Quase sucessivamente, Yao Feng, pseudónimo do poeta e
professor Yao Jing Ming, lançou no auditório do Consulado Geral de Portugal as
suas "Palavras Cansadas da Gramática", da editora Livros do Meio, e,
na Casa de Portugal em Macau, numa edição do Instituto Cultural de Macau, assistiu-se
ao lançamento de "Almas Transviadas" de Tang Hio Kueng, com tradução
para português da Professora Ana Cristina Alves.
A singularidade destes dois eventos não se resume ao concreto
de as obras terem sido publicadas em português e os autores serem de
nacionalidade chinesa. O singular é os mesmos não terem nascido em Macau, o
primeiro em Pequim e o segundo em Xangai. Contudo, ambos adoptaram esta cidade
como sua.
Estes eventos revelam uma abertura ao Outro, uma saudável
ausência de preconceito e discriminação, substituídos pela valorização da
diversidade que tem origem em autores que possuem uma visão aberta do mundo.
Simbolicamente estes eventos que envolvem não apenas a
questão da língua, mas também a da alteridade que politicamente se
consubstancia na formulação da decisão da R.P. da China em consagrar Macau como
a sede do Fórum da Cooperação Económica entre a China e os países de expressão
portuguesa, o que, para os habituais atentos e veneradores, deveria servir de
bússola comportamental como é habitual.
Hoje em dia ser-se chinês, português, inglês, filipino ou
vietnamita num mesmo espaço, só pode constituir-se no elogio da diversidade, à
maneira dos Tang, que acolheram árabes, judeus, japoneses, coreanos.
Na segunda década do século XXI não faz sentido posturas
xenófobas, quase sempre associadas à pobreza cultural, assentes num populismo
demagógico que apela aos instintos mais primários dos manipulados.
Não são de todo aceitáveis discursos discriminatórios
para com os trabalhadores não residentes, só possíveis em gente que se esquece
das suas próprias origens e que envergonha a cultura desta cidade que, por ser
indizível, se situa no plano da imaterialidade patrimonial.
A importância da obrigatoriedade de um ensino bilingue
ou, ainda, multilingue, permitirá indubitavelmente a abertura e arejamento de
comportamentos agora por vezes ainda etnocêntricos, em tudo incompatíveis com o
espírito e o destino multicultural desta cidade.
As políticas sociais precisam de ser inclusivas,
integradoras. Macau está a
passar a fase da sua adolescência enquanto Região Administrativa
Especial, e é necessário preparar as próximas décadas, para que a sementeira dê,
a seu tempo, os frutos esperados. A riqueza material em si não constitui sequer
sinónimo de desenvolvimento. Quando muito é potencial que requer uso adequado
sob pena de se incorrer no novo-riquismo.
Hoje, a cidadania não pode ser uma circunscrição, uma
freguesia ou paróquia. Hoje, a cidadania tópica é apenas uma das parte de uma
consciência que só pode desejar a alteridade como forma primeira de acesso a
uma cidadania do mundo.
Posturas xenófobas que apontam à discriminação, quantas
vezes esquecidas as próprias origens, não podem ter lugar em parte nenhuma.
Também por isso, é justamente a Educação Cívica que urge
ser não apenas uma disciplina escolar obrigatória mas uma colectânea de
princípios, regras e deveres a requer uma imposição legal conducente à
responsabilização individual.
Está extinto um velho instrumento, o do Corpo de Fiscais
Municipais. Muita falta faz um Corpo de Fiscais Cívicos, com competências para prevenir comportamentos
incivilizados, pejamentos, sujidade, e todo um tipo de transgressões que
perturbem a ordem e se configurem no complemento do ensino a haver.
Exemplarmente, Raimundo do Rosário não hesita em recorrer
a técnicos do exterior se não os houver cá. Exemplarmente, Alexis Tam fala
várias línguas e move-se com à vontade entre as diversas culturas que
caracterizam Macau.
"Palavras Cansadas da Gramática" e "Almas
Transviadas" tornam-se assim testemunhos e paradigmas de uma cidadania
cuja semeadura se espera poder tornar-se numa prioridade Educacional.