Só o uso preserva o edifício da ruína, tanto quanto a palavra sustenta a linguagem.
Imagino o que seria aquilo que diversos autores chamavam de cidade chinesa, ou cidade pagã, por vezes também confundida com o bazar, tal era a densidade das habitações, quando ainda não tinha sido rasgada a importante via que iria ligar a Avenida da Praia Grande ao Porto Interior.
Seria um emaranhado de ruas estreitas, interiores, vielas, travessas, cuja estrutura ainda hoje se pode sentir dos dois lados divididos pela San Ma Lou (新馬路,a nova avenida), a que chamamos de Almeida Ribeiro.
Pela sua importância, associo aqui a excelente crónica de Manuel V. Basílio que historia a construção desta Avenida de uma forma exaustiva e com documentação fotográfica importante.
No Bazar, coração da cidade chinesa, jogava-se o Fantan no Pátio da Caldeira e em outros similares.
origem: Jon Doo
Fantan jogado na Praça da Caldeira
origem: Jon Doo
A Rua da Felicidade em 1905
Rua da Felicidade 1960s (de notar a diferença de um piso comparada à foto anterior)
O histórico distrito do prazer situava-se bem próximo do Largo do Senado. Por lá, nos kou lau, comia-se e bebia-se mau tai (aguardente de arroz) enquanto as cortesãs, muitas adolescentes, aprendidos os ademanes da profissão, cuidavam dos convivas, preparando-os para a conversa.
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Adolescentes tocando música séc. XIX
As casas tipicamente chinesas desta zona não eram grandes. Talvez umas se destinassem a lautos jantares, bebida e ópio, e outras às conversas que a raparigas teriam com os seus clientes.
Como distrito vermelho, cor chinesa da Felicidade, não seria por acaso que a rua e o beco tivessem esse mesmo nome.
Há dias deambulei por essa zona e, nas fotografias que publico, pode ver-se o novo ciclo de decadência, trazendo-me à memória o que escrevi nos idos anos da década de 1990.
copyright António Conceição Júnior
O vermelho ainda está presente
copyright António Conceição Júnior
Porém o abandono desfia a madeira e o vermelho
Recentemente a imprensa noticiou que a Rua da Felicidade será classificada como uma das “novas maravilhas de Macau”. Será que a ideia de pintar de verde as portadas deste “novo” lugar único se mantém?
copyright António Conceição Júnior
O que estará por trás da aplicação do verde? Será preconceito ou ignorância?
Desde sempre me recordo de ver ou de uma cor desmaiada a roçar o castanho sangue-seco, ou então num vermelho-quase-vermelhão, fazendo as janelas do piso superior ressaltar, compostas por delicado trabalho de hexágonos de madeira com madrepérola translúcida a substituir o vidro, com as portas a explodirem de cor contrastando com o branco das paredes.
copyright António Conceição Júnior
Vermelho, uma questão de memória
Lembro-me de ter pedido a revitalização da Rua da Felicidade e ter usado a velha máxima de que “mais vale ensinar a pescar do que dar um peixe”.
Definir toda a rua como Património não era novidade. Era evidente. Mas já nessa altura entendia que para haver preservação era necessário dar uso cuidado às casas daquela e de todas as ruas com história.
Pintaram-se as fachadas, mas, por razões que desconheço, pouco mais se fez. Os restaurantes que serviam iguarias esquisitas, como águias e escamudos rastejantes, fecharam. Em seu lugar surgiram exteriores “ruidosos” e interiores em que, o duvidoso mau gosto (ou ignorância) dão a impressão de que, a qualquer momento, poderá aparecer alguém a arrastar chinelas sobre o chão de quadrados cerâmicos fabricados ontem.
Ingenuamente, imaginei então a criação de um grupo de trabalho que iria reunir com os proprietários, oferecendo informação não apenas sobre renovação e preservação, mas também de modelos de negócio que integrassem a zona: restaurantes cuidadosamente preservados, hotéis de charme ou hospedarias chinesas (como vi em Ping Yiao), restituindo dignidade à história dessa rua.
copyright António Conceição Júnior
O fecho de uma alfaiataria ou a queda dos artesãos.
O que constatei agora, passados quase trinta anos, foi o abandono do vermelho, o fecho de uma alfaiataria que outrora deve ter feito cabaias tradicionais infelizmente caídas em desuso, e o surgimento de restaurantes desenquadrados na vocação e tipologia.
Sobre o grupo de trabalho, possíveis empréstimos sem juros ou com eles bonificados, para reconversão, não sei se existe, pois nunca ouvi falar de um para este fim.
Nesta zona, entre outras, poderia assistir-se ao regresso, sem muito esforço, da autenticidade que não o pastiche em moda, do recurso a modelos de negócio adaptados à vocação (que não à história) do lugar.
Lembrando-me que nos anos de 1940, mais afastado do início da rua, o restaurante Fat Siu Lao, famoso pelo pombo assado, era escolha predilecta de tantos, entre os quais Hermman Machado Monteiro, que deixou na ementa o “bife à Monteiro”.
A preservação do Património requer rigor, como a proibição de poluição visual nas fachadas e montras, exigência quanto ao tratamento dos interiores que implica verdadeiro restauro, isto é, respeito, para que não se repitam os descuidos das fachadas Largo do Senado. Veja-se a fachada do prédio onde durante décadas funcionou o "Long Kei" e outros negócios, hoje decorada por aço inox espelhado ou a poluição visual da sua envolvência, incompatível com qualquer preservação patrimonial.
Note-se que a consciência da necessidade de preservação dos lugares faz parte do conjunto de valores que integram a noção de cidadão, de cidadania e de cultura.
Quase trinta anos depois, regresso ao mesmo assunto. Por mim dou agora por encerrada a minha militância.
Esta situação seria (e muitas vezes é) recebida com alguma compreensão e tolerância em aldeias, cidades e até países pobres e com escassos recursos financeiros para prover as suas populações dos bens essenciais de consumo e sobrevivência. Seguramente não é o caso de Macau, como é do conhecimento público. Assim, não se entende o abandono e desleixo de uma zona histórica e emblemática como esta, nem a ausência de um fundo de empréstimos ou facilidades ou isenções fiscais ou outros para preservar condignamente estes espaços exteriores e interiores de Macau.
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