As volutas de fumo que um cigarro queimando origina, pouco diferem das que nascem de uma vela soprada, ou do pau de incenso ardendo em honra de deuses que, silenciosos, vão observando a transmutação da matéria em imatéria.
Por isso o fogo é sagrado. Porque, sendo imaterial, se faz sentir em todo o seu como que ardor, por todos os lugares por onde passa, transformando a dimensão das coisas que incandesce.
Observo melhor o cigarro fumegando no cinzeiro, a cinza crescendo lenta e inexorável, o amortalhado tabaco consumindo-se, tabaco e mortalha fenecendo, depois de por eles passar o brilho vermelho-laranja do morrão, ardente caminho, compasso de tempo lançando agoras em cinzas fumegantes de ontems rapidamente arrefecidos. Assisto então ao avançar do vermelho-laranja. Avanço ou recuo? Avança mais que recua, para a sua própria extinção. A brasa encontra agora um pedaço mais forte de tabaco que lhe faz frente, para em breve, com um estalido quase inaudível, incandescer também, e com ele a mortalha, já mais avançada na queima, como que deixando nua aquela retardatária brasa, a cinza a aumentar, o fumo subindo ininterrupto. Ponho-lhe o entrave de um dedo, contorna-o na sua ascensão inexorável, olho o ponto onde a colunazinha de fumo se dissolve no ar, ainda a minha vista alcança, bem longe do tecto. Volto a descer os olhos, percorrendo lento esse caudal que despeja para cima, à maneira dos deuses, o fumo em torrentes de silêncio branco, semelhando um fio de lã igualmente branco, sem som. Será este fumo o anúncio de uma nuvem? Quem dera que fosse e que acreditássemos também que as nuvens, tal como a neve, são feitas de algodão onde nos poisamos, suspensos, para algum repouso da realidade.
Já o cigarro vai quase a meio sem que ninguém lhe toque, nem eu, que o não acendi. Observo-lhe a cinza a acumular-se, memória do que foi, nota-se ainda o vinco da colagem da mortalha, e a coluna de fumo continuando imperturbável a precipitar-se para cima, à maneira dos deuses, ao seu encontro, insensível às corridas dos humanos, às suas metamorfoses e às surpresas que se pregam a si mesmos na fugaz vontade da vã glória de serem mais que o que já eram, agora que o vento sopra noutro sentido e a imagem renasce simétrica, esperada ou inesperadamente.
Imaterial o fumo - assim como o fogo que o gera - desfeito ao sopro de uma aragem, como uma esperança qualquer, ou o momento de uma notícia, substituída logo a seguir, outra lhe sucedendo, tempo sobre tempo, tudo fugaz e efémero.
A coluna de cinza tremeu, o morrão ultrapassou a metade do cigarro, a qualquer momento se desvanecerá o equilíbrio instável desse fóssil de cinzas, ainda preso ao que foi, o fumo sempre ascendendo em torrente, agora como que mais forte, à medida que se aproxima do fim.
Nada mudou, nada mudará na história da humanidade senão os homens, eles mesmos, tão diferentemente iguais, repetindo incessantemente a sua própria história, como se outra fosse.
E porque a gravidade é uma força, eis que, com um estremeção, a coluna de cinza cai, partida junto ao morrão e se precipita, sem pressas, como que a desfrutar os seus momentos de última integridade, antes de cair e se estilhaçar no fundo do cinzeiro. Bastou que a primeira viga caísse para que todo o edifício ruísse, paredes, vigas e sobrados, andar precipitando-se sobre andar, umbrais e ferros retorcendo-se, esmagando-se violentamente contra o solo - gente entalada no meio de tudo aquilo – num mar imenso de poeira e detritos, como que fumo, novamente subindo aos céus, enquanto a térrea poeira se espraia por todo o lado da catástrofe que não conhece nomes nem rostos nem tempos.
No cinzeiro, o morrão fina-se devagar, já sem nada de si próprio para se consumir, consumatum est. Pelo chão, destroços de todo o tipo se espalham, incontáveis, inenarráveis, sanguinolentos. E por um instante, apenas por um instante, a humanidade interrompe o seu afã e ouve a notícia, enquanto no local, gente que segundos atrás urdia a próxima jogada ou despreocupadamente conversava sobre um terceiro, descobre-se a esgravatar nos destroços em busca de vida, gritando pelo seu semelhante.
Lá no alto, onde os deuses recebiam colunas de fumo caíndo para cima em catadupas, olhavam-se sabendo de antemão o que todos pensavam:
Era preciso que o inferno se abatesse para que os homens percebessem o princípio do Paraíso.
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