Sempre me disseram – e sempre reconheci ser exacto – que para cantar é
necessário ter uma voz. Uma verdade exclusiva que palpita com o coração. Um
engenho. Que emerge como um pequeno dado genético, que se vai desenrolando,
seguindo para uma existência invulgar, tornando-se resiliente na evolução gradual
do indivíduo em sociedade. Ampliando o talento, a precisão e a nitidez. Como
uma desordem matemática, a dissipar-se de geração em geração, os rituais de
interacção encaixam-se e formulam novos caminhos. Contudo nesse complexo
químico, de ciência e de acasos, o corpo humano é o resultado de uma mesma
arquitectura. A destreza e a faculdade, que criam essa fisionomia de coisas
possíveis, estão-lhe incorporados desde a sua fundação. O Homem, esse bicho
raro. Uma coisa grande de se ver, irrequieto, cheio de paixões e ímpetos em
ebulição, mas também pejado de contradições.
Capaz de tudo, António Conceição Júnior, homem acima de tudo macaense,
acredita que todo o dom se constrói, que se molda pelo áspero de uma virtude,
essa zona alvoraçada da criatividade, que é preciso despertar e ensinar a
caminhar, como quem pega na frescura de um principiante ou na mão de uma
criança. Como uma luz. E assim, na pertinência de uma vida, se compõe um
destino. O rumo. Que não cai nas mãos apenas pelo elementar ritmo de uma roleta.
A voz, o traço, a inspiração. São elementos que se edificam a cada passo da
vida, a todo o momento de ponderação e foco. Fortificam o tronco da árvore,
florescem os seus ramos, exceliam os seus frutos.
É nesse suavizar do imprevisto que encontramos António Conceição Júnior, no
cálido ano de 1976, professor numa escola secundária, no rascunho do seu
atelier, em Vila Franca de Xira. Bem longe da sua terra. Antes de toda uma
juventude em Macau, um serviço militar, uma faculdade. A turbulência de uma revolução.
O sabor do Tejo. A preencher os intervalos de uma impaciência espiritual
distinta, onde ponderava o olhar atento para certas realidades, aquelas que não
se escrevem e não têm assumpção prática, corpo ou matéria.
Sem a voz primitiva, não é exacto se foi mais resistente a ciência ou o
acaso. Mas é da saudade do Oriente, ou dos fragmentos da desmemória de um
postal ilustrado, que nasce o manifesto de uma obra que recolhe tradição e mito,
num adágio que se amplifica por entre os cantos das páginas. Lado a lado. Como
uma ave nas suaves margens de um templo, em pé-de-vento. De olhos cerrados,
escutamos. Um piar, um murmúrio. Essa voz a ganhar o seu tom. Eis o Homem. E o
engenho a encher-se de brilho. Que na destreza da fala, envolta em tradição e
rumor, surge em pleno por entre as novas normas da urbe. O homem urbano que se
foi confecionando por entre ruelas repletas de fábulas. E o traçado, cheio de
sabores e aromas, a construir-se no fundo vazio de uma folha em branco. Por
lembrança. Por nostalgia.
E como dizer?
Ao longe. Aqui próximo. Agora. Num tempo sempre em continuo sem quebras. O
vislumbre e o paladar da alegria cândida do acto de puxar o futuro para mais perto.
Ou será o passado? Ainda e sempre no doce fio da melancolia da terra. À sombra
da telefonia. Os dias. Sol atrás de sol. Meses a fio. A vida decorre nos
relevos do papel como um regresso antecipado. O dom cheio de consistência a
comandar o seu tempo. Espadas, alegorias, ventos. Deixam as linhas da marquise
em reboliço, expressas num idioma que desconhece. Os filmes de Kung Fu e a
rebelião dos Boxers, por resistência à presença forasteira. O traço preciso. O
ímpeto da ordem. A intransigência do movimento. Elementos de um exercício de
aprendizagem que penetram nas linhas de um mestre que se idealiza com as
próprias mãos e que partem em todas as direcções, nos cordéis de uma rua esconsa
debruada a tinta da China, no enevoado dos Setentas, sob a égide deste
professor macaense.
Vemo-lo, mais uma vez, dissimulando as várzeas claras do papel, a perscrutar
o maior rio da península, de onde partiram companheiros e descobertas. O olhar a
demarcar-se da vida por viver. O esboço. O leito que corre. Depósito de águas
escuras e invernais, que caem não para a capital, abotoando a campainha de uma
trigonometria que não esmorece com o desejo ou o vício. Lá longe, num estuário
cheio de pérolas. O capitão que se ancorou a uma vela e acorrentou as brisas
fortes. Adiante, sempre adiante, entrelaçando séculos de história. A semente
que se fez até nós. O tronco forte da árvore. O fruto de um alimento. Numa
palavra que junta o território ao seu sufixo, na herança harmonizada para
posteridade, dos portugueses nascidos
na terra.
Lusíada da diáspora, sim. E navegante. Corpo jovem a escoar o anseio pela arte
marcial que se desorienta a caminho de Alverca e que se realiza nas páginas de
uma banda desenhada. Como as tábuas dos antepassados. O Professor e o Mestre.
Ambos a adquirirem a sabedoria acutilante da justificação de um brando costume.
Do caminho e da virtude. Passo a passo. No esfumar do tempo que, ao voltar para
trás, constrói um depuro porvir, remando nas vagas de prazer que compõe esta
pequena sinfonia repleta de onomatopeias. Com mais de três décadas de interregno,
o claro-escuro de Vong Fei Hong - herói que resiste ao descobridor e à variante
de um desígnio - e o Vento de Santung, regressaram ao prelo, numa edição renovada,
mas em todo idêntica à primeira, agora desaguando na terra que os criou. Um
território que não vive do canto nem do engenho mas que, como todas as ciências
imprecisas, nas quais tendo a acreditar, se poderão suportar as encostas de uma
aprendizagem explicita. Com rigor. Com persistência. Com as figuras vivas, que
vivem acima da turbulência de qualquer instituição, das quais António Conceição
Júnior é um singular exemplo e uma das marcas da cidade. Fiquemos com a História.
Que tudo dita.
António Falcão (2010/2019)
NOTA: Texto de introdução à obra gráfica de
António Conceição Júnior “Vong Fei Hong – O Vento de Santung”, reeditada em
2010, que aqui se adapta homenageando a figura de um homem inventivo de Macau,
reportando um momento particular da sua vida.