sábado, 8 de fevereiro de 2020

O SÍNDROME DE GOLIAS


Nos últimos dias, e de uma forma crescente, tenho visto notícias sobre a dispersão do corona virus pela China e parte do mundo e o modo como a minha Macau está deserta, com as suas gentes fechadas em casa e os milhões de turistas ausentes. Também a maior indústria do jogo do mundo está encerrada.


Duas fotografias em especial me tocaram, porque o ruído fez-se silêncio, o feérico apagou-se e tudo está suspenso, como um filme de celulóide que emperrou no projector.
Menor do que o pastor David, um microscópico vírus tem causado muita preocupação no mais populoso país do mundo, e os gigantescos impérios do jogo que existem em Macau ficaram subitamente encerrados.
É em tempos destes que tenho tendência a reflectir sobre a fragilidade de tudo, independentemente da sua escala ou dimensão, e do modo como uma economia se centra e se apoia em Golias que caem suspensos dos danos causados por ínfimos mas mortais virus que, como sempre, atingem os mais frágeis.
Parece nunca ser altura oportuna para se reflectir sobre estas coisas. Pois eu recordo-me como, num funeral a que assisti em Lisboa, era eu estudante, o meu padrinho me apontava os ciprestes e comentava como a natureza é: árvores rijas alimentando-se dos defuntos, negras ironias dos opostos.
Esta reflexão breve, traz-me à lembrança o que o budismo diz sobre a impermanência, e de como o Tao te Qing alude ao momento em que o sol, atingindo o seu auge, é o mesmo momento em que inicia a sua descida. Verdades antigas e lapalissianas, talvez, mas nem por isso menos verdadeiras.
E um momento de crise deve ser  um momento de reflexão alargada, isto é, daquilo que podendo ser feito não foi e do que deverá ser feito num futuro breve. 

Por exemplo, a diversificação económica, não deveria ser conduzida pela Mãe-Pátria, talvez já exasperada, mas sim pensada por todos aqueles que poderiam contribuir e não apenas pelos biscoitos da teixeira (1).
O pior nestas coisas é a exclusão porque injusta, e porque menor. Hoje os chineses de Macau ao olharem para o mundo poderão talvez sentir e – se possível – reflectir se, em tantos lugares onde está a sua diáspora, incluindo os Estados Unidos de Trump, faz sentido a sua exclusão.
Em Portugal houve arremedos disso, mas rapidamente a inteligente comunidade chinesa de Lisboa recomendou que os seus compatriotas regressados do Ano Novo Chinês, se auto-isolassem, seguindo procedimentos merecedores dos maiores encómios até na sua auto-sustentabilidade.
Em tempos há muito idos, Macau era para mim o palco de todas as ficções, onde o sonho era possível. Foi-o no meu tempo do século XX, e muito menos do século XXI, quando a abundância financeira aumentou radicalmente. À mesa do sonho assentaram-se então feéricos e abundantes proveitos, inteligentemente amplificando o que tinha sido um monopólio. Porém o feérico vive à custa dos mais-do-que politicamente correctos e alinhados Golias vindos das estórias de Bram Stoker. Nada de novo, porém. 
Este é um tempo que deveria merecer reflexão a todos os níveis. Da saúde aos transportes colectivos ainda a gasolina ou diesel, quando no primeiro sistema a electricidade é muito do motor rodoviário. E que dizer da reorganização de um programa de educação uniformizado, de programas de educação para o civismo e cidadania? Tudo isto são formas consistentes de patriotismo, que se fazem sem declarações, tão necessárias como os exemplos aludidos dos chineses em auto-clausura em Lisboa.
Ao longo destas duas décadas, não senti um ideário político concreto e coerente, uma agenda consistente, lógica. Houve um crescimento económico brutal e um agravamento do custo de vida e da qualidade da mesma, acompanhado de ideias avulsas, sem fio condutor.
Hoje, em tempos como estes, pode-se ver como o dinheiro não é nada. Torna-se por isso imperativo apostar no verdadeiro poder, o do conhecimento nas suas diversas vertentes. 

Em chinês esse poder parece querer traduzir-se por talentos, sinceramente tenho dúvidas de tradução. Gostaria de pensar em pessoas bem preparadas, poliglotas, formadas, doutoradas, com mundo e visão, pensando pelas suas próprias cabeças, menos obedientes. Diria então que a tradução mais adequada seria gente competente, característica cuja abundância me parece tanta quanto a de gente nas ruas nestes dias.
É preciso ambição de se ser mais e mais, porque é imperativo compreender que a internacionalização de Macau passa por uma ideia de pertença ao global e, também, pela substituição de algumas peças de mobiliário do hemiciclo por ideias novas e poliglotas, porque hoje ninguém é realmente nada se nada valer. 
Esta a lição a retirar destes tempos em que os Golias ficam silenciosos e impotentes.

(1) os que estão em todas