Ana Cristina Alves, doutorada com nota máxima e cum laudae, não sei já há quanto tempo a conheço. Não há uma medida. Porém sempre a soube prazenteira, sorridente, portadora daquela alegria espontânea que contagia e nos transporta a um outro registo onde o prazer da Amizade circula.
Veio a Macau dar um conjunto de aulas na Universidade de Macau, também a sua Universidade, e quis dar uma aula pública, porque partilhar, num mundo egoísta, é o que se deseja da grandeza espiritual desta minha amiga. Esta oportunidade levou-me a querer saber mais daquilo que ela tanto sabe, e com aquela facilidade de exposição que flui com o gosto que se lhe sente de comunicar, nasceu esta conversa que ficará aqui no meu blogue, patente durante anos, espero eu, para memória futura. Decidi que a entrevista seria tuteada, porque é assim que nos tratamos na vida real.
Ana Cristina Alves
Professora Doutora Ana Cristina Alves, desde quando e porquê, nasceu este teu interesse pela China?
A.C.A.: O meu interesse pela China nasceu da curiosidade filosófica de querer entender os caracteres chineses. Por que razão era a língua tão diferente das ocidentais? Procurei perceber as disemelhanças num primeiro momento pela simples aprendizagem da língua oficial da China, o Pǔtōnghuà (普通话), só mais tarde me comecei a interessar pelas pessoas que falavam chinês, fossem chineses ou macaenses....
Na “aula” que deste na Fundação Rui Cunha, e no que toca ao conceito chinês de religião, queres por favor esclarecer melhor a questão do mistério existente em Dào (道). Será que “obscurecer a obscuridade”, na sua visão, é a porta para a compreensão do mistério?
Ainda neste tema, como vês esse mesmo mistério no Xīn (心) budista? A compaixão, o amor, são parte do mistério? Se sim, de que mistério? A definição implica uma transcendência como a (julgamos) conhecemos?
A.C.A.: A minha relação com o Dào (道) não é de ordem intelectual, mas dinâmica e afetiva, pelo que creio que pode ser considerada “um obscurecimento da obscuridade”, ou seja, uma ligação instintiva, remetida para o saber intuitivo. Traduzo Dào por um “caminho” que fujo a concetualizar, vou dando cada passo com a certeza intuitiva da imersão num profundo mistério, que os budistas ajudam a experienciar, como viste e muito bem, por meio de Xīn (心), o coração atento e compassivo, ou melhor, com-partilhante das “paixões” de qualquer ser vivo. O que sucede por meio de um duplo movimento de transcendência e osmose: caminha-se em direção ao outro, sente-se a dor dele(a) e os seus estados passionais em si mesmo(a).
Entendes que Rén (仁) é a essência do Confucionismo? Será que os preceitos dos “Analectos” e o Li (禮) enquanto ritual, integram nos dias de hoje o edifício comportamental dos chineses? Por exemplo no caso do silêncio como espaço de espera ou de preservação da face, emerge curiosamente “O Poder do Silêncio” de Carlos Castañeda, discípulo do feiticeiro mexicano Don Juan.
A.C.A.: Concordo contigo. Rén (仁) é a essência do Confucionismo, suavizada pela tradição filosófica da escola, e a partir de Mêncio pela possibilidade de ligação amorosa trazida por Ài (爱), a atenção e cuidado ao outro, mesmo quando este pertence ao sexo feminino, porque por um lado Mêncio teve uma mãe admirável, e por outro, amava imparcialmente os seres humanos, pelo que os colocava, mulheres incluídas, acima dos Ritos Lǐ(禮), o mais importante será sempre cuidar e salvar alguém em lugar de obedecer a mandamentos e preceitos, mesmo quando estes têm origem divina.
Quanto ao lugar ocupado pelas Cinco Virtudes constantes (Benevolência 仁, Justiça 義, Ritos 禮, Sabedoria智 e Confiança信), como valores capazes de influenciarem o comportamento dos chineses, estava quase perdido, sendo esta uma das justificações complementares da ideologia vigente para o papel dos Institutos Confucius e Salas de Aula, dentro da China e fora do país como softpower capaz não só de elevar a cultura chinesa a um pedestal reconhecido internacionalmente, como de recordar ao povo as virtudes básicas esquecidas por um século de predomínio de flosofias ocidentais, como por exemplo a marxista, chegada à China não via Alemanha, mas através da Rússia.
Ainda que a tradição confucionista, de contenção e controlo, reserva e silêncio não tenha sido completamente esquecida pelos chineses. O Silêncio é parte integrante de muitas culturas orientais, onde se integram os chineses, corre-lhes nas veias culturais, sendo, por um lado, fruto duma educação rigorosa e pouco autocomplacente, por outro derivado de posturas filosóficas medidativas desenvolvidas propositadamente para o efeito.
Falando sobre o Mesmo e o Outro, achas que podemos compreender pela filosofia os processos comportamentais que o turismo chinês no estrangeiro patenteia, ou serão necessários outros instrumentos como a antropologia e a sociologia? Dizendo de outro modo, enquanto segunda pergunta dentro da primeira: que fenómeno atravessa a cultura de massas da China de hoje?
A.C.A.: Penso que os chineses apanharam o barco da globalização e que sentem uma enorme curiosidade e fascínio por todo o tipo de manifestações culturais, económicas, sociais, o que conduz a viagens para satisfazer essa enorme vontade de abraçar o outro, principalmente todas as novidades com que o outro possa contribuir para enriquecer o mundo chinês. Creio que, e talvez esteja enganada, a curiosidade turística dos chineses é mais intelectual do que afetiva. As novidades têm sobretudo em vista o enriquecimento pessoal e coletivo, e não tanto a tentativa de fusão ou transmutação no outro.
Em Portugal pelo menos uma faculdade de filosofia, a tua, entende que os saberes chineses não são filosofia, mas literatura tão só.
Provavelmente estamos a assistir à carência de um pouco da alteridade. Estamos a assistir a um grupo de pseudo gourmets a entrar num restaurante chinês e comer com garfo e faca. Será que estamos perante a mais crassa (e inesperada) das ignorâncias proveniente de uma área que exigiria exactamente o contrário, ou assistimos à manifestação do medo do desconhecido?
A.C.A.: É verdade que durante muito tempo as instituições universitárias portuguesas, nomeadamente os departamentos de Filosofia, se mantiveram na zona de conforto ocidental, não procurando quaisquer aproximações a outras formas de fazer Filosofia, pelo que quando confrontadas com elas as apoucavam e desmereciam, catalogando-as como Arte, nomeadamente Literatura, na esteira do preconceito platónico lançado contra as Artes, consideradas inferiores à Filosofia.
A situação tem vindo a mudar, muito lentamente, é certo, contudo já vai deixando brilhar a luz da esperança. Creio que estas novas gerações vão ter um maior leque de escolhas dentro dos departamentos de Filosofia, que terão de acompanhar as mudanças provocadas por um novo tempo de alianças, sobretudo políticas. O tempo dos preconceitos filosóficos relativos a expressões do saber que não afinem pelo diapasão do mesmo tem os dias contados, sendo caso para dizer que mais vale tarde do que nunca.
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