terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A GRANDE FESTA

PEQUENO GUIA PRÁTICO PARA O SPECTACULUM



Está patente na sala maior de exposições temporárias do Museu de Arte de Macau uma mostra chamada Ad Lib, de Konstantin Bessmertny. 
Independentemente da etimologia latina e da linguagem musical, Ad Lib representa a convergência dos discursos plásticos e da criatividade patente num autor proveniente da escola russa de pintura.
Porém, para saber é necessário aprender. Depois, opera-se a decantação do aprendido, eliminando o excesso, para que, então, se possa partir para o caminho da identidade e afirmação artística. 
Se tivesse vivido na Paris dos finais do século XIX, talvez Konstantin tivesse uma atracção idêntica a Degas ou a Toulouse-Lautrec. Como vive em Macau, é aqui que encontra inspiração para a elaboração de algo que apetece chamar de Espectáculo, para um olhar sobre alguns espectáculos da vida.
Esta não é uma instalação nem uma mera exposição de pintura. É, antes do mais, a apropriação e um retrato plural denotativo de todos os elementos da realidade, com a capacidade de recuperar toda a envolvência para a sua/nossa festa. 
Espectaculum vem do latim spectare, ver, e de specere, olhar, e aí caímos no caminho também desejável da semiótica que Konstantin nos oferece.  Entre o olhar e o ver vai a distância dos signos.

A MORTE DA LIBIDO E O APETITE
O apetite é essencialmente insaciável e, quando opera como critério de acção e prazer (isto é, em todo o mundo ocidental desde o século XVI), infalivelmente descobrirá modos de expressão (mecânicos e políticos). Marshall McLuhan

Detalhe de L'État c'est Moi


Não sendo nem Degas nem Lautrec, afastadas as hipóteses de Bosch e Peter Breughel o Velho, resta admitir que Konstantin só pode ser ele mesmo, elevado à potência que a ele próprio se conferiu nesta exposição.
Entre o Spectaculum e a Grande Boeuffe que é este evento, sente-se patente a libido criativa do artista, que aborda a carne como carne, liquidada que está a subtileza da sensualidade e do erotismo para apenas ficarem mulheres reduzidas a figurantes, que assim os homens querem e anseiam ter à disposição para consumo, sem preliminares que desconhecem, bem como cenas onde a boçalidade e o burlesco presidem. Há, nestes mundos retratados por Konstantin Bessmertny, um apetite insaciável, um elogio à ganância das sensações e à gula dos momentos.
Estas grandes pinturas, não no tamanho mas sobretudo no alcance, de escárnio e sarcasmo, retratam o grotesco e o trágico social, oriundas de uma imaginação toda ela alimentada pelo impenitente e impertinente olhar de Konstantin Bessmertny.

A KINETOGRAFIA E A PINTURA
Em formato panorâmico, Konstantin apresenta uma série de pinturas nas quais transporta para a tela cenas do grande écran e onde introduz subtítulos, mais uma vez provocatórios e inteligentes, intervindo na simulação de uma outra linguagem através da sua.
Artur Bual, quando nos finais dos anos 1960 profetizou que a linguagem do futuro seria o cinema, estaria muito longe de imaginar que hoje qualquer um pode filmar com um telemóvel. Todo o passado converge, assim, para esta interpretação do fotograma, congelamento do kinético, afirmação profética de inquestionáveis e inconvenientes verdades. 
É neste constante deambular, nestes saltos entre temáticas onde reside a irrequietude de um espírito culto,  lúcido e, consequentemente, crítico, escondido sob a aparente paródia dos excessos e dos gostos kitsch, que emerge o confronto entre a(s) obra(s) e o público, aqui mais habituado ao culto do politicamente inócuo, esse sim, por omissão, ignorância ou auto-censura, falhado. 

ASSAMBLAGES
Assambler, juntar, junta. Não de bois, mas do carro outrora de luxo que, para além de objecto recuperado e de desfile de ostentação, nos remete para aquilo em que se tornou: carcaça ferrugenta, passeando cacos de gesso clássico, memórias de outros séculos.
Mais além, um escocês funde-se com um samurai, de mergulho, operando-se a fusão do absurdo, metáfora outra que mereceria mais do que provocar riso ou estupefacção.  A arte com conteúdo, perdoe-se-me a redundância, é em si uma afirmação a ser degustada, analisada, reflectida.


VICTORIA, BAKUNIN E RASPUTIN



Três grandes retratos ocupam uma parede da sala de exposições. A rainha Victoria apresenta pechisbeques, unhas de silicone na mão direita, e um sem número de condecorações, cada uma delas merecedora de análise. O olhar deve percorrer toda a tela, porque a cada centímetro quadrado se depararão insólitas surpresas. 
E se este retrato é assim, os de Bakunin e Rasputin devem merecer o mesmo escrutínio.
Konstantin Bessmertny estabelece, com esta exposição, um marco na História da arte de Macau difícil de igualar. Na sua mostra estão contidos todos os ingredientes para uma análise e crítica dos costumes que por aqui e em toda a parte reflectem uma porção da natureza do ser humano.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

À CONVERSA COM MANUELA DE SOUSA


Conheci a Manuela de Sousa em Macau, nos finais do anos 1980. Eu era Coordenador do Gabinete do Complexo Cultural de Macau e ela dava aulas de joalharia na Academia de Artes Visuais. Cedo as nossas famílias frequentavam-se mutuamente, as crianças brincavam juntas e eu apercebi-me das coisas belíssimas que a Manuela fazia. Nessa altura era ela a única em Macau formada em joalharia e depois de muito ver, de a ouvir falar com aquela ingenuidade e integridade que sempre nela conheci, entendi que ela merecia a consagração em Macau, não apenas dela, mas também da arte da joalharia, que até ali tinha sido coisa para as lojas de jóias em ouro e brilhantes. Acho que a exposição na Galeria do Leal Senado foi a sua consagração em Macau e, também a perceção de que a joalharia deveria ter um estatuto que até então não tinha.
A minha recente visita a Lisboa proporcionou um reencontro e uma conversa que ficou agendada para este espaço.



alfinetes em prata 


A.C.J. - Manela, como surgiu a joalharia na tua vida? 
M.S. - Sempre pensei em fazer escultura, mas no ano em que comecei no Ar. Co, o curso de escultura não aceitava mais alunos e decidi não ficar à espera e inscrevi-me em Joalharia.
O tempo foi passando e acabei por ficar.

A.C.J. - Naquela altura a AR.CO do Manuel Costa Cabral tinha muita pujança? Quando começaste a expôr? Foi difícil?
M.S. - Sim, o surgimento do Ar.Co em 1973 foi muito importante  no panorama do ensino artístico em Portugal, como escola independente e aberta à experimentação. 
Em 1978 foi criado o Departamento de Joalharia do Ar. Co, pelas joalheiras Alexandra Serpa Pimentel e Tereza Seabra e à semelhança dos outros departamentos e também do que já se fazia em vários países da Europa, o ensino de joalharia tornou-se mais experimental e abriu novos caminhos no panorama da joalharia em Portugal.
Macau foi muito importante para mim em termos pessoais e profissionais. Tive a oportunidade de criar a primeira oficina  e os primeiros cursos de joalharia no território, na Escola de Artes Visuais que então pertencia ao Instituto Cultural de Macau passando mais tarde para o Instituto Politécnico de Macau.
Foi em Macau que realizei as minhas primeiras exposições individuais, tendo sido a do Leal Senado por teu convite.
Quando regressei a Portugal continuei a expor regularmente quer em Portugal quer noutros países da Europa e também nos Estados Unidos da América.

A.C.J. - Em termos de público, em Portugal, achas que já se conseguiu uma aceitação da joalharia sem ser como arte menor, coisa que sempre me fez confusão? 
M.S. - Em Portugal a Joalharia Contemporânea tem cada vez uma maior visibilidade, tendo para isso contribuído a abertura de galerias, a realização de exposições, conferências, workshops e através do intercâmbio entre artistas nacionais e estrangeiros.
Em Setembro de 2004 foi criada a PIN,  Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea, tendo eu feito parte da sua direção. Esta associação tem tido um papel muito importante na divulgação da Joalharia Contemporânea. 
A Joalharia Contemporânea ou Joalharia de Autor já está a outro nível de entendimento que não o de uma arte menor, mas esta questão ainda não se encontra bem definida, havendo uma diluição nas fronteiras entre a Joalharia Contemporânea e as outras formas artísticas.

A.C.J. - Entre as artes do fogo, a cerâmica e a joalharia sempre me atraíram muito. Sei que neste momento te especializaste numa verdadeira alquimia da jóia. Por favor elabora.
M.S. - A arte de trabalhar o metal (ourivesaria), tem muito de alquimia. .
Ao falar contigo sobre a forma como  crio as minhas peças, apercebi-me que neste processo de criação há  uma pesquisa e experimentação permanente, no sentido de materializar a minha ideia criativa. A vontade de aplicar a cor no meu trabalho levou-me desde há algum tempo a dedicar-me à aprendizagem de técnicas de coloração. 

A.C.J. - Para quando uma página nas redes sociais para vendas ao público, única forma de partilha dada a um artista? E uma exposição em Macau? 
M.S. - Tenho oferecido alguma resistência às redes sociais, mesmo que seja para divulgar ou vender o meu trabalho, não me vejo ainda agora nesse registo.
Mas tenho o meu trabalho em galerias e em sites dedicados à divulgação da joalharia.
Gostaria muito de voltar a expor em Macau. 



















quinta-feira, 27 de outubro de 2016

CONVERSAS AD LIB COM KONSTANTIN BESSMERTNY


Conheço Konstantin Bessmertny "desde sempre". Nesse tempo, o ponto fulcral onde se consagravam os artistas que viviam em Macau era a Galeria do Leal Senado, espaço central, muito apetecível, mas muito exigente. E era assim para que houvesse um critério perceptível e legível a todos, assente num só parâmetro: qualidade.
Konstantin vinha da Escola Russa de pintura, o que o qualificava à partida e as portas abriram-se-lhe. Macau ganhou um pintor, todos ganhamos.
Mais tarde, com os casinos a multiplicarem-se, emergiu o tema que lhe proporcionou o arranque definitivo para um outro patamar, tendo Macau como leit motiv.
A sua próxima exposição no Museu de Arte de Macau justificou esta conversa, que partilhamos com os leitores.


A.C.J.- Em latim, ad libitum significa a bel-prazer, o que remete para a noção de liberdade. Pensas que isto se trata de um lugar comum? Acreditas na liberdade? Gostarias de definir a tua noção de liberdade?
K.B.- A liberdade é certamente um ingrediente essencial da criatividade. No entanto, deve acarretar responsabilidade e respeito mútuo. Mas, na verdade, a palavra liberdade é hoje usada na realpolitik para encobrir a barbárie, a impunidade e a decadência.
Em termos artísticos, a liberdade de expressão traduziu-se numa democratização da criatividade e, gradualmente, efectuou a passagem linear da “arte” à “anti-arte” e, finalmente, à “não-arte”. Vivemos num tempo semelhante ao período imediatamente antes da queda do Império Romano, quando entretenimento e design se tornaram nas coisas mais importantes.
Van Gogh é fantástico para decorar quartos de hotel, Rothko é excelente para um átrio de escritório e Warhol para uma sala de estar. Qualquer artista de Zhuhai ou de outra “cidade artística” nos pode executar uma fantástica cópia. Na verdade, comecei a pensar que a história da arte, desde meados do século XIX, quando a Europa foi inundada por objectos decorativos exóticos vindos das colónias, não passa de um encadeamento de revoltas por parte de diletantes desprivilegiados contra o status quo temporário e que a liberdade, nessa progressão, era apenas um baixar da fasquia.
Penso que a liberdade na arte deveria significar uma busca por algo anterior a toda esta ramificação de “ismos”, desafiando as doutrinas e instituições artísticas dominantes.
A minha história favorita a este respeito é a seguinte:
Sviatoslav Richter estava a tocar a Fuga N.14 em fá sustenido de Bach ao piano. Gene Simmons, da banda Kiss, com o seu rosto pintado, apareceu, lançou as mãos à sua guitarra baixo e exclamou na direcção de Sviatoslav – “Agora és livre, por favor dá asas à tua expressão!”

A.C.J. - De alguma forma, fazes lembrar-me Hieronymus Bosch ou Peter Brueghel, o Velho. Vês alguma semelhança entre o que se faz no século XXI e o trabalho daqueles artistas? Como reagirias à palavra “sátira” nas tuas obras? Pensaste, porventura, num público específico para esta exposição?
K.B. -Acabei de visitar a exposição do 5.º centenário de Bosch no Museo del Prado.
Uso com frequência composições maximalistas com narrativas que cobrem toda a superfície da tela, recorrendo normalmente à linguagem visual da alegoria ou da fábula. Gosto de recorrer à sátira e ao sarcasmo que tenho na minha caixa de ferramentas. Adoro recorrer a todos os símbolos e formas semióticas de comunicar disponíveis e construir ideias complexas.
Prefiro não me dirigir a um público específico. O que quero é desafiar-me a mim mesmo, sem me preocupar com o número de “likes”. Preferiria ter apenas um “like” de alguém cuja opinião me seja importante.
Imagina, por exemplo, que colocavas uma imagem de uma obra tua no Instagram. Preferias ter um “like” de Da Vinci, ou 1000 "likes" dos fãs de Kardashian?

A.C.J. - Será que Ad Lib satisfaz a tua libido artística? De que forma se tornou Macau numa espécie de desafio, ou, em termos mais simples, numa inspiração para ti? 
K.B. - A minha percepção do mundo mudou desde que comecei a trabalhar em Macau. O que aqui descobri foi uma versão miniatura da Babilónia, na qual os seres humanos misturavam deliberadamente tudo o que estava à sua disposição. É como se um ser superior e invisível conduzisse as suas experiências primeiro em Macau e, só depois, no resto do mundo. Devido à dimensão de Macau, e à sua relativa transparência e liberdade, é possível, sem grande esforço, observar o homem no seu melhor e no seu pior.
Para mim, este é indubitavelmente um dos locais mais inspiradores do mundo. Nisso, estou inteiramente de acordo com Ian Fleming (“Thrilling Cities”).

A.C.J. - Vejo no teu trabalho a inclusão de muitos capítulos da história da arte do século XX, desde o uso da iconografia (vindo da arte Pop) até todo um leque delirante. Esperas ser compreendido pelo espectador médio? Qual é o teu objectivo? Será o de provocar? Porquê? E depois qual será o próximo efeito?
K.B. - Podia apenas indicar-te as obras de Mario Vargas Llosa, “Notas sobre a morte da cultura”, e de Octavio Paz, “Corrente Alterna".
A.C.J. - Espectáculo, Panem et Circenses...
K.B. - A alta cultura (clássica) foi rebaixada e a baixa cultura (folclórica, tribal, decorativa) foi elevada a cultura pop de modo a satisfazer a procura popular e o lucro. A sociedade que estamos hoje a criar venera apenas “lucro” e “sucesso financeiro”. A base da pirâmide sente-se feliz quando é bem entretida e tem a barriga cheia.
Existem fórmulas fáceis para um sucesso temporário quando se tem por alvo um público dilatado. Mas eu ainda prefiro seguir os meus valores. Sinto o dever de influenciar e educar, mesmo a um público que seja presa da ilusão.
No que se refere a doutrinas e instituições artísticas, creio que o único caminho é o da dúvida e do desafio.

A.C.J. - De uma perspectiva mais pedagógica, e considerando também que as tuas origens estão na escola russa, na qual a cultura tinha uma importância crucial (como em todas as grandes escolas artísticas), como vês Macau enquanto local que possa acalentar quem aspire a ser artista?
K.B. - De início, estive em Macau apenas para uma exposição colectiva em 1992. Dadas certas circunstâncias, tive de prolongar a minha estadia. Tive inúmeras oportunidades de deixar Macau, o que, de facto, fiz em diversas ocasiões. Mas, gradualmente, apercebi-me de que Macau era o lugar ideal para sobreviver enquanto profissional, sem ter de entrar no ambiente hiper competitivo de uma grande cidade, como Paris, Londres ou Nova Iorque. Aqui, podia prosseguir as minhas experiências e projectos, podendo depois expor em qualquer outro lado.  
Felizmente, desde há algum tempo, Macau é uma pequena cidade artística muito activa, com a primeira bienal de arte asiática e uma comunidade substancial de verdadeiros apreciadores de arte.
Agora é uma cidade muito diferente, apesar de ainda haver algo no ar que me faz sentir inspirado e cheio de energia.
Obviamente, dada a sua dimensão e outros factores, Macau não consegue suportar uma comunidade artística muito alargada, embora exista algum espaço para iniciativas artísticas não comerciais.

A.C.J. - Como vês a compatibilidade entre o formalismo de Macau, os resíduos de confucionismo tradicional chinês na Educação e a necessidade de transformação que deveria ocorrer quando mergulhamos no mundo de Kant, Nietzsche, Oscar Wilde e Bachelard? 
K.B. - Eu estenderia essas questões a um mundo mais amplo, para além de Macau. Em algumas áreas, como no jogo e entretenimento, Macau poderá ser uma das cidades mais importantes do mundo. Mas noutras, é apenas como uma pequena cidade de província. Uma das suas características é, precisamente, o seu potencial ilimitado de desenvolvimento, mas necessita de um melhor sistema educativo e de uma competição mais aberta. É ainda uma extraordinária encruzilhada cultural e melting pot, podendo deveras produzir algo de inesperado a partir de todos os ingrediente à sua disposição.

A.C.J. - O catálogo desta exposição não é aquilo que se esperaria. Tem um formato de revista. Recorres a ele para completar o delírio de toda a exposição, trata-se de uma mais uma provocação ou, ainda, de uma nova forma de liberdade?
K.B. - Vivemos num tempo de transição, em que não podemos aplicar antigas fórmulas. A fórmula do catálogo é uma experiência. É uma paródia do brilho superficial, do glamour e do pop. Mas também contém aquilo que se espera de um catálogo convencional. Entramos agora na idade digital. Livrarias, revistas e quiosques de jornal começam a fechar, mas talvez esta seja também uma forma de introduzir valores diferentes numa forma de comunicação moribunda e de manter todos os profissionais à tona.
O catálogo da minha recente exposição na galeria Rossi & Rossi teve a forma de cartas de tarot.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A BOLA DE RUBICK


Escrever invocando o cubo de Rubick remete-me para a quadratura do círculo.
Associo em seguida o círculo à bola e depois ao facto de termos ganho o Europeu e ao novo e improvável Ederói, que até tem psicóloga e tudo, a atestar que Freud tinha razão tanto quanto Morris, aquele do “Macaco Nu” e da “Tribo do Futebol”.
O que é certo é que andamos ufanos, e não apenas do futebol. Também do hóquei em patins, da canoagem, do triplo salto, e da meia maratona, do bronze de Telma Monteiro e mais tudo o que vier.  Um bem haja ao nosso Presidente, pois agora as comendas não são de favor, mas de mérito.
E porque somos um país de treinadores de bancada – tanto se fala, opina e discute – no sector vai grassando algum desemprego, tanto quanto ao nível de jogadores.
Mas agora ninguém nos cala. Sabemos mais de bola do que o Beckenbauer, o Mourinho, o Simeone, o Jesus, Sir Alex Ferguson e, naturalmente, o Rui Vitória. Somos os maiores e cada qual invoca a contribuição que deu para o Europeu. No fundo, bem lá no fundo, regozijamo-nos porque fizemos aos franceses o que os gregos nos fizeram.
Enquanto em Portugal, campeonato à porta, a dança das contratações continua, em Macau, onde não há qualquer círculo sobre o tema, mas apenas uma quadratura, vai-se fazendo um campeonato de futebol de sete, um campeonato de futsal para temperar e, por fim, um campeonato de futebol de onze, na esperança de pensar que se pode jogar todas estas modalidades com os mesmos jogadores. Quem decide considera que os pisos não têm importância, que tanto faz, o que para o futsal é evidente. E eu, que até me fio na virgem, acredito que não devemos desesperar e que, mais depressa que um milagre, ainda se jogará futebol de praia numa qualquer estrada alcatroada.
Os fardamentos, o futebol, as casas de banho públicas e, segundo Agustina Bessa Luís, os índices de criminalidade sempre foram componentes denotativas do nível de desenvolvimento de cada país, região ou paróquia.
Portugal na última Taça do Mundo teve quatro treinadores presentes, o que indubitavelmente atesta da qualidade dos “misters” portugueses. José Mourinho, por exemplo, entrou já a facturar no Manchester United contra o campeão Leicester. O seleccionador português, Fernando Santos, conduziu o país à vitória no Europeu. Leonardo Jardim, depois de uma época no Sporting, treina o Mónaco, Marco Silva, Vítor Pereira, Carlos Carvalhal e a lista continua por Inglaterra, Itália, Turquia, entre outros. Agora, a selecção olímpica, pela mão de Rui Jorge, já bateu a Argentina e as Honduras e está, pode já dizer-se, nos quartos de final.  
Em Macau, por insondáveis razões, a Associação de Futebol que, em passado recente, tinha um japonês a comandar as hostes do território, recorre agora à boa prata da casa, não depositando em mãos lusas os destinos da formação do território. Há quem sussurre que é por xenofobia, mas eu não acredito. Em registo de brevíssima reflexão, diz um amigo meu que a explicação reside em Macau haver demasiadas pérolas, a começar pelo braço do delta, o que a meu ver tem fundamento.
Já o mesmo não acontece com as equipas do primeiro sistema, talvez por falta de ostras.  Compreende-se. Contratam, assim, Sven Goren Eriksson, Marcelo Lippi, Scolari, e tantos outros nomes.
Resolver o cubo de Rubick é, para quem não sabe, um quebra-cabeças e, para quem sabe, uma questão de segundos.
Em futebol há uns que pensam e outros que organizam. A título de exemplo, o modesto Clube Foz, numa zona do Porto,  à semelhança de tantos e tantos clubes que em Portugal militam nas divisões secundárias, tem um excelente relvado sintético – opção de quem sabe e não precisa de ostentar – torres de iluminação e umas bancadazitas, que enchem.
Enfim, agora como campeões europeus de séniores, de sub-dezassete, de hóquei em patins, de judo, de meia maratona, de canoagem, de triplo salto, e o mais que vier, temos alguma autoridade para dizer que sabemos do que falamos. Muitas vezes dá deus – ou mais certamente alguém em seu lugar – nozes a quem não tem dentes ou, noutra expressão idêntica, só quem tem unhas é que toca guitarra.
Em Macau, nestas coisas do desporto de recinto, temos assistido ao sucesso do hóquei em patins do Lisboa e do Presidente Aguiar, que honram a R.A.E.M. porque simplesmente sabem. Desde sempre se percebeu que o conhecimento, em qualquer área, é mais valioso do que o dinheiro, porque embora este possa dar acesso àquele, prefere-se assobiar para o lado.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A REDONDEZA DA BOLA


Dia 3 de Fevereiro foi noticiado que o colombiano Jackson Martinez foi transferido do Atlético de Madrid para o Guangzhou Evergrande, pela módica quantia de 42 milhões de Euros, batendo o recente recorde de 21 milhões de libras que o Jiangsu Juning pagou ao Chelsea pela transferência do brasileiro Ramires. 
Se atentarmos que a Liga profissional chinesa, conhecida como Super Liga, foi fundada em 2004, produto da reformulação da Chinese Football Association Jia-A League, a notícia terá espantado o mundo ocidental pelo poderio financeiro revelado pelos clubes chineses, mas não a mim, se fizer uma viagem no tempo.
Nos inícios da década de 1970, a República Popular da China utilizou sabiamente a "diplomacia do ping pong". Foi, assim, que em 1972 Richard Nixon se encontrou com Mao Zedong.
O recurso ao desporto foi, nesses anos de caminhada para a abertura, uma forma de afirmação. Após uma única participação nos Jogos Olímpicos de Helsínquia em 1952, a R.P.C. só voltou a competir em 1984, em Los Angeles. Recordo-me de na altura ter pensado que a China não iria aos Estados Unidos para passear. E, assim, o regresso saldou-se por 15 medalhas de ouro, 8 de prata e 9 de bronze, tendo ficado classificada em quarto lugar. Nessas olimpíadas emergiu Li Ning, o famoso ginasta chinês que destronou os japoneses e colheu três medalhas de ouro, duas de prata e uma de bronze.
A participação da R.P. da China nas competições desportivas mundiais e olímpicas foi ganhando cada vez maior projecção, sendo desde 1984 uma potência desportiva mundial em incontáveis modalidades, decorrente de um trabalho sério, planificado e estratégico.
A notícia que abre este escrito suscitou-me, de imediato, a vontade de reflectir sobre o modo como se operou a transformação em grande potência mundial do mais populoso país do mundo, e apetece utilizar a redondeza da bola para o fazer, à guisa de metáfora.
Toda a história da China está ligada à correcta utilização do poder, quer directamente do imperador quer, ainda, de estrategas como Sun Tzu e Zugue Liang, para apenas citar os mais famosos.
E sabendo-se que Xi Jing Ping gosta de futebol, constatar-se-á que, mais uma vez, e na senda da política de abertura de Deng Xiao Ping, a China recorre a jogadores e técnicos estrangeiros para desenvolver sectores do seu interesse, sem que isso afecte minimamente o prestígio dos clubes, antes lhes confere maior prestígio. 
Foquemo-nos aqui perto, em Guangzhou, no Guangzhou Evergrande, só possível pela existência de uma economia socialista de mercado onde os bilionários são considerados heróis, por razões óbvias. 
O Guangzhou Evergrande, agora Guanzhou Taobao Evergrande, é suportado por dois potentados. O Evergrande é um grupo imobiliário que opera em, pelo menos, cem cidades da China e possui 45.8 milhões de metros quadrados de terrenos, sendo presidente do grupo Xu Jiayin, o quinto homem mais rico da China, com uma fortuna avaliada em 7.2 mil milhões. Por seu lado, Jack Ma, dono do potentado Alibaba, vem conferir a esta parceria um poderio económico astronómico que fará empalidecer Abramovitch.
É assim que as coisas acontecem, à semelhança da grande dinastia Tang (618-904), quando não apenas convergiram para Ch'ang An mercadores árabes e judeus pela Rota da Seda, como também a sua grandeza e magnificência se exprimiu pela abertura a estudantes Confucionistas da Coreia e do Japão que vieram estudar e também exercer cargos no estrutura imperial.
Neste ressurgimento de poder económico e político que a China atravessa, pode-se constatar a grande visão não apenas dos seus dirigentes como, igualmente, dos investidores em todos os campos, nomeadamente o desportivo, chamando para junto de si jogadores e treinadores estrangeiros, assinando contratos com - por exemplo - o Real Madrid para a abertura de 75 campos de futebol para uma academia.
Todas as reconstruções devem fazer-se descomplexadamente, sem quaisquer laivos xenófobos, porquanto ir buscar o conhecimento onde ele está é um acto de sabedoria dado àqueles a quem a grandeza de espírito contemplou.
Em jeito de remate, veja-se quão empreendedoras e estratégicas são as empresas chinesas: a Ledman Optoelectronic Company, sediada em Shenzhen, sendo já patrocinadora da Super Liga e da Liga I Chinesa, assinou um acordo para patrocinar a II Liga Portuguesa, situação que gerou um mal-estar incompreensível quando em Portugal não se privilegia o jogador português. 
Não sendo talhado para os negócios, não deixo de analisar com atenção os movimentos tipicamente chineses onde a subtileza ou o poderio se manifestam.
Estamos, claro, a falar de um país, segunda economia mundial, que atingiu a posição que ocupa em apenas 40 anos. 
O mundo pula e avança sempre que se vai buscar o conhecimento onde ele existe. Descomplexadamente.