Para ser grande, sê inteiro:
nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe
quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Odes de Ricardo Reis
Faz o teu melhor, mesmo em coisas triviais.
A partir daí, podes alcançar a sinceridade.
Esta sinceridade torna-se aparente.
Sendo aparente, torna-se brilhante.
Sendo brilhante, afecta os outros.
Afetando os outros, muda-os.
Mudando as pessoas, ela transforma tudo.
É somente aqueles portadores da maior sinceridade que
podem transformar tudo.
Se fizeres o teu melhor, um a um, o mundo mudará.
O Homem Superior, Confúcio
Dizer-se que uma cidade é de cultura constitui um pleonasmo,
mais concretamente, um sinal de desconhecimento do que são cidade e cultura.
Enquanto legados multisseculares, quando não milenares,
as cidades são expressões inerentemente culturais, sucessivamente transmitidas
de geração em geração.
Assumir esta evidência é assumir a inteireza da
consciência de um dos mais fortes valores colectivos supra-ideológicos,
incontornavelmente universal: a cidadania!
No século XXI, os valores que devem presidir à
globalidade das culturas urbanas devem ser universais. À boa gestão da urbe, ao
respeito pela sua história, cultura, qualidade de vida, é imperativo construções
que respeitem a sua história, a implementação de parâmetros regulamentados de
urbanismo de qualidade, a educação cívica, transportes públicos, saneamento, e
todo um amplo conjunto de tarefas e objectivos que se devem centrar no cidadão
Ter dinheiro não significa ter riqueza. A riqueza não é
um bem material, não se compra com dinheiro, assim como o verdadeiro prestígio.
Esta a ilação retirada de mais uma visita ao país que, nas faldas da grande
China, ajudou a fecundar uma pequena península, tornando-a única na
singularidade da sua mestiçagem, inteira enquanto verdadeira.
A inteireza é um modo de integridade, uma decisão a favor
da verdade que a si mesma se sustenta.
As cidades harmónicas são inteirezas sem exclusões. São
os legados que chegam até nós, circunstâncias fugazes em relação à perenidade
da pedra.
A grandeza de uma cidade não se pauta pela sua dimensão,
mas pela verdade que ela transporta, em alternativa à decadência, a inverdades
enxertadas e embutidas em camadas de tempo, e de verdades erradicadas,
pulverizadas, trocadas por brilhos de mau-gosto, que acarreta a
inacessibilidade cultural e gritantes incompreensões.
A capacidade de regeneração das cidades depende, por
isso, em muito, das vontades que a elas presidem.
No caso da cidade do Porto, esse mando está disseminado em termos de
gosto, de regra e de regulamentos, nessa inteireza de que nos fala Ricardo
Reis. Se a Pessoa lhe cabem bem os heterónimos, às cidades são-lhe reservadas acumulações
de tempos e expressões, merecedoras que são da autenticidade que lhes devemos.
Esse é o caso da revitalização da Rua das Flores na
cidade do Porto. Uma recuperação que constitui o resgate de abandonos ou
ruínas, pela reposição contemporânea da tradição arquitectónica, retomando a
continuidade do discurso do granito, do azulejo ou da parede (bem) pintada.
Essa continuidade constitui, não um pastiche que é uma inverdade de mau gosto e kitsch, pele que se coloca sem se ter conhecido ou vivenciado a
origem, mas antes a expressão de um ADN em diferentes momentos no tempo.
Tudo o que se me patenteou aos olhos na Rua das Flores
foi uma contemporaneidade respeitosa das origens, uma contiguidade do ontem no
agora, esteticamente bela em termos formais.
O Porto, enquanto cidade, está mais bonito do que há um
ano, e a Rua das Flores floriu. Músicos
de rua que a animam, portas velhas revisitadas pela cor, casas antigas inteira e
impecavelmente recuperadas, a rematar o imperativo da ideia. É o hostel soberbamente reaproveitado, é o
hotel de luxo anunciado para breve, é a ourivesaria sucinta e bela na sua
limpidez, são as esplanadas pejadas de cidadãos e de turistas, a imponente Misericórdia,
e o brasão esperançado na recuperação breve, para um outro fim.
Por aqui passeia-se história a desaguar no presente. Por
aqui, a herança cultural insemina, como seria de esperar, o gosto bom.
As Cardosas oferecem-se ao olhar em planos diversos, num
pátio triangular para onde se debruçam fachadas recuperadas, em exercícios de
cor e de planos, num convívio discreto e civilizado.
De tudo isto sobressai a qualidade da mão de obra, daquela
que sabe verdadeiramente lacar ou pintar, exteriores e interiores impecáveis
nos acabamentos, onde se sente o prazer
de fazer bem até ao mais pequeno detalhe - põe quanto és no mínimo que fazes.
Pergunto-me quando é que na minha cidade natal se perdeu esta
tradição. Pergunto-me quem terá construído o Teatro D. Pedro V, o estuque
original do medalhão da fachada de S. Domingos, o Clube Militar? Quem construiu
a bela biblioteca do velho Leal Senado? Os móveis de pau-rosa, de pau-preto ou
de huang hua li, em estilo chinês ou
ocidental, já não se fabricam em Macau. Também as gerações de mestres, outrora
formados nas escolas salesianas, foram substituídos por curiosos sem preparação,
seguindo os ditames corrompidos dos sifu.
Tudo se vai tornando descartável. A cidade pede qualidade e tranquilidade, mas
é-lhe exigida rapidez desvairada, e oferecido ruído, poluição e confusão, também
esteticamente.
Porém, a cidade somos todos nós, a cidade é, como já foi
dito, um legado. Cabe a governantes e governados, cidadãos em geral, proceder
ao resgate desta urbe antiga.
Os finais do anos 1960 deram início à sua descaracterização.
Perdidas algumas raízes, há que firmar o terreno desta cidadezinha, cuja mais-valia
é a sua singularidade e a hibridez que ainda se respira, para que não se
desmorone e não empenhe o seu futuro.
As fotografias da Rua das Flores, que aqui ficam, são
testemunhos de vontades do que foi aflorado e que urge implementar em força,
contra ventos e lobbies, aqui nesta cidade que se deseja venha a ser Centro Mundial
de Turismo e Lazer.
Ver aqui a versão do Jornal Hoje Macau
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