a saborear a cozinha cantonense. Outros, mais
devotos à comida macaense, subiam a calçada do Tronco Velho para irem almoçar
ao Clube de Macau, mesmo defronte à Igreja de Sto. Agostinho.
A Pharmácia Popular, ao lado da Misericórdia, ali estava,
o toldo abrigando dos raios solares. Os armários claros, com frascos de todos
os tamanhos, ocupavam grande parte do espaço, competindo com uma belíssima
caixa registadora, atrás da qual se sentava o senhor Ventura, homem de grande
porte. No meio do silêncio, uma balança com pesos de correr constituía a maior
atracção dos que lá entravam. Mais próximo da igreja de S. Domingos, debaixo
das arcadas, um carpinteiro talhava, na madeira de uma arca, histórias de
guerra da velha China, trabalhos então muito procurados pelos militares. Bem
próximo estava a Po Man Lau, simultaneamente Livraria, Tipografia, Papelaria e
Venda de produtos fotográficos.
De quando em vez, um autocarro, corpo pintado de rubro e
tejadilho creme, passava pela Almeida Ribeiro e pelo Largo do Senado. Era
escasso, escassíssimo, o trânsito no tempo do Hotel Riviera.
Muito do aqui narrado já não existe. Esfumou-se na
voragem do tempo e da progressiva transformação da cidade.
O Largo do Senado, cuja identidade o actual governo
protege, era o paradigma de uma praça
portuguesa, como se pode ainda sentir no pavimento de calçada. Contudo, muito
do comércio tradicional desapareceu, como a leitaria e outras lojas que davam ao
largo um carácter próprio. Importa que este ressurja, porquanto também é parte
do legado patrimonial, simultaneamente tangível e intangível. Fazem falta
esplanadas a assumir a pedonização. Faz falta espaço a este espaço, para que
respire no seu conjunto. Faz falta que certas actividades lúdicas sejam
desviadas para outros lugares e deixem este núcleo do Centro Histórico,
património que agora celebra o seu 10.o aniversário de classificação pela
UNESCO, ser usufruído na sua inteireza.
Como dizia Fernando Pessoa, a Memória é a Consciência inserida
no Tempo.
Não se trata de um antagonismo ao verdadeiro
desenvolvimento. Trata-se, isso sim, do desejo que o desenvolvimento seja
autêntico e em todas as frentes, preservando a identidade deste lugar e a sua
história patrimonial, cuja existência futura
depende inteiramente do que hoje se decidir.
Obrigado, meu amigo, pela lucidez de uma memória de quem em Macau nasceu e se criou nos longínquos anos 50 ou 60 (tudo é relativo, para mim serão longínquos por ter conhecido Macau no início dos anos 90). Mas em 1992, já não existiam muitas das lojas, construções e espaços de entretenimento de que falas, e que certamente fizeram parte da tua infância e adolescência. Obrigado por não defenderes o passado tal como era, mas um passado que tem de ser preservado como património de todos.
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