terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A GRANDE FESTA

PEQUENO GUIA PRÁTICO PARA O SPECTACULUM



Está patente na sala maior de exposições temporárias do Museu de Arte de Macau uma mostra chamada Ad Lib, de Konstantin Bessmertny. 
Independentemente da etimologia latina e da linguagem musical, Ad Lib representa a convergência dos discursos plásticos e da criatividade patente num autor proveniente da escola russa de pintura.
Porém, para saber é necessário aprender. Depois, opera-se a decantação do aprendido, eliminando o excesso, para que, então, se possa partir para o caminho da identidade e afirmação artística. 
Se tivesse vivido na Paris dos finais do século XIX, talvez Konstantin tivesse uma atracção idêntica a Degas ou a Toulouse-Lautrec. Como vive em Macau, é aqui que encontra inspiração para a elaboração de algo que apetece chamar de Espectáculo, para um olhar sobre alguns espectáculos da vida.
Esta não é uma instalação nem uma mera exposição de pintura. É, antes do mais, a apropriação e um retrato plural denotativo de todos os elementos da realidade, com a capacidade de recuperar toda a envolvência para a sua/nossa festa. 
Espectaculum vem do latim spectare, ver, e de specere, olhar, e aí caímos no caminho também desejável da semiótica que Konstantin nos oferece.  Entre o olhar e o ver vai a distância dos signos.

A MORTE DA LIBIDO E O APETITE
O apetite é essencialmente insaciável e, quando opera como critério de acção e prazer (isto é, em todo o mundo ocidental desde o século XVI), infalivelmente descobrirá modos de expressão (mecânicos e políticos). Marshall McLuhan

Detalhe de L'État c'est Moi


Não sendo nem Degas nem Lautrec, afastadas as hipóteses de Bosch e Peter Breughel o Velho, resta admitir que Konstantin só pode ser ele mesmo, elevado à potência que a ele próprio se conferiu nesta exposição.
Entre o Spectaculum e a Grande Boeuffe que é este evento, sente-se patente a libido criativa do artista, que aborda a carne como carne, liquidada que está a subtileza da sensualidade e do erotismo para apenas ficarem mulheres reduzidas a figurantes, que assim os homens querem e anseiam ter à disposição para consumo, sem preliminares que desconhecem, bem como cenas onde a boçalidade e o burlesco presidem. Há, nestes mundos retratados por Konstantin Bessmertny, um apetite insaciável, um elogio à ganância das sensações e à gula dos momentos.
Estas grandes pinturas, não no tamanho mas sobretudo no alcance, de escárnio e sarcasmo, retratam o grotesco e o trágico social, oriundas de uma imaginação toda ela alimentada pelo impenitente e impertinente olhar de Konstantin Bessmertny.

A KINETOGRAFIA E A PINTURA
Em formato panorâmico, Konstantin apresenta uma série de pinturas nas quais transporta para a tela cenas do grande écran e onde introduz subtítulos, mais uma vez provocatórios e inteligentes, intervindo na simulação de uma outra linguagem através da sua.
Artur Bual, quando nos finais dos anos 1960 profetizou que a linguagem do futuro seria o cinema, estaria muito longe de imaginar que hoje qualquer um pode filmar com um telemóvel. Todo o passado converge, assim, para esta interpretação do fotograma, congelamento do kinético, afirmação profética de inquestionáveis e inconvenientes verdades. 
É neste constante deambular, nestes saltos entre temáticas onde reside a irrequietude de um espírito culto,  lúcido e, consequentemente, crítico, escondido sob a aparente paródia dos excessos e dos gostos kitsch, que emerge o confronto entre a(s) obra(s) e o público, aqui mais habituado ao culto do politicamente inócuo, esse sim, por omissão, ignorância ou auto-censura, falhado. 

ASSAMBLAGES
Assambler, juntar, junta. Não de bois, mas do carro outrora de luxo que, para além de objecto recuperado e de desfile de ostentação, nos remete para aquilo em que se tornou: carcaça ferrugenta, passeando cacos de gesso clássico, memórias de outros séculos.
Mais além, um escocês funde-se com um samurai, de mergulho, operando-se a fusão do absurdo, metáfora outra que mereceria mais do que provocar riso ou estupefacção.  A arte com conteúdo, perdoe-se-me a redundância, é em si uma afirmação a ser degustada, analisada, reflectida.


VICTORIA, BAKUNIN E RASPUTIN



Três grandes retratos ocupam uma parede da sala de exposições. A rainha Victoria apresenta pechisbeques, unhas de silicone na mão direita, e um sem número de condecorações, cada uma delas merecedora de análise. O olhar deve percorrer toda a tela, porque a cada centímetro quadrado se depararão insólitas surpresas. 
E se este retrato é assim, os de Bakunin e Rasputin devem merecer o mesmo escrutínio.
Konstantin Bessmertny estabelece, com esta exposição, um marco na História da arte de Macau difícil de igualar. Na sua mostra estão contidos todos os ingredientes para uma análise e crítica dos costumes que por aqui e em toda a parte reflectem uma porção da natureza do ser humano.

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