Conheço Konstantin Bessmertny "desde sempre".
Nesse tempo, o ponto fulcral onde se consagravam os artistas que viviam em
Macau era a Galeria do Leal Senado, espaço central, muito apetecível, mas muito
exigente. E era assim para que houvesse um critério perceptível e legível a
todos, assente num só parâmetro: qualidade.
Konstantin vinha da Escola Russa de pintura, o que
o qualificava à partida e as portas abriram-se-lhe. Macau ganhou um pintor,
todos ganhamos.
Mais tarde, com os casinos a multiplicarem-se, emergiu o
tema que lhe proporcionou o arranque definitivo para um outro patamar, tendo
Macau como leit motiv.
A sua próxima exposição no Museu de Arte de Macau
justificou esta conversa, que partilhamos com os leitores.
A.C.J.- Em latim, ad libitum
significa a bel-prazer, o que remete
para a noção de liberdade. Pensas que isto
se trata de um lugar comum? Acreditas na liberdade? Gostarias de definir a tua
noção de liberdade?
K.B.- A liberdade é certamente um
ingrediente essencial da criatividade. No entanto, deve acarretar
responsabilidade e respeito mútuo. Mas, na verdade, a palavra liberdade é hoje
usada na realpolitik para encobrir a barbárie,
a impunidade e a decadência.
Em termos artísticos, a liberdade de expressão
traduziu-se numa democratização da criatividade e, gradualmente, efectuou a
passagem linear da “arte” à “anti-arte” e, finalmente, à “não-arte”. Vivemos
num tempo semelhante ao período imediatamente antes da queda do Império Romano,
quando entretenimento e design se tornaram nas coisas mais importantes.
Van Gogh é fantástico para decorar quartos de hotel, Rothko
é excelente para um átrio de escritório e Warhol para uma sala de estar.
Qualquer artista de Zhuhai ou de outra “cidade artística” nos pode executar uma
fantástica cópia. Na verdade, comecei a pensar que a história da arte, desde
meados do século XIX, quando a Europa foi inundada por objectos decorativos
exóticos vindos das colónias, não passa de um encadeamento de revoltas por
parte de diletantes desprivilegiados contra o status quo temporário e que a liberdade, nessa progressão, era
apenas um baixar da fasquia.
Penso que a liberdade na arte deveria significar uma
busca por algo anterior a toda esta ramificação de “ismos”, desafiando as
doutrinas e instituições artísticas dominantes.
A minha história favorita a este respeito é a seguinte:
Sviatoslav Richter estava a tocar a Fuga N.14 em fá
sustenido de Bach ao piano. Gene Simmons, da banda Kiss, com o seu rosto pintado, apareceu, lançou as mãos à sua
guitarra baixo e exclamou na direcção de Sviatoslav – “Agora és livre, por
favor dá asas à tua expressão!”
A.C.J. - De alguma forma, fazes lembrar-me Hieronymus Bosch ou Peter Brueghel, o
Velho. Vês alguma semelhança entre o que se faz no século XXI e o trabalho daqueles
artistas? Como reagirias à palavra “sátira” nas tuas obras? Pensaste,
porventura, num público específico para esta exposição?
K.B. -Acabei de visitar a
exposição do 5.º centenário de Bosch no Museo del Prado.
Uso com frequência composições maximalistas com
narrativas que cobrem toda a superfície da tela, recorrendo normalmente à
linguagem visual da alegoria ou da fábula. Gosto de recorrer à sátira e ao
sarcasmo que tenho na minha caixa de ferramentas. Adoro recorrer a todos os
símbolos e formas semióticas de comunicar disponíveis e construir ideias
complexas.
Prefiro não me dirigir a um público específico. O que
quero é desafiar-me a mim mesmo, sem me preocupar com o número de “likes”.
Preferiria ter apenas um “like” de alguém cuja opinião me seja importante.
Imagina, por exemplo, que colocavas uma imagem de uma
obra tua no Instagram. Preferias ter um “like” de Da Vinci, ou 1000
"likes" dos fãs de Kardashian?
A.C.J. - Será que Ad Lib satisfaz a tua libido artística? De
que forma se tornou Macau numa espécie de desafio, ou, em termos mais simples,
numa inspiração para ti?
K.B. - A minha percepção do mundo mudou desde que comecei a trabalhar em
Macau. O que aqui descobri foi uma versão miniatura da Babilónia, na qual os
seres humanos misturavam deliberadamente tudo o que estava à sua disposição. É
como se um ser superior e invisível conduzisse as suas experiências primeiro em
Macau e, só depois, no resto do mundo. Devido à dimensão de Macau, e à sua
relativa transparência e liberdade, é possível, sem grande esforço, observar o
homem no seu melhor e no seu pior.
Para mim, este é indubitavelmente um dos locais mais
inspiradores do mundo. Nisso, estou inteiramente de acordo com Ian Fleming (“Thrilling
Cities”).
A.C.J. - Vejo no teu
trabalho a inclusão de muitos capítulos da história da arte do século XX, desde
o uso da iconografia (vindo da arte Pop) até todo um leque delirante. Esperas
ser compreendido pelo espectador médio? Qual é o teu objectivo? Será o de
provocar? Porquê? E depois qual será o próximo efeito?
K.B. - Podia apenas indicar-te
as obras de Mario Vargas Llosa, “Notas sobre a morte da cultura”, e de Octavio
Paz, “Corrente Alterna".
A.C.J. - Espectáculo, Panem et Circenses...
K.B. - A alta cultura (clássica)
foi rebaixada e a baixa cultura (folclórica, tribal, decorativa) foi elevada a
cultura pop de modo a satisfazer a procura popular e o lucro. A sociedade que
estamos hoje a criar venera apenas “lucro” e “sucesso financeiro”. A base da
pirâmide sente-se feliz quando é bem entretida e tem a barriga cheia.
Existem fórmulas fáceis para um sucesso temporário quando
se tem por alvo um público dilatado. Mas eu ainda prefiro seguir os meus
valores. Sinto o dever de influenciar e educar, mesmo a um público que seja
presa da ilusão.
No que se refere a doutrinas e instituições artísticas,
creio que o único caminho é o da dúvida e do desafio.
A.C.J. - De uma perspectiva
mais pedagógica, e considerando também que as tuas origens estão na escola
russa, na qual a cultura tinha uma importância crucial (como em todas as
grandes escolas artísticas), como vês Macau enquanto local que possa acalentar
quem aspire a ser artista?
K.B. - De início, estive em
Macau apenas para uma exposição colectiva em 1992. Dadas certas circunstâncias,
tive de prolongar a minha estadia. Tive inúmeras oportunidades de deixar Macau,
o que, de facto, fiz em diversas ocasiões. Mas, gradualmente, apercebi-me de
que Macau era o lugar ideal para sobreviver enquanto profissional, sem ter de
entrar no ambiente hiper competitivo de uma grande cidade, como Paris, Londres
ou Nova Iorque. Aqui, podia prosseguir as minhas experiências e projectos,
podendo depois expor em qualquer outro lado.
Felizmente, desde há algum tempo, Macau é uma pequena
cidade artística muito activa, com a primeira bienal de arte asiática e uma
comunidade substancial de verdadeiros apreciadores de arte.
Agora é uma cidade muito diferente, apesar de ainda haver
algo no ar que me faz sentir inspirado e cheio de energia.
Obviamente, dada a sua dimensão e outros factores, Macau
não consegue suportar uma comunidade artística muito alargada, embora exista
algum espaço para iniciativas artísticas não comerciais.
A.C.J. - Como vês a
compatibilidade entre o formalismo de Macau, os resíduos de confucionismo
tradicional chinês na Educação e a necessidade de transformação que deveria
ocorrer quando mergulhamos no mundo de Kant, Nietzsche, Oscar Wilde e
Bachelard?
K.B. - Eu estenderia essas
questões a um mundo mais amplo, para além de Macau. Em algumas áreas, como no
jogo e entretenimento, Macau poderá ser uma das cidades mais importantes do
mundo. Mas noutras, é apenas como uma pequena cidade de província. Uma das suas
características é, precisamente, o seu potencial ilimitado de desenvolvimento,
mas necessita de um melhor sistema educativo e de uma competição mais aberta. É
ainda uma extraordinária encruzilhada cultural e melting pot, podendo
deveras produzir algo de inesperado a partir de todos os ingrediente à sua
disposição.
A.C.J. - O catálogo desta
exposição não é aquilo que se esperaria. Tem um formato de revista. Recorres a
ele para completar o delírio de toda a exposição, trata-se de uma mais uma
provocação ou, ainda, de uma nova forma de liberdade?
K.B. - Vivemos num tempo de
transição, em que não podemos aplicar antigas fórmulas. A fórmula do catálogo é
uma experiência. É uma paródia do brilho superficial, do glamour e do pop. Mas também contém aquilo que se espera de um catálogo
convencional. Entramos agora na idade digital. Livrarias, revistas e quiosques
de jornal começam a fechar, mas talvez esta seja também uma forma de introduzir
valores diferentes numa forma de comunicação moribunda e de manter todos os
profissionais à tona.
O catálogo da minha recente exposição na galeria Rossi
& Rossi teve a forma de cartas de tarot.