sábado, 16 de novembro de 2019

JÓIAS DE SEDA E BROCADO


Agora que Novembro se desvanece e o Natal se aproxima, ocorreu-me aquilo que já tinha planeado, e que é falar de algum do trabalho da minha amiga e ex-colega na então Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, que ainda se mantém no Largo da Biblioteca.
O que me chamou a atenção e guardei numa gavetinha da memória, foram belíssimos brincos feitos de tecido japonês, e dobrados pelo antigo método nipónico de Origami.
Achei a ideia tão bonita, e o resultado é tão nipónico quanto renascentista, dada a beleza das cores e padrões, que achei meu dever cívico divulgar o seu trabalho, sobretudo depois de já ter oferecido um par de brincos à minha Filha.


Pessoalmente já encomendei mais três conjuntos, agora de alfinetes, precisamente para o Natal. Acho os quadrados de origami belíssimos e a ideia da Marina excelente. Aliás ela tem outras jóias no Facebook sob o nome de Mimi Portugal.
Marina é mais o nome da artista que faz belíssimas gravuras como se pode ver aqui, na Galeria Artur Bual, onde aparece com a filha de Bual, Catarina Bual.


Marina Gonçalves trabalha intensamente em gravura, sobretudo à maneira negra, um processo complicado e muito trabalhoso conforme se adivinhará pela descrição no link.
É interessantíssimo constatar como Marina conjuga a gravura, as suas aguarelas e, igualmente, o seu gosto pelo Japão.

Este pequeno texto ilustrado vem na continuidade de outros que já escrevi sobre outras artistas como Armelle de Lainsecq ou Manuela de Sousa ou ainda Marta Carvalho que no Facebook responde pelo nome de Kristina Mar.
Curiosamente, são todas mulheres. Curiosamente, dou comigo a realizar aquilo que fiz a vida toda: promover ou divulgar o trabalho de todas e todos os artistas que o merecem.
Espero e desejo que saibam fruir as obras de Marina Gonçalves. Merece-o. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

NAS MALHAS DE UM ENGENHO – Antønio Falcão

Sempre me disseram – e sempre reconheci ser exacto – que para cantar é necessário ter uma voz. Uma verdade exclusiva que palpita com o coração. Um engenho. Que emerge como um pequeno dado genético, que se vai desenrolando, seguindo para uma existência invulgar, tornando-se resiliente na evolução gradual do indivíduo em sociedade. Ampliando o talento, a precisão e a nitidez. Como uma desordem matemática, a dissipar-se de geração em geração, os rituais de interacção encaixam-se e formulam novos caminhos. Contudo nesse complexo químico, de ciência e de acasos, o corpo humano é o resultado de uma mesma arquitectura. A destreza e a faculdade, que criam essa fisionomia de coisas possíveis, estão-lhe incorporados desde a sua fundação. O Homem, esse bicho raro. Uma coisa grande de se ver, irrequieto, cheio de paixões e ímpetos em ebulição, mas também pejado de contradições.


Capaz de tudo, António Conceição Júnior, homem acima de tudo macaense, acredita que todo o dom se constrói, que se molda pelo áspero de uma virtude, essa zona alvoraçada da criatividade, que é preciso despertar e ensinar a caminhar, como quem pega na frescura de um principiante ou na mão de uma criança. Como uma luz. E assim, na pertinência de uma vida, se compõe um destino. O rumo. Que não cai nas mãos apenas pelo elementar ritmo de uma roleta. A voz, o traço, a inspiração. São elementos que se edificam a cada passo da vida, a todo o momento de ponderação e foco. Fortificam o tronco da árvore, florescem os seus ramos, exceliam os seus frutos.

É nesse suavizar do imprevisto que encontramos António Conceição Júnior, no cálido ano de 1976, professor numa escola secundária, no rascunho do seu atelier, em Vila Franca de Xira. Bem longe da sua terra. Antes de toda uma juventude em Macau, um serviço militar, uma faculdade. A turbulência de uma revolução. O sabor do Tejo. A preencher os intervalos de uma impaciência espiritual distinta, onde ponderava o olhar atento para certas realidades, aquelas que não se escrevem e não têm assumpção prática, corpo ou matéria.

Sem a voz primitiva, não é exacto se foi mais resistente a ciência ou o acaso. Mas é da saudade do Oriente, ou dos fragmentos da desmemória de um postal ilustrado, que nasce o manifesto de uma obra que recolhe tradição e mito, num adágio que se amplifica por entre os cantos das páginas. Lado a lado. Como uma ave nas suaves margens de um templo, em pé-de-vento. De olhos cerrados, escutamos. Um piar, um murmúrio. Essa voz a ganhar o seu tom. Eis o Homem. E o engenho a encher-se de brilho. Que na destreza da fala, envolta em tradição e rumor, surge em pleno por entre as novas normas da urbe. O homem urbano que se foi confecionando por entre ruelas repletas de fábulas. E o traçado, cheio de sabores e aromas, a construir-se no fundo vazio de uma folha em branco. Por lembrança. Por nostalgia.

E como dizer?

Ao longe. Aqui próximo. Agora. Num tempo sempre em continuo sem quebras. O vislumbre e o paladar da alegria cândida do acto de puxar o futuro para mais perto. Ou será o passado? Ainda e sempre no doce fio da melancolia da terra. À sombra da telefonia. Os dias. Sol atrás de sol. Meses a fio. A vida decorre nos relevos do papel como um regresso antecipado. O dom cheio de consistência a comandar o seu tempo. Espadas, alegorias, ventos. Deixam as linhas da marquise em reboliço, expressas num idioma que desconhece. Os filmes de Kung Fu e a rebelião dos Boxers, por resistência à presença forasteira. O traço preciso. O ímpeto da ordem. A intransigência do movimento. Elementos de um exercício de aprendizagem que penetram nas linhas de um mestre que se idealiza com as próprias mãos e que partem em todas as direcções, nos cordéis de uma rua esconsa debruada a tinta da China, no enevoado dos Setentas, sob a égide deste professor macaense.



Vemo-lo, mais uma vez, dissimulando as várzeas claras do papel, a perscrutar o maior rio da península, de onde partiram companheiros e descobertas. O olhar a demarcar-se da vida por viver. O esboço. O leito que corre. Depósito de águas escuras e invernais, que caem não para a capital, abotoando a campainha de uma trigonometria que não esmorece com o desejo ou o vício. Lá longe, num estuário cheio de pérolas. O capitão que se ancorou a uma vela e acorrentou as brisas fortes. Adiante, sempre adiante, entrelaçando séculos de história. A semente que se fez até nós. O tronco forte da árvore. O fruto de um alimento. Numa palavra que junta o território ao seu sufixo, na herança harmonizada para posteridade, dos portugueses nascidos na terra.

Lusíada da diáspora, sim. E navegante. Corpo jovem a escoar o anseio pela arte marcial que se desorienta a caminho de Alverca e que se realiza nas páginas de uma banda desenhada. Como as tábuas dos antepassados. O Professor e o Mestre. Ambos a adquirirem a sabedoria acutilante da justificação de um brando costume. Do caminho e da virtude. Passo a passo. No esfumar do tempo que, ao voltar para trás, constrói um depuro porvir, remando nas vagas de prazer que compõe esta pequena sinfonia repleta de onomatopeias. Com mais de três décadas de interregno, o claro-escuro de Vong Fei Hong - herói que resiste ao descobridor e à variante de um desígnio - e o Vento de Santung, regressaram ao prelo, numa edição renovada, mas em todo idêntica à primeira, agora desaguando na terra que os criou. Um território que não vive do canto nem do engenho mas que, como todas as ciências imprecisas, nas quais tendo a acreditar, se poderão suportar as encostas de uma aprendizagem explicita. Com rigor. Com persistência. Com as figuras vivas, que vivem acima da turbulência de qualquer instituição, das quais António Conceição Júnior é um singular exemplo e uma das marcas da cidade. Fiquemos com a História. Que tudo dita.


António Falcão (2010/2019)

NOTA: Texto de introdução à obra gráfica de António Conceição Júnior “Vong Fei Hong – O Vento de Santung”, reeditada em 2010, que aqui se adapta homenageando a figura de um homem inventivo de Macau, reportando um momento particular da sua vida.