Memória Tua Est Homo
A Memória confere a substância necessária para a compreensão das fundações
de um país, de uma família, de um ser.
Sucede que, por circunstâncias várias, inseridas no irretornável plano da
não consciência actual, o meu país tem Memórias no Panteão, mas não as
transporta no seu DNA.
Confesso-me Português, outro que não europeu, nascido no Extremo Oriente
onde se espraia a incompreendida e ignorada extensão da Portugalidade, naquela
que foi, por séculos vários, a cidade do Santo Nome de Deus de Macau, tão leal
que se recusou a hastear a bandeira dos Filipes.
Convoco aqui as brumas da Memória para dizer que só através delas podemos
ser, mesmo na ignorância quotidiana, uma longitude invejável.
Ocorre-me assim explicitar o que é o Macaense, nação de indivíduos tão
singulares quanto a história genética de cada um. Ser-se geneticamente Macaense é somar em si Portugal
e as rotas de África, da Índia, de Ceilão, de Malaca e do Sião, e ainda todos
os encontros fortuitos com povos com quem se entrecruzou.
Ser-se uma nação de indivíduos, a extensão quase máxima da Portugalidade, a
oito fusos horários de distância, com o mesmo sentimento de portuguesismo, tão
diferentemente igual ao do recanto onde tudo se originou, é ser-se herdeiro de
algo a que hoje se chama multi-culturalismo e que nesta pequena cidade existe
há cinco séculos.
Ser-se Macaense é uma condição que considero de excelência, quando dela
assumimos a plenitude da consciência, essa de conviver com Platão e Confúcio,
com a língua Portuguesa e a Chinesa, e o Inglês, e o Francês. É, desde logo,
operar a descodificação das linguagens e das culturas que se mantêm mutuamente
exóticas e ignaras. A Portuguesa bem poderia ter centenas de sinólogos e não
tem, mas acolhe, deficitária, os Institutos Confúcio.
Ser-se Macaense é ter assistido, passo a passo, à ascensão da China, hoje a
segunda maior potência mundial, é ainda conhecer-lhe a história, a estratégia, os
ritos e as divindades, o Budismo e o Taoísmo e a importância dos Analectos no
edifício civilizacional chinês.
Mas ser-se Macaense é também ser-se objecto da indiferença e do olvido de
um país, o seu, que depois do Comércio da Prata abandonou a cidade que fundou
para ir garimpar ouro para o Brasil, e hoje se centra no umbigo da sua dimensão
Europeia, da sua continentalidade, mesmo quando apregoa o que Luis Vaz
escreveu: dar mundos ao mundo a um Sebastião tão desastroso quanto infeliz.
A consciência da Etnicidade Macaense não pode ser percepcionada. Precisa de
ser vivenciada no Lugar chamado Macau, com a humildade de quem não sabe mas
deseja compreender o sortilégio daqueles que, desde a nascença, falam várias
línguas. Esta pluralidade cultural confere a capacidade inata de perceber e
conjugar os extremos civilizacionais, quase por intuição.
Cada Macaense é em si desigual, cada família única e singular, e já tarda e
arrefece a vontade de compreender a sua potencialidade.
O mundo não é só feito de Ocidente, como a actualidade se encarrega de nos
dar a ver e de reduzir à insignificância o potencial do que poderiamos ter
sido. Agora já entardeceu.
No actual diálogo Oriente-Ocidente surgem inevitáveis dificuldades de
compreensão e entendimento entre os dois hemisférios, excepção feita à ascensão
da grande China, já prevista por Bonaparte e lembrada por Alain Peirefitte.
Um dos polos nucleares de descodificação e mediação intercultural residiria,
porque lógico, em Macau. Os Macaenses constituíriam, aquilo que sempre foram, a
hibridação cultural, o Terceiro Hemisfério, como resposta a Ian Morris na sua “A
Vitória do Ocidente” .
Essa falha, talvez mais profunda do que a geológica de San Andreas, esse
desaproveitamento e omissão, constituem o maior acto de cegueira depois da
visão de Sagres. É a deriva em alternativa à estratégia, saber tão
longínquamente cultivado na China, desde Sun Tzu a Zhugueliang, aliás Kong
Ming.
Foi essa falta de saber transcultural, essa continentalidade inconsciente
da Europa ainda até há bem pouco tempo, que presidiu por longo período aos
destinos de Macau, deitando por terra a antecipação à globalização de hoje. Essa
mesma falha determinou que os do reino para cá mandados nada soubessem destas
paragens, nem a língua, cultura ou costumes.
Depois de 20 anos sobre a transferência de soberania, emerge como
inevitabilidade a falta de entendimento de Portugal sobre Macau, resultando no
desbaratar de um património histórico e sociológico. Jamais se urdiu uma
estratégia de indispensabilidade através da “continentalidade” que seria como
um que terceiro hemisfério, o da conjugação.
Dizer que não houve abandono seria mentir para a história, e isso jamais o
farei.
É comum dizer-se que só quem sai se torna verdadeiramente grande. De Luis
Vaz a Mendes Pinto, Gama a Albuquerque, Pessoa a Pessanha e a Venceslau. Na
contemporaneidade a urgência da saída nomeia-se de Damásio a Pomar, Maria João Pires a Paula Rego, Vieira da Silva
a Saramago, Mourinho e Cristiano Ronaldo, todos heróis, como os que os
precederam.
Esse terceiro hemisfério que não houve e que já é tarde para haver, foi substituído
pela estratégia chinesa para a lusofonia. Resta a amargura de mais uma
cegueira.
Interrogo-me sobre o que permanecerá. Vislumbro que apenas o imaterial,
porque emula a metáfora da areia, rocha indestrutível porque pulverizada.
E nesta singular gesta do lugar e da diáspora, da afirmação e da
dissolução, sobrevém um vendaval de metamorfoses, formas outras através das quais
a história será, apenas isso, Memória.
Nota: Este texto foi escrito originalmente sem fazer uso do novo acordo ortográfico
Brilhante e conciso, como sempre.
ResponderEliminarForte abraço,
António Mil-Homens
Muito obrigado meu caro António,
EliminarUm grande abraço.
ADMIRÁVEL TEXTO QUE É PARA SER HISTÓRICO! PARABÉNS! DÉLIO GOMES EUSÉBIO PEREIRA DA SILVA*
ResponderEliminar