terça-feira, 14 de julho de 2015

PEDAÇOS DE PASSADO


O Tempo é Espaço onde a Memória reside, onde flui e se vivifica, ressurgindo como viagem dimensional para retomar o fio da meada, à maneira de Teseu.
Esse Tempo que tudo leva ou traz é, em si, o novelo que transporta o passado e com ele uma parte pequena do que era Macau:
O Hotel Riviera ficava na Rua da Praia Grande. Grandes arcos de volta perfeita, ornados de janelas em madeira escura, rematavam o rés-do-chão da fachada. Os dois pisos superiores tinham aprazíveis varandas que repetiam os mesmos arcos. A porta principal giratória dava para o salão de jantar, de sobrado escuro, onde, num palco à esquerda, uma orquestra tocava nas matinées dançantes. O ambiente era sombrio, apropriado a combater a canícula do verão. Silenciosas ventoinhas giravam no tecto. A área sob as varandas dos andares superiores era o lugar de eleição de tertúlias, que ali faziam os seus convívios frente à placidez da pacata Praia Grande e do aterro ainda parcamente povoado. Ao lado, entre o edifício do Tribunal e o Riviera, ficava uma simpática vivenda, sede da Sociedade de Abastecimento de Águas de Macau, propriedade de Pedro José Lobo.
Saindo pela porta lateral do Hotel Riviera, onde um balcão vendia famosos pães-de-leite, abria-se ao passeante o início da Avenida de Almeida Ribeiro e, defronte, o ainda sólido edifício do Banco Nacional Ultramarino.
Mais adiante, na esquina da Rua Central, um polícia mouro, turbante verde rubro com franjas da mesma cor, estrela de seis pontas no centro da atadura da cabeça e barba negra colhida numa rede, desenhava uma figura imponente que causava algum temor.
No quarteirão seguinte, antes de se chegar ao edifício do Leal Senado, uma porta dava acesso a um salão de bilhar no primeiro andar, funcionando no rés-do-chão o Café Ruby, onde a juventude se reunia, e que se distinguia pela coluna com um dragão de olhos acesos. Depois ficava a loja do senhor Lemos e uma outra do Paquistanês "Moosa & Cia.". Pintada de cor creme, em estilo Art Deco, a Tabacaria Filipina oferecia cigarros, cigarrilhas, charutos, tabaco para cachimbo e toda a parafernália necessária. Seguia-se-lhe uma pequena banca, onde um homem baixo, de cabelo à escovinha, vendia cigarros, bebidas, pastilhas elásticas e tudo o que se desejasse para uma tarde no cinema Apollo.
Do outro lado da rua, no edifício dos Correios, viam-se pessoas nas janelas, recorrendo a umas maquinetas rolantes para dispensar goma-arábica para os selos das cartas, portadoras de saudades e notícias.
O edifício do Leal Senado, virado para o Largo onde a estátua do Coronel Mesquita ameaçava sacar da espada, com portas secundárias na fachada, permitia, a quem por lá passava, discernir, por uma, um posto de enfermagem e sua maca de grandes rodas, e, pela outra, um ar sombrio que o calor apertava e os fiscais revezavam-se a sorver a frescura do piso de granito.
O Long Kei como que acenava das arcadas do edifício no Largo Senado, chamando as gentes a saborear a cozinha cantonense. Outros, mais devotos à comida macaense, subiam a calçada do Tronco Velho para irem almoçar ao Clube de Macau, mesmo defronte à Igreja de Sto. Agostinho.
A Pharmácia Popular, ao lado da Misericórdia, ali estava, o toldo abrigando dos raios solares. Os armários claros, com frascos de todos os tamanhos, ocupavam grande parte do espaço, competindo com uma belíssima caixa registadora, atrás da qual se sentava o senhor Ventura, homem de grande porte. No meio do silêncio, uma balança com pesos de correr constituía a maior atracção dos que lá entravam. Mais próximo da igreja de S. Domingos, debaixo das arcadas, um carpinteiro talhava, na madeira de uma arca, histórias de guerra da velha China, trabalhos então muito procurados pelos militares. Bem próximo estava a Po Man Lau, simultaneamente Livraria, Tipografia, Papelaria e Venda de produtos fotográficos.
De quando em vez, um autocarro, corpo pintado de rubro e tejadilho creme, passava pela Almeida Ribeiro e pelo Largo do Senado. Era escasso, escassíssimo, o trânsito no tempo do Hotel Riviera.
Muito do aqui narrado já não existe. Esfumou-se na voragem do tempo e da progressiva transformação da cidade.
O Largo do Senado, cuja identidade o actual governo protege,  era o paradigma de uma praça portuguesa, como se pode ainda sentir no pavimento de calçada. Contudo, muito do comércio tradicional desapareceu, como a leitaria e outras lojas que davam ao largo um carácter próprio. Importa que este ressurja, porquanto também é parte do legado patrimonial, simultaneamente tangível e intangível. Fazem falta esplanadas a assumir a pedonização. Faz falta espaço a este espaço, para que respire no seu conjunto. Faz falta que certas actividades lúdicas sejam desviadas para outros lugares e deixem este núcleo do Centro Histórico, património que agora celebra o seu 10.o aniversário de classificação pela UNESCO, ser usufruído na sua inteireza.
Como dizia Fernando Pessoa, a Memória é a Consciência inserida no Tempo.
Não se trata de um antagonismo ao verdadeiro desenvolvimento. Trata-se, isso sim, do desejo que o desenvolvimento seja autêntico e em todas as frentes, preservando a identidade deste lugar e a sua história patrimonial, cuja existência futura depende inteiramente do que  hoje se decidir. 

terça-feira, 7 de julho de 2015

O EGO À LUZ DO BUDISMO

Monge Nepalês



O MESTRE TIBETANO CHOGYAM TRUNGPA (1940-1987) foi um dos primeiros da sua tradição a assimilar plenamente a mentalidade ocidental. Assim, foi capaz de formular os ensinamentos budistas tradicionais de uma forma nova, falando directamente ao ocidental. Aqui, temos uma lição completa da psicologia básica budista. Uma das ideias budistas mais centrais é a de que o eu não existe. O sentido do eu a que ingenuamente nos agarramos é visto pelo olho nu da meditação como sendo apenas uma amálgama ténue, sempre mutável de elementos psicológicos, conhecidos tradicionalmente como os cinco skandhas ou «montões». Aqui, Trungpa apresenta-os como forma, sentimento, percepção, conceito e consciência e fornece um íntimo relato interior do seu desenvolvimento.

Um ponto-chave é a dualidade que se ergue ao nível do primeiro skandhaforma. A dualidade é uma descrição da característica mais básica do mundo confuso do ego, o bloco rudimentar edificador do mundo sofredor do samsara. É o sentido fundamental de que há «algo mais». O sentido desse «algo mais» torna consciente o aspecto directo e primordial do aqui e agora. Percebe o «outro» e em pânico percebe-se a si próprio como um outro oposto ao outro. Neste ponto, temos uma situação de dualidade, do eu e do outro, e assim começa a luta de se relacionar com um mundo estranho que deve ser captado, contra o qual se deve defender ou que deve ser ignorado. Aqui, Trungpa relaciona este facto com o momento do nascimento do tempo.

Penso que seria melhor começar com algo de muito concreto e realista, o campo que vamos cultivar. Seria loucura estudar assuntos mais avançados antes de nos familiarizarmos com o ponto de partida, a natureza do ego. No Tibete, temos o ditado de que, «sem a cabeça estar bem cozida, não vale a pena comer a língua». Qualquer prática espiritual precisa desta compreensão básica do ponto de partida, o material com o qual vamos trabalhar.

Se não conhecermos o material com que estamos a trabalhar, então o nosso estudo é inútil; as especulações sobre o objectivo tomam-se mera fantasia. As especulações podem assumir a forma de ideias avançadas e de descrições de experiências espirituais, mas exploram apenas os aspectos mais fracos da natureza humana, as nossas expectativas e desejos de ver e ouvir algo de interessante, algo de extraordinário. Se começarmos o nosso estudo com estes sonhos de «iluminação» extraordinária e experiências dramáticas, então iremos edificar as nossas expectativas e preconceitos de tal maneira que, mais tarde, quando estivermos realmente no caminho, as nossas mentes estarão grandemente ocupadas com o que será em vez de com aquilo que é. É destrutivo e injusto para as pessoas brincar com as suas fraquezas, as suas expectativas e sonhos, em vez de lhes apresentar o ponto de partida realista daquilo que elas são ...

Fundamentalmente, há apenas espaço aberto, o terreno básico, aquilo que realmente somos. O nosso estado de mente mais fundamental, antes da criação do ego, é tal que há abertura básica, liberdade básica, uma qualidade espaçosa; e temos agora, como sempre tivemos, esta abertura. Tome-se, por exemplo, a nossa vida do dia-a-dia e os padrões de pensamento. Quando "vemos um objecto, em primeiro lugar dá-se uma percepção que não tem de modo nenhum qualquer lógica ou conceptualização com ele; apenas percebemos a coisa em terreno aberto. Depois, entramos imediatamente em pânico e apressamo-nos a tentar acrescentar-lhe alguma coisa, ou procuramos encontrar-lhe um nome ou tentamos receptáculos em que o possamos localizar ou categorizar. Gradualmente, as coisas desenvolvem-se a partir daí.

Este desenvolvimento não assume a forma de uma entidade sólida. Pelo contrário, este desenvolvimento é ilusório, a crença errada num «ego» ou «eu». A mente confusa inclina-se a ver-se como uma coisa sólida, contínua, mas ela é apenas um conjunto de tendências, acontecimentos. Na terminologia budista, designamos este conjunto como os cinco skandhas, ou cinco montões. Analisemos, então, esses cinco skandhas.

O ponto de partida é que existe espaço aberto, não pertencente a ninguém. Há sempre inteligência primordial ligada ao espaço e à abertura, vidya – que significa «inteligência» em sânscrito, precisão, nitidez, nitidez de espaço, nitidez do espaço onde colocar as coisas, onde trocar as coisas. É como uma sala espaçosa em que há espaço para aí se dançar, onde não há perigo de se derrubar as coisas ou de se ir contra elas, pois há um espaço completamente aberto. Nós somos esse espaço, somos um com ele, com a vidya, a inteligência e a abertura.

Mas se somos sempre isso, de onde vem a confusão, para onde foi o espaço, o que aconteceu? De facto, nada aconteceu. Tornámo-nos simplesmente demasiado activos nesse espaço. Como é espaçoso, inspira-nos a dançarmos nele; mas a nossa dança torna-se demasiado activa, começamos a girar mais do que o necessário para expressar o espaço. Neste ponto, tornamo-nos auto-conscientes, conscientes de que «eu» estou a dançar no espaço.

Neste momento, o espaço deixa de ser espaço enquanto tal.

Torna-se sólido. Em vez de sermos um com o espaço, sentimos o espaço sólido como uma entidade separada, tangível. Esta é a primeira experiência da dualidade - o espaço e eu, eu estou a dançar neste espaço e este espaço é uma coisa sólida, separada. A dualidade significa «espaço e eu», em vez de sermos completamente um com o espaço. É o nascimento da «forma» do «outro» .

Então ocorre uma espécie de blackout no sentido em que nos esquecemos do que estávamos a fazer. Há uma pausa súbita, uma paragem; e viramo-nos e «descobrimos» o espaço sólido, como se nunca antes tivéssemos feito fosse o que fosse, como se não fôssemos os criadores de toda essa solidez. Há um intervalo. Tendo já criado o espaço solidificado, então ficamos esmagados por ele e começamos a sentir-nos perdidos nele. Dá-se um blackout e depois, repentinamente, um despertar.

Quando despertamos, recusamo-nos a ver o espaço como abertura, recusamo-nos a ver a sua qualidade suave e arejada. Ignoramo-lo por completo e a isso se chama avidyaA significa «negação», vidya significa «inteligência», pelo que estamos a falar de «ininteligência». Como esta inteligência extrema se transforma na percepção do espaço sólido, como esta inteligência enquanto qualidade luminosa aguda, precisa e fluente ficou estática, é, portanto, chamada avidya, «ignorância». Ignoramos deliberadamente. Não nos satisfazemos em apenas dançar no espaço mas queremos um parceiro e assim escolhemos o espaço como nosso parceiro. Se escolhemos o espaço como parceiro da dança, então naturalmente queremos que ele dance connosco. A fim de o possuir como parceiro, temos de o solidificar e de ignorar a sua fluência, a sua qualidade aberta. Isso é avidya, ignorância, ignorar a inteligência. É o culminar do primeiro skandha, a criação da ignorância-forma.

De facto, este skandha, o skandha da ignorância-forma, tem três diferentes aspectos ou estágios que podemos examinar através do uso de outra metáfora. Suponhamos que no início há uma planície aberta sem montanhas ou árvores, terra completamente aberta, um simples deserto sem qualquer característica particular. É assim que somos, o que somos. Somos muito simples e básicos. E, no entanto, há um Sol que brilha, uma Lua que brilha e há luzes e cores, a textura do deserto. Haverá também algum sentimento da energia que se manifesta entre o céu e a terra. E isto continua sem parar.


Então, estranhamente, alguém de repente repara em tudo isso. É como se um dos grãos de areia tivesse esticado o pescoço e começasse a olhar à sua volta. Somos esse grão de areia, chegando à conclusão da nossa separação. É o «nascimento da ignorância» no seu primeiro estágio, uma espécie de reacção química. A dualidade começou.


O segundo estágio da ignorância-forma chama-se «a ignorância nascida por dentro». Tendo notado que somos separados, então adquirimos a sensação de que sempre o fomos. É uma grosseria, o instinto virado para a auto-consciência. É também a nossa desculpa para permanecermos separados, um grão individual de areia. É um tipo agressivo de ignorância, embora não exactamente agressivo no sentido da ira; não se desenvolveu a esse ponto. É antes agressão no sentido em que nos sentimos desequilibrados, desajeitados e tentamos segurar-nos ao nosso chão, criar um abrigo para nós próprios. É a atitude de sermos um indivíduo confuso e separado e que é tudo quanto somos.

Identificamo-nos a nós mesmos como separados da paisagem básica do espaço e abertura.

O terceiro tipo de ignorância é a «ignorância auto-observadora», que se observa a si própria. É o sentimento de nos vermos como um objecto externo, que conduz à primeira noção do «outro». Começamos a ter uma relação com o chamado mundo «exterior». É por isso que estes três estágios de ignorância constituem o skandha da ignorância-forma; começamos a criar o mundo das formas.

Quando falamos de «ignorância», não nos referimos à estupidez em si. Em certo sentido, a ignorância é muito inteligente, mas é uma inteligência completamente biunívoca. Isto é, reagimos puramente às nossas projecções em vez de simplesmente vermos o que é. Não há uma situação do «deixar ser», porque durante todo esse tempo ignoramos o que somos. Essa é a definição básica de ignorância.

O passo seguinte é o estabelecimento de um mecanismo de defesa de protecção da nossa ignorância. Este mecanismo de defesa é o sentimento, o segundo skandha. Como ignorámos o espaço aberto, a seguir, gostamos de sentir as qualidades do espaço sólido, a fim de realizarmos completamente a qualidade de posse que estamos a desenvolver. Claro que o espaço não significa apenas espaço vazio, pois contém cor e energia. Há tremendas e magníficas manifestações de cor e energia, lindas e grandiosas. Mas ignorámo-las totalmente. Em vez disso, temos apenas uma versão solidificada dessa cor, e a cor transforma-se em cor capturada e a energia transforma-se em energia capturada, porque solidificámos o espaço inteiro e transformámo-lo no «outro». Assim, começamos a tentar sentir as qualidades do «outro». Ao fazer isto, garantimos a nós mesmos que existimos. «Se posso sentir algo lá fora, então eu devo estar aqui.»

Sempre que acontece algo, procuramos sentir se a situação é sedutora, ameaçadora ou neutra. Sempre que há uma separação súbita, um sentimento de ignorar a relação do «aquilo» com «isto», tendemos a querer sentir o nosso chão. Isto é o mecanismo da sensação extremamente eficaz que começamos a criar, o segundo skandha.

O mecanismo seguinte no estabelecimento do eu é o terceiro skandhapercepção-impulso. Começamos a ficar fascinados com a nossa própria criação, as cores estáticas, as energias estáticas.

Queremos relacionar-nos com elas, e por isso começamos gradualmente a explorar a nossa criação.

A fim de explorarmos eficazmente, tem de haver algum tipo de sistema de comutação, um controlador do mecanismo da sensação. A sensação transmite a sua informação a um quadro central, que é o acto de percepção. De acordo com essa informação, fazemos juízos de valor, reagimos. Quer reajamos a favor ou contra ou indiferentemente isso é automaticamente determinado por esta burocracia da sensação e da percepção.

Se sentimos a situação e a consideramos ameaçadora, então, afastamo-la de nós. Se a consideramos sedutora, então atraímo-la a nós. Se verificamos que é neutra, tornamo-nos indiferentes. Esses são os três tipos de impulso: ódiodesejo e estupidez. Assim, a percepção refere-se à recepção de informação do mundo exterior e o impulso refere-se à nossa reacção a essa informação.

O desenvolvimento seguinte é o quarto skandhaconceito.

A percepção-impulso é uma reacção automática à sensação intuitiva. Contudo, este tipo de reacção automática não é uma defesa realmente suficiente para proteger a nossa ignorância e garantir-nos segurança. A fim de realmente proteger-nos e enganar-nos completa e adequadamente, precisamos do intelecto, da capacidade de dar nomes e categorias às coisas. Assim, etiquetamos as coisas e acontecimentos como «bons», «maus», bonitos», «feios», etc., de acordo com o impulso que achamos apropriado.

Assim, a estrutura do ego torna-se gradualmente mais pesada, mais forte. Até este ponto, o desenvolvimento do ego tem sido puramente um processo de acção e reacção; mas, a partir de agora, o ego desenvolve-se gradualmente para além do instinto animal e torna-se mais sofisticado. Começamos a experimentar a especulação intelectual, confirmando ou interpretando-nos a nós mesmos, colocando-nos em certas situações lógicas, interpretativas. A natureza básica do intelecto é muito lógica. Obviamente, haverá a tendência de procurar uma condição positiva: confirmar a nossa experiência, interpretar a fraqueza em força, criar uma lógica de segurança, confirmar a nossa ignorância.

Em certo sentido, deve dizer-se que a inteligência primordial está sempre em operação, mas está a ser utilizada pela fixação dualista, pela ignorância. Nos estágios iniciais do desenvolvimento do ego, esta inteligência opera com a agudez intuitiva da sensação.

Mais tarde, actua na forma de intelecto. Realmente, parece que afinal não existe ego; não existe o «eu sou». É uma acumulação de uma porção de material. É uma «brilhante obra de arte», um produto do intelecto que diz: «Vamos dar-lhe um nome, vamos chamar-lhe qualquer coisa, vamos chamar-lhe "eu sou"», o que é muito inteligente. O «eu» é o produto do intelecto, a etiqueta que unifica num todo único o desenvolvimento desorganizado e disperso do ego.

O último estágio do desenvolvimento do ego é o quinto skandhaconsciência. A este nível, ocorre uma amalgamação: a inteligência intuitiva do segundo skandha, a energia do terceiro e a intelectualização do quarto combinam-se para produzir pensamentos e emoções. Assim, ao nível do quinto skandha, descobrimos os seis domínios bem como os padrões incontroláveis e ilógicos do pensamento discursivo.

Este é o quadro completo do ego. É a este estado que todos chegámos no nosso estudo da psicologia e meditação budista.

Na literatura budista, há uma metáfora vulgarmente utilizada para descrever todo este processo, a criação e o desenvolvimento do ego. Fala de um macaco encerrado numa casa vazia, uma casa com cinco janelas representando os cinco sentidos. Este macaco é curioso, enfia a cabeça em cada janela e salta para cima e yara baixo, sem cessar. É um macaco cativo numa casa vazia. E uma casa sólida e não a selva em que o macaco saltava e corria, não as árvores em que ele podia ouvir o vento a soprar e o restolhar das folhas e dos ramos. Todas estas coisas ficaram completamente solidificadas. De facto, a própria selva tornou-se esta casa sólida, a sua prisão. Em vez de se pendurar numa árvore, este macaco curioso ficou emparedado num mundo sólido, como se fosse uma coisa fluente, uma queda de água dramática e bela que de repente se tivesse congelado. A casa congelada, constituída por cores e energias congeladas, está completamente imóvel. Esse parece ser o ponto em que o tempo começa como passado, futuro e presente. O fluxo das coisas transforma-se em tempo sólido e tangível, numa ideia sólida de tempo.

O macaco curioso desperta do seu blackout, mas não acorda completamente. Desperta para dar consigo enjaulado dentro de uma casa sólida, claustrofóbica, com apenas cinco janelas. Fica entediado, como se estivesse atrás das grades de uma jaula do iardim zoológico e tenta explorar as barras, subindo-as e descendo-as. Que ele foi capturado não é particularmente importante; mas a ideia da captura é magnificada mil vezes por causa do seu fascínio por ela. Se nos fascinamos, o sentimento de claustrofobia torna-se cada vez mais vívido, cada vez mais agudo, porque começamos a explorar a nossa própria prisão. De facto, o fascínio faz parte da razão de ele continuar prisioneiro. Ele é capturado pelo seu fascínio. Claro que a princípio deu-se o blackout súbito que confirmou a sua crença num mundo sólido. Mas agora, tomando como garantida a solidez, fica preso pelo seu envolvimento nessa prisão.

Claro que este macaco curioso não está sempre a explorar.

Começa por ficar agitado, começa a sentir que algo é muito repetitivo e sem interesse e principia a ficar neurótico. Faminto por distracção, procura sentir e apreciar a textura da parede, tentando assegurar-se que esta solidez aparente é realmente sólida. Depois, convencido que o espaço é sólido, o macaco começa a relacionar-se com ele, agarrando-o, repelindo-o ou ignorando-o. Se tentar agarrar o espaço a fim de o possuir como sua experiência pessoal, como sua própria descoberta, como a sua própria compreensão, isso é desejo. Ou, se o espaço lhe parecer uma prisão e então começar a espernear e a tentar libertar-se, então isso é ódio. O ódio não é apenas a mentalidade de destruição; é mais um sentimento de defesa, de defesa contra a claustrofobia. O macaco não sente necessariamente que haja um oponente ou um inimigo à sua frente; quer simplesmente libertar-se da sua prisão.

Finalmente, o macaco pode tentar ignorar que está preso ou que há algo de sedutor no seu meio ambiente. Actua como surdo e tonto e assim torna-se indiferente em relação ao que se passa à sua volta. Isso é estupidez.

Voltando um pouco atrás, podemos dizer que o macaco nasceu numa casa quando acorda do blackout. Não sabe como chegou a esta prisão, pelo que assume que sempre ali viveu, esquecendo-se que ele mesmo solidificou o espaço em paredes. Então, sente a textura das paredes, que é o segundo skandha, sensação. Depois disso, relaciona-se com a casa em termos de desejo, ódio e estupidez, o terceiro skandha, percepção-impulso. Depois, tendo desenvolvido estas três formas de se relacionar com a sua casa, o macaco começa a etiquetá-Ia e a categorizá-Ia: «Isto é uma janela. Este canto é agradável. Aquela parede assusta-me e é má.» Desenvolve um quadro conceptual com o qual classifica, categoriza e avalia a sua casa, o seu mundo, de acordo com o facto de a desejar, a odiar ou se sentir indiferente por ela. Esse é o quarto skandha, conceito.

O desenvolvimento do macaco através do quarto skandha foi muito lógico e previsível. Mas o padrão de desenvolvimento começa a desfazer-se quando entra no quinto skandha, a consciência. O padrão de pensamento toma-se irregular e imprevisível e o macaco começa a ter alucinações, a sonhar.

Quando falamos de «alucinação» ou «sonho», isso significa que atribuímos valores a coisas e acontecimentos que estes necessariamente não possuem. Temos opiniões definidas sobre a forma como as coisas são e devem ser. Isso é projecção: projectamos a nossa versão das coisas naquilo que existe. Assim, ficamos completamente imersos num mundo da nossa própria criação, um mundo de valores e opiniões conflituantes. Neste sentido, a alucinação é uma má interpretação de coisas e acontecimentos, lendo no mundo fenomenal significados que ele não possui.

É isso que o macaco começa a experimentar ao nível do quinto skandha. Tendo tentado sair e não o conseguindo, sente-se rejeitado, impotente e assim começa a ficar completamente louco. Como está tão cansado da luta, é-lhe muito tentador relaxar e deixar a sua mente vaguear e alucinar. Isso é a criação dos seus lokas ou reinos. Na tradição budista, tem havido muita discussão sobre seres infernais, pessoas celestiais, o mundo humano, o reino animal e outros estados psicológicos do ser. São os diferentes tipos de projecções, o mundo onírico que criamos para nós mesmos.

Tendo lutado e fracassado em escapar, tendo experimentado a claustrofobia e a dor, este macaco começa a desejar algo de bom, algo de lindo e de sedutor. Assim, o primeiro reino em que começa a alucinar-se é o loka deva, o reino divino, o «céu», um local cheio de coisas lindas e esplêndidas. O macaco sonha escapar da sua casa, caminhar por campos luxuosos, comer boa fruta, saltar de árvore em árvore, levando uma vida de liberdade e descontracção.

Depois, também começa a ter alucinações sobre o reino asura, ou o domínio dos deuses zelosos. Tendo experimentado o sonho do céu, o macaco quer defender e manter a sua felicidade e bem-aventurança. Sofre de paranóia, preocupado que os outros possam tentar arrancar-lhe os seus tesouros e assim começa a sentir inveja. Orgulha-se de si, tem gozado a sua criação do domínio divino e isso leva-o à inveja do domínio asura.

Depois, também percebe a qualidade terrena destas experiências. Em vez de simplesmente alternar entre inveja e orgulho, começa a sentir-se confortável em casa no «mundo humano», o «mundo terreno». É o mundo em que se limita a levar uma vida normal, fazendo normalmente as coisas de um modo mundano. Esse é o domínio humano.

Mas depois o macaco também sente que as coisas são um pouco enfadonhas, que há algo que não está pefeitamente bem. Isto porque, ao progredir do domínio dos deuses para o domínio dos deuses zelosos e deste para o domínio dos seres humanos, a sua alucinação toma-se cada vez mais sólida, pelo que todo este desenvolvimento começa a parecer um tanto pesado e estúpido. Neste ponto, nasceu no domínio animal. Prefere rastejar ou ladrar do que gozar o prazer do orgulho ou da inveja. É a simplicidade dos animais.

Então o processo intensifica-se e o macaco começa a experimentar uma sensação desesperada de fome, porque realmente não quer descer a domínios mais baixos. Gostaria de retomar ao domínio dos prazeres dos deuses; assim começa a sentir fome e sede, uma sensação tremenda de nostalgia daquilo de que se recorda ter tido uma vez. Esse é o domínio dos fantasmas famintos, ou domínio preta.

Dá-se então uma súbita perda de fé e o macaco começa a duvidar de si mesmo e do seu mundo, começa a reagir violentamente. Tudo isto é um terrível pesadelo. Percebe que um tal pesadelo não pode ser verdade e começa a odiar-se por criar este horror. Esse é o sonho do domínio infernal, o último dos seis reinos.

Através de todo o desénvolvimento dos seis reinos, o macaco experimentou pensamentos discursivos, ideias, fantasias e todo um conjunto de padrões de pensamento. Até ao nível do quinto skandha, o seu processo de evolução psicológica tem sido muito regular e previsível. A partir do primeiro skandha, cada desenvolvimento sucessivo surge num padrão sistemático, como uma camada de telhas num telhado. Mas agora o estado mental do macaco ficou muito distorcido e perturbado, tão repentina é a manifestação deste puzzle mental e os seus padrões de pensamento tornam-se irregulares e imprevisíveis. Esse parece ser o nosso estado de mente ao chegarmos aos ensinamentos e à prática da meditação. Este é o nosso ponto de partida para a nossa prática.





quinta-feira, 2 de julho de 2015

INTANGIBILIDADE


Intangível é palavra imaterial, como todas as palavras, floração de ideias e memórias.
Neste vestíbulo do século XXI, as ideias devem presidir ao bem comum, assentes em bases culturais que denotem discernimento, sentido de pertença e de futuro, nutridas pelo alimento do passado comum.
Um adolescente, que participou na consulta sobre o destino a dar ao edifício do velho Hotel Estoril, terá dito que se a memória era colectiva, essa não era a dele. Isto é, exclui-se do colectivo. Pensará, porventura, que isto de colectivo é um valor dividido por gerações. Não tem culpa de viver na ignorância e na inocência. A inocência perdoa-se. A ignorância, a verdadeira ignorância, afirmação repetida até à exaustão, é não saber que não se sabe. E isso é uma omissão legada.
Não será, assim, um processo isolado, antes como que uma epidemia que provém de um tempo para além do tempo do adolescente e que se tem vindo a agravar com a tangibilidade do vil metal, e que tantos julgam poder substituir-se ao conhecimento. O dinheiro não tilinta, tange, e nesse tanger incrusta-se em camadas de ignorância, porque o imaterial deixou de interessar em sociedades eminentemente materialistas.
Se transformar o já transformado espaço do Tap Seac num centro de actividades culturais se afigura uma boa ideia, as concentrações só são desejáveis se contrabalançadas com outros pólos.
Neste campo da tangível intangibilidade, povoada de memórias, que nem a todos, pelos vistos -independentemente da idade - interessa, ocorrem-me à memória dois edifícios emblemáticos: o Hotel Central e o Grand Hotel, ambos numa das principais artérias da cidade, que une o caminho do antigo Porto Exterior ao Porto Interior.
Este percurso tem vindo a ser delapidado, começando pela Tabacaria Filipina e pelo Restaurante Long Kei, cujos exteriores por sob as arcadas foram simplesmente destruídos, quero crer que por crasso mau gosto, falta de entendimento histórico e cultural do que é património quotidiano, e continuando pelo velho e desaparecido Soi Cheong, de quem Manuel da Silva Mendes era amigo e frequentador. Em seu lugar, aços polidos, vidros, carnes secas, pastéis, sapatarias, tudo naqueles ajoujados brilhos de novo-rico, equívoco dos equívocos.
O Hotel Central é charme em potência. Não sei a quem pertence hoje, mas o estado a que chegou é de tal modo decadente que constitui um gritante cartaz do abandono. Embora pintado, a quem (não) servirá um hotel de interiores Art Deco que noutras épocas foi o centro da vida diurna e nocturna de Macau, quando era propriedade da Tai Hing de Kou Ho Neng e Fu Lou Iong?  Abandono que partilha com o esventrado Grand Hotel, por onde passaram estrelas como William Holden.
Possivelmente, à noite, bailes fantásticos com orquestras de metais, figuras de ópera chinesa esvoaçando sobre os ecos de pregões das iguarias do iam chá, enquanto os anúncios do Fan Tan e as cestas a descer do piso superior com as apostas, entremeadas de gritinhos de damas acompanhantes de jogadores mais prósperos, percorrerão fantasmagoricamente esses espaços vagos, tão vagos quanto estava o edifício do antigo Tribunal, aguardando resgate total e retorno aos seus tempos áureos.
Poderá parecer redundante falar sobre esta matéria, mas perante a ganância pelo metro quadrado, não basta apenas prevenir. É preciso valorizar, dar-lhes uso intensivo para que não perpassem décadas de olvido antes que se olhe para estes testemunhos.
A Memória, essa, não se secciona. Mas, infelizmente, já vamos com várias décadas de atraso em relação ao que deveria ter sido feito. Faz porém falta uma lei mais estruturada sobre a preservação de interiores. Não são apenas as fachadas e montras dos edifícios que têm importância. É preciso que indoutos se não imiscuam naquilo que pertence a todos.
Como exemplo, refiro, na cidade do Porto, o antigo Café Imperial, na principal praça da cidade, hoje transformado num Mc Donald's. Se a notícia é banal, o que merece referência é a preservação do seu interior e fachada, onde apenas foi permitido colocar o nome da cadeia de fast food.
Impõe-se, para o que resta do Património desta cidade, um grande rigor, tão grande quanto a intolerância para o tabagismo. Afigura-se imperativo que se autonomize o Património para aliviar a carga, já pesadíssima, atribuída ao Instituto Cultural de Macau. Trata-se de uma questão de eficiência que requer, como em todas as áreas, a presença de especialistas para cada ramo, com a mesma abordagem que as Universidades têm pelo mundo fora. Que venham os melhores, não importa de onde. O que interessa é que se definam princípios mais restritivos, porque o sentido do colectivo começa com a preservação do tangível para o sustento da intangibilidade.