quinta-feira, 24 de setembro de 2015

OS JANÍZAROS

Janízaro, 1914


À medida que o desenvolvimento social cresce, os núcleos expandem-se, por vezes através da migração e por vezes da cópia ou inovação independente levada a cabo pelos vizinhos. As técnicas que funcionaram bem num núcleo mais antigo – quer essas técnicas sejam a agricultura e a vida nas aldeias, as cidades ou estados, os grandes impérios ou a indústria pesada – disseminam-se por novas sociedades, novos ambientes. Por vezes essas técnicas florescem no seu novo enquadramento; por vezes, avançam aos tropeções; e, por vezes, precisam de modificações gigantescas para funcionar de todo.

Ian Morris in "O Domínio do Ocidente"


Kublai Khan, neto de Gengis Khan, fundou formalmente a dinastia Yuan (1271-1368), a primeira experiência de “achinesamento” da cultura nómada dos mongóis por uma outra, bem mais poderosa, a que se poderá chamar, com propriedade, a cultura Han, ou seja, a cultura e civilização multi-milenar da China.

Sucedendo aos Song, os Yuan depressa foram envolvidos pelo nacarado da ostra chinesa e, num breve espaço de meros 97 anos, brilharam efemeramente no universo chinês. O retorno à cultura Han sucedeu-lhe prontamente, por via da emergência dos Ming (1368-1644), mas de novo veio a queda do Mandato Celestial, agora em favor dos nómadas provenientes da Manchúria, os Qing (1644-1912). A corrupção e a decadência deram origem então à emergência de um conceito ocidental, inteiramente estranho à China: a República, que após alguns percalços, se iria manter e progredir até aos dias de hoje.

Se a “sinificação” por poderio cultural englobou mongóis e manchus, isto é, quando os conquistadores se tornam reféns da cultura do território conquistado, o processo subsequente constituiu – através das atribulações dos finais da última dinastia – a lenta emergência do Ocidente no Celeste Império. Efectivamente desde a China dos Tang, séc. VIII, que comunidades de Judeus se instalaram na China, precedendo Marco Polo,  século XIII e Matteo Ricci, no século XVI, este talvez o mais completo e antigo caso de transculturação na cultura chinesa, como conselheiro do imperador Wan Li. 

Se a presença de Marco Polo, Matteo Ricci e, no século XIX, as forças ocidentais a imporem os resultados da Revolução Industrial num Império tornado progressivamente obsoleto, culminando nas práticas da regente Cixi, o que se testemunha no dealbar do século XX é a ocidentalização do pai da China Republicana, e dos seus camaradas. Gente culta que curiosamente passou por Macau e a este Território esteve ligada – tanto quanto Matteo Ricc – prontamente decretou a excisão de todas as tranças da subjugação manchú e a adopção de trajes ocidentais.

Porém, e dando o salto para a evolução histórica da Grande China e a recente emergência das sociedades de consumo provenientes da economia socialista de mercado, parece existir em Macau uma faixa de gente que se desligou das suas próprias raízes, para abraçar um mundo global cuja complexidade não domina. Este grupo, cuja leitura do mundo é unidimensional, sem domínio de uma segunda ou terceira língua, constitui um desafio sócio-educativo e cultural merecendo ser objecto de um estudo sociológico que permita identificar os diversos graus de absorção do que já se tornou híbrido, e que, em quantidades diferentes, habitam esta percentagem da população.

Daria a este grupo o nome adaptado de Janízaros1 por ter ocorrido neles uma captura da sua cultura original e o trânsito para um patamar ocidentalizado, cuja apreensão tem características de incompletude no processo de apreensão e transição para Ocidente.

Assim, os instrumentos e saberes que os informam estão sujeitos a interpretações oscilantes, mediante a perplexidade que cada tema lhes suscita.

Macau precisa de identificar sociologicamente os diversos grupos da sua população para que a operacionalidade dos seus actores anónimos possa integrar-se nos objectivos, direitos e deveres que a consciência da cidadania exige.

Hoje em dia espera-se por uma Cidadania integrada no global e não na exclusão por incompletude.



1Os sultões Otomanos criaram uma força de elite conhecida por Janízaros, formada por homens que tinham sido raptados em crianças, geralmente gregos de famílias de fé católica, educando-os na lei do Islão, no idioma turco e no manejo de armas e artes militares.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

TAI QI


Aqui por Macau, sobretudo nos jardins, ao amanhecer, vêem-se pessoas de meia-idade e mesmo cidadãos mais idosos a praticarem diferentes tipos de ginástica, impassíveis e indiferentes ao que se passa ao seu redor. É o regresso à velha sabedoria chinesa, a mesma que inventou a acupunctura. 
O primeiro documento que inequivocamente descreve um sistema organizado de diagnóstico e tratamento, que é reconhecido como acupunctura, é o Clássico de Medicina Interna do lendário Imperador Amarelo, compilado por volta do ano 100 a.C., um conjunto de legados transmitidos através de gerações.
Curioso se torna reconhecer a relação que a acupunctura tem com a filosofia Taoísta e o conhecimento dos meridianos do corpo humano, bem como dos fluxos Yin e Yang.
O Grande Compêndio de Acupunctura e Moxibustão foi finalmente publicado durante a Dinastia Ming, (1368-1644), no qual são revelados os 365 pontos de abertura dos canais através dos quais flui o Chi ou Qi, a energia vital.
Curioso se torna verificar que uma dor de dentes do lado do maxilar direito é atenuada por um ponto no espaço entre o polegar e indicador das costas da mão esquerda. Assim se equilibram os opostos, Yin e Yang que, no seu todo, constituem o Tai Qi. 
É com base nesta antiquíssima teoria dos opostos que hoje compreendemos a sua relevância ao estudar o magnetismo ou o modo como a electricidade passa.
O Tai Qi pode ser definido literalmente como "Uma pessoa centrada entre Céu e Terra que sabe como estar em pé como uma árvore, relaxada como um pinheir, usando a mão e a boca de um modo equilibrado na Terra".
O I Qing ou livro das Transmutações, data do período Chou Ocidental (1000 - 750 A.C.)  assenta os seus princípios nas combinações de trigramas contendo linhas Yin (uma linha quebrada) e Yang (uma linha inteira) originando 64 hexagramas.  
Num momento da história da humanidade, quando emergem com grande força, a par do Tai Chi/Tai Qi ou do Chi Gong/Qi Gong, ou o Ki de Aikido, novas formas de cura, como o Reiki ou a Reconexão, o que podemos assistir quotidianamente nos jardins e praças de Macau, a par de gaiolas com aves canoras, é o diálogo do homem com o (seu) Universo, já que, segundo o velho conceito de Tien Hsia ou TianXia (tudo o que está debaixo do céu, conceito extenso e demasiado vasto para caber num pequeno artigo) os princípios feminino e masculino são universais. O significado de TianXia  referia-se ao mundo geográfico ou ao reino metafísico dos mortais antes de se concentrar no território divinamente atribuído ao Filho do Céu através do "Mandato Celestial".
Quando voltar a passar por um jardim onde se pratica ginástica ou o Tai Chi Chuan, não esqueça de se perder um pouco na contemplação desta arte de movimentos lentos e fluidos que poderiam ser, porque não, o paradigma da essencialidade da existência, quando o homem se integra no seu lugar na ordem natural das coisas.
Afinal, foram os antigos sábios que enunciaram a dualidade entre o princípio feminino e o masculino e, na sua completude, o Tai Qi. Apesar dos milénios, estes princípios são incontestáveis, para bem da humanidade. 


quinta-feira, 10 de setembro de 2015

UMA VOZ ENTRE MUNDOS - JOANNE KUAI


As redes sociais ajudam a estabelecer contactos com maior facilidade.
Inadvertidamente, fui observando Joanne Kuai primeiro na TDM e depois nas redes sociais.
Estabelecemos breve contacto. Quis saber se ela aceitaria uma breve entrevista, pois a sua ligação à comunidade portuguesa é grande e isso despertou em mim curiosidade. Mal sabia eu que Joanne nasceu no deserto do Gobi, na Região Autónoma de Ninxia Hui. Aos seis anos foi morar com a avé em Kunming, Yunnan e fez o ensino primário lá. Depois foi para Shenzhen até que foi para Beijing onde se formou em  jornalismo de radiodifusão e documentários na Universidade de Comunicações da China. Durante o último ano da Universidade, ao abrigo de um programa de estágio de seis meses, resultante de uma parceria entre a sua Universidade e a TDM veio, veio para a TDM, no segundo semestre de 2010. Antes de regressar, a estação de Macau ofereceu-lhe emprego. Aceitou e regressou a Macau onde foi "âncora"durante três anos. Depois quis mudar de ares e ei-la como editora e jornalista do Macau Business Daily. Verdadeiramente, uma voz entre mundos.
António Conceição Júnior


1.       Joanne, visitou recentemente Portugal. Foi a primeira vez? Que sentimentos teve sobre as diferentes cidades (quais) em que esteve? E as pessoas?
Foi a minha primeira visita a Portugal. Sou da China continental e tenho vindo a trabalhar em Macau há quase quatro anos. Antes disso, tinha uma ideia muito vaga sobre Portugal - a sua localização e alguma breve história aprendida na escola. Mas desde que eu trabalho em Macau e fiz um monte de amigos portugueses, eles têm-me dito constantemente o quão grande é o país apesar da crise econômica que trouxe alguns deles aqui. Falaram-me do clima agradável, do céu azul, dos dias de sol, praias, edifícios históricos, incríveis paisagens, óptima comida e pessoas amigáveis e acolhedoras. Comecei a ficar curiosa e impressionada com o quão orgulhoso os portugueses são do seu país e como pessoas de diferentes cidades contam histórias diferentes.
Depois da minha viagem a Portugal, está tudo confirmado, já que este pequeno país - em termos de tamanho em comparação com a China - tem maravilhas intermináveis ​​que me mantiveram sempre surpreendida. Cada cidade tem o seu charme único. A paisagem pode variar muito em pequena escala. Trinta minutos de carro de um lugar para outro pode levar a um mundo totalmente diferente.
Em relação às pessoas, confirmei a cultura descontraída dos jortugueses que já experienciara com os meus amigos portugueses em Macau. Além disso, sinto que as pessoas tendem a saber como aproveitar a vida melhor, pelo menos melhor do que os chineses em geral. Existem muitos cafés, pastelarias, para as pessoas tomarem um café e comerem um à tarde, reunindo-se com os amigos ou simplesmente sentarem-se e relaxarem. O hábito de beber cerveja a partir da tarde é generalizado em todo o país. Também no tempo de verão, o sol só se põe apenas pelas de 21:00 horas. Isso finalmente clarificou o quebra-cabeças que eu tinha há anos por os meus amigos portugueses jantarem sempre tão tarde. Então, a vida noturna continua com muita diversão e gargalhadas. Também tive a honra de ser convidada para casa de amigos portugueses, onde fui recebida com todo o coração, certificando-se que eu tinha gostado do meu tempo lá.

2.        Quais as coisas que mais a tocaram?
É realmente difícil escolher o momento "mais", porque realmente gostei de toda a minha estadia em Portugal.
Eu diria que a experiência de pára-quedas no Algarve foi definitivamente um ponto alto, e quando voando no céu olhando por cima da costa Algarvia, foi um momrnyo para além das palavras.
Há um outro momento mágico que eu gostaria de compartilhar: cheguei ao Porto de comboio vinda de Coimbra, no período da tarde. No momento em que pisei o chão fora do combóio, vi essa luz amarela poética que brilha através das grandes janelas da Estação de São Bento, o nome da cidade "Porto" inscrito sob o relógio, alguns passos à frente passando um portão de tecto alto, e vi-me cercada por azulejos nas paredes, onde senti como se pudesse quase respirar o ar da história antiga. Saindo da estação, senti a fria, mas refrescante brisa, pássaros brancos que voam sobre o céu azul, edifícios históricos na minha frente, típicas ruas de paralelepípedos que me fizeran lembrar Macau - é claro que eu sei que Portugal é o original, mas a familiaridade deu-me uma sensação de calor - e ouvi música jazz ao vivo tocada ao virar da esquina. O momento era simplesmente mágico e eu até disse para mim mesma, não é nada difícil apaixonar-me pela cidade, o Porto.



3.        Como vê a arquitectura tradicional de Macau como o Largo do Senado ou o Bairro de S. Lázaro?
Acho que o mais maravilhoso sobre os locais históricos de Macau é a sua singularidade, uma combinação orgânica, integrada e harmoniosa entre o Oriente e o Ocidente - que pode soar como um clichê, mas ao caminhar por uma igreja depara-se-nos, alguns passos à frente, um templo chinês. Não é uma cena que se possa encontrar pelo mundo.
As arquitecturas em áreas bem preservadas são encantadoras. Ao contrário das que vi em Portugal, onde as artes de rua estão muito bem combinadas com locais históricos. A arquitectura histórica de Macau é ainda mais tradicional e preservada da maneira que é. Uma coisa que eu aprecio é que visitar esses locais em Macau é gratuito, enquanto que em Portugal existem locais históricos que cobram aos turistas dinheiro para visitar.
Sente-se que os locais históricos de Macau como que fazem parte da vida dos seus moradores, pois estão muito ligados à cidade, como no próprio centro da cidade, ao contrário dos da China onde se tem de viajar horas para visitar um local histórico.
Os vários eventos que acontecem nesses locais históricos são muito interessantes e atraentes e trazem vida a esses lugares, como os concertos na Fortaleza do Monte, Festas em São Lázaro e até mesmo as projecções em 3D nas ruínas de S.Paulo.

4.       Na sua perspectiva, o que faz a diferença em Macau, por comparação com a grande China?
Como uma chinesa do continente, Macau, como Região Administrativa Especial, não tem uma posição especial para mim, psicologicamente. Cresci ouvindo uma canção dedicada à transmissão de soberania. Tem uma bela melodia, mas a letra diz que "Macau não é meu nome verdadeiro, por favor chame-me Ao Men".
Depois da minha primeira visita aqui como turista em 2005, Macau para mim foi uma cidade com uma história colonial que resulta num estilo de arquitectura diferente da maior parte da China Continental, uma estranha praia com areia que é realmente preta, e comida portuguesa e pastéis de nata. Engraçado o suficiente, eu fui ao Dumbo, assumindo que era um restaurante Português muito bom, que mais tarde, desde os dias que tenho vindo a trabalhar aqui, nunca mais fui nem nunca ouvi que qualquer dos meus amigos portugueses o tenham frequentado. Além disso, apesar de serem ambas Regiões Administrativas Especiais, percebi o quão diferente Macau é de Hong Kong.
Quando regressei em 2010, o gigantesco Grand Lisboa de forma estranha, já estava erguido no centro da cidade. O desenvolvimento do Cotai é definitivamente algo bastante singular como Macau é o único lugar na China onde o jogo é legal e o Cotai é basicamente dedicado a isso.
Enquanto a cidade deveria ser muito avançada, como o turismo está crescendo e há muitos hotéis sofisticados, carros de luxo super e coisas assim, a vida quotidiana das pessoas está ainda bastante ligada aos velhos tempos. Para citar um exemplo, em 2010, não havia cinema UA no Galaxy, apesar do teatro da Torre de Macau. A primeira vez que fui ao Cineteatro Macau, onde se tem de comprar com antecedência o bilhete, a partir das 14:00 horas, quando se quer assistir ao filme, o número do assento é realmente escrito pelo funcionário, não há nenhum sistema de reservas on-line, os bilhetes impressos não existem. Isso apanhou-me de surpresa. Sem mencionar o Cinema Alegria, onde a equipa da bilheteria até nos orientá para comprar comida de rua em redor para se levar para o cinema, e de vez em quando há ópera cantonense, mas o projetor e sistema de som era surpreendentemente bom. Algumas partes da cidade dão-me a sensação de que estão congeladas no tempo.
Desde que comecei a trabalhar aqui e passar os meus dias de folga vagueando pela cidade, mais "estranhos encontros" aconteceram e comecei a misturar-me melhor também. Gostaria apenas de me deixar perder nesta cidade e encontrar ao virar da esquina, uma tenda de comida interessante, ou uma loja de antiguidades, uma alfaiataria, o cheiro de medicina chinesa, ou frutos do mar secos, um café moderno, ou um bar escondido. O chamado caldeirão de cultura é atractivo. Vemos igrejas, templos, mesquitas para outras comunidades. Aqui, eu faço amigos vindos de toda a parte do mundo, as pessoas com culturas e religiões diferente vivem num ambiente harmonioso.
Além disso, eu posso conversar com o casal de idosos que, em baixo de minha casa vende sumos  e quando eu me esqueço de trazer dinheiro eles simplesmente me oferecem o sumo. Há momentos eu sinto o 'Ren Qing Mei " - solidariedade, toque humano - que as pessoas de Macau falam e de que tanto se orgulham, mas às vezes lamentam o seu desaparecimento.
Também me espantei com tantas ofertas diferentes numa escala tão pequena: encontramos os óbvias extravagâncias dos casinos; as ruas estreitas de paralelepípedos da cidade estão povoadas por muitas lojas e lugares; o interior dos edifícios industriais estão cheios de surpresas de todos os tipos de atividades, como ginásios, casas de música ao vivo, galerias, padarias, etc; locais também históricos, incluindo o meu favorito Farol da Guia e a Penha; e um pouco para o sul, há a natureza, montanha, praia e mar, uma completa mudança de cenário.
A cidade começa a crescer em mim. Às vezes sinto como se fosse a cidade no filme de animação de Hayao Miyazaki - Entrega de Kiki.
Tendo dito isto, e apesar do ambiente descontraído e relativamente livre que temos aqui, a falta de eficiência da administração e aborrecimentos diários, tais como a poluição do ar e do insuportável trânsito, onde você sente como numa cidade tão pequena há tantas coisas que o governo poderia fazer, mas não faz, e isso perturba-me.
Além disso, como trabalhadora não-residente aqui, especialmente sendo proveniente da China Continental, francamente, às vezes não posso deixar de me sentir excluída. Em primeiro lugar, não nos garante a residência. Não importa quanto tempo trabalhe aqui, não irei ser automaticamente admitida pelas autoridades e tenho de lidar com a burocracia do pedido do cartão azul, prolongamento período de autorização de trabalho, etc.
Ouvimos consistentemente os legisladores que defendem o limite de importação de trabalho, e eu pergunto-me como pode uma cidade posicionar-se como internacional fazer isto, sobretudo tendo tantos projectos em desenvolvimento.
Não estou a falar sobre o direito ao voto, ou a distribuição de rebuçados pelo governo. O pior caso acontece quando seus direitos básicos não são devidamente salvaguardados. Uma vez que a pessoa perde o seu emprego, tem de saír da cidade num período muito curto de tempo. Você pode ter o seu namorado ou namorada, casa recém-alugada, mas não tem a legalidade para ficar na cidade. Nem a liberdade de mudar de emprego pois o seu empregador pode simplesmente recusar e você terá que esperar pelo menos seis meses fora devido à política do governo.

Como existem tantos riscos que impedem de me sentir à vontade ou sentir-me em casa, às vezes inclino-me a dizer a mim mesma para não me afeiçoar demais. Assim, há sempre este sentimento de ser uma estranha.

Ver aqui o texto publicado no Hoje Macau

INTEIREZA


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Odes de Ricardo Reis

Faz o teu melhor, mesmo em coisas triviais.
A partir daí, podes alcançar a sinceridade.
Esta sinceridade torna-se aparente.
Sendo aparente, torna-se brilhante.
Sendo brilhante, afecta os outros.
Afetando os outros, muda-os.
Mudando as pessoas, ela transforma tudo.
É somente aqueles portadores da maior sinceridade que podem transformar tudo.
Se fizeres o teu melhor, um a um, o mundo mudará.
O Homem Superior, Confúcio

Dizer-se que uma cidade é de cultura constitui um pleonasmo, mais concretamente, um sinal de desconhecimento do que são cidade e cultura.
Enquanto legados multisseculares, quando não milenares, as cidades são expressões inerentemente culturais, sucessivamente transmitidas de geração em geração.
Assumir esta evidência é assumir a inteireza da consciência de um dos mais fortes valores colectivos supra-ideológicos, incontornavelmente universal: a cidadania!
No século XXI, os valores que devem presidir à globalidade das culturas urbanas devem ser universais. À boa gestão da urbe, ao respeito pela sua história, cultura, qualidade de vida, é imperativo construções que respeitem a sua história, a implementação de parâmetros regulamentados de urbanismo de qualidade, a educação cívica, transportes públicos, saneamento, e todo um amplo conjunto de tarefas e objectivos que se devem centrar no cidadão
Ter dinheiro não significa ter riqueza. A riqueza não é um bem material, não se compra com dinheiro, assim como o verdadeiro prestígio. Esta a ilação retirada de mais uma visita ao país que, nas faldas da grande China, ajudou a fecundar uma pequena península, tornando-a única na singularidade da sua mestiçagem, inteira enquanto verdadeira.
A inteireza é um modo de integridade, uma decisão a favor da verdade que a si mesma se sustenta.
As cidades harmónicas são inteirezas sem exclusões. São os legados que chegam até nós, circunstâncias fugazes em relação à perenidade da pedra.
A grandeza de uma cidade não se pauta pela sua dimensão, mas pela verdade que ela transporta, em alternativa à decadência, a inverdades enxertadas e embutidas em camadas de tempo, e de verdades erradicadas, pulverizadas, trocadas por brilhos de mau-gosto, que acarreta a inacessibilidade cultural e gritantes incompreensões.
A capacidade de regeneração das cidades depende, por isso, em muito, das vontades que a elas presidem.
No caso da cidade do Porto,  esse mando está disseminado em termos de gosto, de regra e de regulamentos, nessa inteireza de que nos fala Ricardo Reis. Se a Pessoa lhe cabem bem os heterónimos, às cidades são-lhe reservadas acumulações de tempos e expressões, merecedoras que são da autenticidade que lhes devemos.
Esse é o caso da revitalização da Rua das Flores na cidade do Porto. Uma recuperação que constitui o resgate de abandonos ou ruínas, pela reposição contemporânea da tradição arquitectónica, retomando a continuidade do discurso do granito, do azulejo ou da parede (bem) pintada.
Essa continuidade constitui, não um pastiche que é uma inverdade de mau gosto e kitsch, pele que se coloca sem se ter conhecido ou vivenciado a origem, mas antes a expressão de um ADN em diferentes momentos no tempo.
Tudo o que se me patenteou aos olhos na Rua das Flores foi uma contemporaneidade respeitosa das origens, uma contiguidade do ontem no agora, esteticamente bela em termos formais.



O Porto, enquanto cidade, está mais bonito do que há um ano, e a Rua das Flores floriu.  Músicos de rua que a animam, portas velhas revisitadas pela cor, casas antigas inteira e impecavelmente recuperadas, a rematar o imperativo da ideia. É o hostel soberbamente reaproveitado, é o hotel de luxo anunciado para breve, é a ourivesaria sucinta e bela na sua limpidez, são as esplanadas pejadas de cidadãos e de turistas, a imponente Misericórdia, e o brasão esperançado na recuperação breve, para um outro fim.
Por aqui passeia-se história a desaguar no presente. Por aqui, a herança cultural insemina, como seria de esperar, o gosto bom.
As Cardosas oferecem-se ao olhar em planos diversos, num pátio triangular para onde se debruçam fachadas recuperadas, em exercícios de cor e de planos, num convívio discreto e civilizado.
De tudo isto sobressai a qualidade da mão de obra, daquela que sabe verdadeiramente lacar ou pintar, exteriores e interiores impecáveis nos acabamentos, onde  se sente o prazer de fazer bem até ao mais pequeno detalhe - põe quanto és no mínimo que fazes.
Pergunto-me quando é que na minha cidade natal se perdeu esta tradição. Pergunto-me quem terá construído o Teatro D. Pedro V, o estuque original do medalhão da fachada de S. Domingos, o Clube Militar? Quem construiu a bela biblioteca do velho Leal Senado? Os móveis de pau-rosa, de pau-preto ou de huang hua li, em estilo chinês ou ocidental, já não se fabricam em Macau. Também as gerações de mestres, outrora formados nas escolas salesianas, foram substituídos por curiosos sem preparação, seguindo os ditames corrompidos dos sifu. Tudo se vai tornando descartável. A cidade pede qualidade e tranquilidade, mas é-lhe exigida rapidez desvairada, e oferecido ruído, poluição e confusão, também esteticamente.
Porém, a cidade somos todos nós, a cidade é, como já foi dito, um legado. Cabe a governantes e governados, cidadãos em geral, proceder ao resgate desta urbe antiga.
Os finais do anos 1960 deram início à sua descaracterização. Perdidas algumas raízes, há que firmar o terreno desta cidadezinha, cuja mais-valia é a sua singularidade e a hibridez que ainda se respira, para que não se desmorone e  não empenhe o seu futuro.
As fotografias da Rua das Flores, que aqui ficam, são testemunhos de vontades do que foi aflorado e que urge implementar em força, contra ventos e lobbies, aqui nesta cidade que se deseja venha a ser Centro Mundial de Turismo e Lazer.

Ver aqui a versão do Jornal Hoje Macau

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O MEDO


Não se sabe quando foi inventado o medo. Provavelmente com o primeiro trovão, ou com o primeiro tremor de terra.
Com o tempo o medo foi-se constituindo numa arma, como por exemplo a fogueira da Santa Inquisição (ou confessas a bem ou confessas a mal), ou os interrogatórios dos diversos serviços secretos com serviço de manicure, pedicure e dentista.
Ontem assisti ao debate entre Passos Coelho e António Costa, e embora seja praticamente unanime que António Costa ganhou o debate, o que ficou patente, apesar de o primeiro-ministro agitar a imagem de Sócrates com aquela inocência de quem não comenta questões da esfera da Justiça, ficou mais uma vez a repetir a mesma coisa, igual a tantas outras, onde o argumento do medo foi usado, foi brandido. O medo do papão, o medo que o povo deve ter dos progressistas, que ele e o Portas - que deixaram o país com uma dívida muito maior do que aquela que herdaram - viram como o povo português se sacrificou para atingir o patamar em que estão, e para o qual apetece dizer que mal fez o povo para falarem em nome dele que o esmifraram mais ainda do que a Troika queria.
Eis o medo a ser usado como arma: "olhem, cuidado, nós construímos isto, recuperámos e temos o país em crescimento (exportámos milhares de enfermeiros, de jovens estudandes, de médicos e outros especialistas, demos cabo do Serviço Nacional de Saúde, liquidámos a cultura, a educação, a saúde, a justiça está tudo um caos). Se forem votar no aventureirismo do Costa, vejam lá, vejam lá no que se metem. Olhem para nós, somos tão penteadinhos, o Portas vai a todas as feiras. Não se deixem enganar".
Pois a mim custa-me viver com medo. Não quero viver com medo! Não gosto que me metam medo, não tenho medo, portanto calem-se porque já estão insuportáveis e esta mania de falar em nome do povo português irrita-me. Não vos passei procuração alguma para falarem em meu nome e duvido que a maioria dos portugueses o tenha feito.
Finalmente lamento que a RTP (quem manda lá, quem é?) não tenha transmitido para as comunidades fora de Portugal o debate que, felizmente, ouvi na Antena 1.
E sabem que mais? Depois dos escândalos BPN do Oliveira e Costa e do BES do dono disto tudo, mais o pedido de extradição do Duarte Lima, a demissão de Miguel Macedo, o estranho caso dos submarinos que poderia ser passado para Banda Desenhada sem contar com o Isaltino, é estranhíssimo que o ex-primeiro-ministro José Sócrates tenha ficado 10 meses ou quase, à sombra em Évora. Malhas que a (porca da) política tece, dez mil euros não chegam ao Cavaco, mas 350 euros hão-de ter de chegar aos idosos e menos ainda a 25% por cento da população que perdeu o emprego.
É muita a desfaçatez, mas não tenho medo e gostaria que todos deixassem de lado esse sentimento, porque os papões só papam se nós deixarmos.
E veja a RTP se se redime que eu sou português, com idade de votar e quero ver os debates, ou será que até nisto há filhos e enteados?