segunda-feira, 31 de maio de 2021

SHINGEN • A VISÃO COMPASSIVA


Para muito poucos no ocidente, e mesmo no oriente, se torna possível entender o conceito de shingen. A palavra é composta de dois caracteres chineses que em japonês se designam por kanji. Shin, aqui representado pelo carácter da esquerda que significa também kôkoro, (coração) conota-se aqui com o conceito de espírito, enquanto o segundo carácter, gen, significa olho, olhar.

Assim, desse coração associado ao olho, temos uma primeira transcrição que é  visão compassiva. Porém é preciso estarmos cientes de que essa visão anuncia a clarividência que só pode ser atingida com a visão despida de paixões.
A paixão é a emoção descontrolada.
A visão compassiva ou clarividente já ultrapassou esse descontrolo. Vê-se com a mente e o espírito, porquanto se já sabe que a visão ocular é do mero domínio da óptica.

Os nipónicos categorizavam o olhar e a visão de forma diferente. vejamos como:


Nikugen • a visão nua

Esta não é mais do que a imagem simples recebida pela retina, destituída de qualquer processo mental ou emocional. é, assim, o mais baixo dos cinco níveis de visão e possui três limitações.
Primeiro, nikugen é completamente superficial. A pessoa que possui apenas nikugen não vê mais além do que a existência dos objectos no seu campo de visão. A visão nua não comporta nenhuma compreensão mais aprofundada desses objectos tal como vieram parar aonde estão, como podem interagir, ou como podem afectar o observador ou outros.
Seguidamente, nikugen está limitada ao ponto de vista do observador. Só "vê" o lado dos objectos que estão virados na sua direcção, e é uma visão quase apenas bi-dimensional.
Finalmente, a visão nua é facilmente obstruída. A simples colocação de um objecto diante dos olhos do observador termina-lhe o olhar.
Estas características aplicam-se não apenas à visão física. Alguém que queira ver um problema usando nikugen apenas vê os seus aspectos mais superficiais.
Por exemplo,  sem dinheiro, constata que se encontra sem nada. Se quer um pão,  verá uma impossibilidade total na compra de alimento.
Esta visão bi-dimensional cega o seu portador perante outras possibilidades, como trocar trabalho por comida ou vender algo que possui para obter dinheiro para comer.


Tengen • a perspectiva neutral

O estádio seguinte do desenvolvimento da visão é tengen, literalmente visão celeste, não no sentido angelical ou transcendente do termo, mas antes do ponto de vista do observador.
Com tengen, o observador já não está preso pelo seu próprio ponto de vista, antes tem uma perspectiva neutra por via da qual vê os objectos ou o problema como se olhando para eles de uma grande altura. literalmente, a visão tengen permite "ver a floresta pelas árvores".
Assim, com uma menos auto-centrada perspectiva, a visão do observador não é tão susceptível às distorções das suas ideias pré-concebidas, reacções emocionais, ou condições de vida.
Recorrendo a exemplos prévios, alguém com esta perspectiva neutra já é capaz de perceber as faces escondidas dos objectos. aplicando conhecimento e experiência, a sua mente já permite uma visão mais alargada. isto é, alguém usando de uma perspectiva neutra, em vez de estreitamente perceber a falta de dinheiro para um pão, verá a situação como uma necessidade de comida, observação que já oferece outras opções para uma solução.
porém, ainda que com esta perspectiva de cima, as emoções do observador,  preconceitos e circunstâncias da vida interferem com a verdadeira compreensão da sua visão que ainda está limitada àquilo que os olhos vêem.


Egen • o olhar interpretativo

Literalmente significa olhar pensante, está a um nível mais elevado, no qual a imagem recebida pelo cérebro é melhorada por uma compreensão das implicações das coisas ou situações observadas.
Importa contudo não confundir egen com pensamento analítico. O olhar interpretativo não é sobre o pensar no que se vê. É antes um processo automático e subconsciente no qual o olhar e a mente operam conjuntamente uma interpretação das imagens recebidas pelo cérebro, produzindo assim uma visão mais profunda do que o mero olhar físico.
Um exemplo talvez experimentado por muitos: alguém observando dois carros aproximando-se de um cruzamento ao mesmo tempo, por duas ruas que se não vêem uma à outra, vislumbra um acidente prestes a acontecer. A maior parte das pessoas não precisará de parar para perceber isto. Pela experiência, sabendo que nenhum dos condutores vê o outro, sabemos automática e subconscientemente que irão colidir.
Se olhassemos com nikugen ou tengen (leia-se nikuguen e tenguen) veríamos apenas dois carros movendo-se, independentemente um do outro, sem estabelecer uma relação causal.
Infelizmente, enquanto a maioria dos adultos possui o olhar interpretativo no que respeita aos aspectos físicos, falta-nos egen a outro nível.
Com verdadeiro egen reconheceríamos quando um choque de personalidades ou vontades estaria da iminência de ocorrer. Veríamos um acontecimento não apenas na sua forma física, mas no contexto das forças em movimento  e os efeitos que mais tarde resultariam como consequência imediata ou remota.
Assim, o maior benefício de egen é que agora o observador percebe natural e subconscientemente a relação de causa-efeito das coisas que observa ou testemunha.
Contudo egen ainda tem insuficiências.


Shingen-hōgen • o olhar compassivo

Apesar de todos os benefícios, egen ainda está incompleto. embora o observador receba a visuão completa e desobstruída das situações, suas causas e efeitos - mesmo as razões e motivos subjacentes às acções - esta visão é distanciada e desapaixonada.
o nível de visão seguinte, shingen, confere o mais vital ingrediente de todos: a compaixão, a faísca que motiva o guerreiro da luz a tomar agir correctamente numa situação. Ele vê um acontecimento não apenas da sua perspectiva, ou como o afectará a ele, mas como o evento afectará as vidas de todos os envolvidos. Mais ainda, ele vê com compreensão e compaixão por todos os envolvidos, de modo que a sua acção não será a que mais conveniente lhe seja, mas sim aquela que melhor será para a sociedade no seu todo, independentemente da escala do conceito.
O guerreiro de luz não olha os sentimentos, acções, ou desejos dos outros como certos ou errados. Assim o seu juízo não será toldado pela necessidade de provar-se que está certo. Também não tem de ultrapassar a natural hesitação de outra pessoa admitir que está certa ou errada. O que o interessa e motiva é o que é mais valioso. Assim, num desentendimento, o guerreiro da luz observa as visões dos outros como alternativas, usando shingen para analisar qual das alternativas pode ter maior valia para o colectivo. Com esta abordagem torna-se também mais fácil persuadir os outros a aceitar a melhor escolha também.
A avaliação do guerreiro da luz está em sintonia com as imutáveis leis da natureza. Ele entende os princípios de causa e efeito, e que mesmo acções "erradas" são motivadas pelas forças de causa e efeito.
Por este motivo, shingen é muitas vezes referido como hōgen, cuja tradução literal é a da visão legal, mas não se refere às leis da humanidade. Poder-se-á talvez entender melhor utilizando o termo perspectiva universal, no sentido de que, tendo igual compaixão por todas as pessoas operando sob uma ordem natural, imutável, mas sob a qual o guerreiro da luz pode escolher intervir. É desta neutralidade inserida na ordem universal da natureza que o guerreiro da luz procura observar e agir da maneira mais benéfica.
Os antigos samurai eram treinados para uma percepção mais aguda e global das situações. Ver com o coração era o estádio máximo de desenvolvimento da visão da mente-espírito.
Hoje, o guerreiro da luz ou da paz global recupera essa visão para princípios mais nobres que a guerra. Assim, aquele que vê segundo shingen-hōgen percorreu um caminho desde o primitivo nikugen, passando por tengen e egen. Ganhou maior visão interior, maior compaixão, tornou-se mais natural por se integrar nas leis do universo.
Vejamos um exemplo do quotidiano:
• um execuivo com nikugen está atrasado para uma importante reunião de negócios, e quando se põe a caminho vê-se obrigado a conduzir velozmente no meio do trânsito congestionado, zizagueando de faixa em faixa, tentando ganhar alguns precisos minutos.
• um outro executivo possuídor de tengen perceberá que corre riscos de ser multado, poderá reduzir um pouco a velocidade, mas continua a querer ganhar tempo para chegar atempadamente à reunião.
• outro executivo possuidor de egen não deixará que o seu desejo de dar uma boa imagem de si na reunião tolde a sua visão. ele percebe que conduzir desvairadamente perigará a sua e a vida de outros, que têm o mesmo direito à segurança que ele.
• por fim, o executivo possuídor de shingen, com a ajuda de hōgen  já se encontra no local da reunião, aguardando a chegado dos outros. ele previu que haveria hora de ponta, engarrafamentos, pelo que acordou mais cedo, pôs-se a caminho de antes do congestionamento do trânsito e assim chegaria antecipadamente, ganhando um psicológico ascendente sobre os outros.(1)



(1)
No Japão toda a vida é organizada de uma forma rigorosa e até ritualística, razão porque chegar antes dos outros a uma reunião coloca essa pessoa numa posição mais privilegiada e de ascendência temporária.







quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O NOSSO VERDADEIRO LAR


 O Nosso Lar Verdadeiro

AJAHN CHAH


NESTA SELECÇÃO, O VENERÁVEL AJAHN CHAH - um monge tailandês cujo estilo de ensino simples e directo atraiu muitos estudantes ocidentais ao seu mosteiro - dirige-se a uma discípula idosa à beira da morte. O mestre recorda à moribunda os factos da impermanência. Fornece-lhe os meios concretos para lidar com o seu sofrimento - primeiro o mantra, depois, consciência da respiração. O uso do mantra aqui não tem nada em comum com a cantilena mágica de qualquer tipo. Simplesmente protege a mente, fornecendo uma palavra com conotações plenas, como uma alternativa às associações dolorosas que assaltam uma pessoa no leito de agonia. Na medida em que a atenção é gradualmente desviada do fluxo mecânico de associações e se relaciona com esta sequência de totalidade, a ansiedade vai desaparecendo e desenvolve-se uma compostura suficiente que possibilita atingir o ritmo correcto da respiração.
Consciência da respiração é a mais básica de todas as técnicas budistas de meditação, praticada em todas as tradições. O movimento não manipulado da respiração surge por si só, uma expressão contínua e natural da simplicidade do aqui e agora. São utilizados dois termos sânscritos, dharma e samskaras. O uso mais familiar do termo dharma é como parte do Buda Dharma. Aí, significa algo como «caminho» ou «norma». Mas nos escritos budistas é frequentemente utilizado, como aqui, para significar um fenómeno ou facto. Tudo que se transforma no objecto da atenção é um dharma. Um samskara, em sentido restrito, é um impulso mental; em sentido lato, é qualquer formação que ocorreu em dependência de condições. Isso inclui quase tudo quanto existe. E o Buda estava continuamente a recordar aos seus discípulos: «Tudo quanto está sujeito a aparecer está sujeito a cessação.»
Na tua mente, decide-te a escutar atentamente o Dharma.
Durante o tempo que estiver a falar contigo, presta tanta atenção às minhas palavras como se fosse o próprio Senhor Buda que estivesse aqui sentado à tua frente. Fecha os olhos e põe-te à vontade, prepara a tua mente e concentra-a num só ponto. Humildemente, permite que a Jóia Tripla da sabedoriaverdade e pureza habite no teu coração, como forma de mostrar respeito ao plenamente Iluminado.
Hoje, não trouxe nada de substancialmente material para te oferecer, mas apenas o Dharma, os ensinamentos do Senhor Buda. Escuta bem. Deves compreender que mesmo o próprio Buda, com a sua grande quantidade de virtude acumulada, não podia evitar a morte física. Quando chegou à velhice, libertou o seu corpo e deixou partir o seu fardo pesado. Agora, tu também deves aprender a satisfazer-te com os muitos anos em que já dependeste do teu corpo. Deves sentir que já chega.
Podes compará-lo aos utensílios caseiros que usaste durante muito tempo - as tuas chávenas, os pratos, os pires, etc. Quando os usaste pela primeira vez, estavam limpos e a brilhar mas agora, depois de os utilizares durante tanto tempo, começam a gastar-se. Alguns já se quebraram, outros desapareceram e os que restam estão a deteriorar-se, já não possuem uma forma estável e é da sua própria natureza serem assim. Com o teu corpo passa-se o mesmo - tem estado continuamente a alterar-se desde o dia em que nasceste, da infância à juventude, até chegar agora à velhice. Deves aceitar esse facto. O Buda disse que as condições (samskaras), sejam elas internas, corpóreas ou externas são não-ser, a sua natureza é a mudança.
Contempla esta verdade até a veres com clareza.
Este pedaço de carne que aqui jaz em declínio é satyadharma, a verdade. A verdade deste corpo é satyadharma e esse é o ensino imutável do Buda. O Buda ensinou-nos a olhar para o corpo, a contemplá-lo e a chegar a acordo quanto à sua natureza. Temos de ser capazes de estar em paz com o corpo, seja qual for o estado em que ele se encontre. O Buda ensinou-nos que devemos ter a certeza de que é apenas o corpo que está encerrado numa prisão e não permitir que a mente fique presa juntamente com ele. Ora, quando o teu corpo começa a gastar-se e a deteriorar-se com a idade, não resistas a isso, mas não permitas que a tua mente se deteriore com ele, mantém a tua mente separada. Dá energia à mente, percebendo a verdade da forma como as coisas são. O Senhor Buda ensinou que essa é a natureza do corpo, não pode ser de outra forma, pois tendo nascido, envelhece, adoece e depois morre. Essa é a grande verdade que estás presentemente a enfrentar. Olha para o corpo com sabedoria e entende isso.
Mesmo que a tua casa seja inundada ou incendiada, sejam quais forem os perigos que a ameacem, isso concerne apenas à casa. Se houver inundação, não deixes que as águas invadam a tua mente. Se houver fogo, não deixes que ele queime o teu coração. Que seja apenas a casa, que te é exterior, a ficar inundada ou queimada. Deixa que a tua mente se liberte das suas amarras. O tempo está maduro.
Já viveste muitos anos. Os teus olhos viram inúmeras formas e cores, os teus ouvidos ouviram muitos sons, passaste por inúmeras experiências. E tudo não passou disso - apenas experiências. Ingeriste comidas deliciosas e todos os bons sabores não foram mais do que bons sabores. Os sabores desagradáveis foram apenas sabores desagradáveis. Se os teus olhos virem uma forma maravilhosa, é isso que ela é - uma forma maravilhosa. Uma forma feia é apenas uma forma feia. O ouvido ouve um som melodioso e ele não é mais do que isso. Um som inarmónico é simplesmente isso.
O Buda disse que o rico ou o pobre, o jovem ou o velho, o humano ou o animal, nenhum ser deste mundo pode manter-se durante muito tempo em qualquer estado, pois tudo experimenta mudança e alteração. Esse é um facto da vida que não podemos alterar. Mas o Buda disse que o que podemos fazer é contemplar o corpo e a mente para ver a sua impessoalidade, para ver que nenhum deles é «eu» ou «meu». Possuem uma realidade meramente provisória. É como esta casa, é apenas nominalmente tua, não podes levá-la contigo para onde quiseres. Passa-se o mesmo com a tua riqueza, os teus bens, a tua família - são to dos teus apenas de nome e realmente não te pertencem, pertencem à natureza. Ora, esta verdade não se aplica apenas a ti. Todos estão na mesma posição, mesmo o Senhor Buda e os seus discípulos iluminados. Diferiram de nós num único aspecto e esse foi na sua aceitação da forma como as coisas são, pois viram que não havia outro caminho.
Assim, o Buda ensinou-nos a vasculhar e a examinar este corpo, da planta dos pés ao topo da cabeça e depois de novo da cabeça aos pés. Olha para o corpo. Que tipo de coisas vês? Vês nele algo de intrinsecamente limpo? Consegues descobrir alguma essência permanente? Todo este corpo está a degenerar-se rapidamente e o Buda ensinou-nos a ver que ele não nos pertence. É natural que o corpo seja assim, porque todos os fenómenos condicionados estão sujeitos à mudança. Como querias que fosse? Realmente, nada há de errado com a natureza do corpo. Não é o corpo que provoca o teu sofrimento, são os teus pensamentos errados. Quando vires erradamente o certo, então estarás presa à confusão.
E como a água de um rio. Naturalmente, ele corre a partir da nascente e nunca ao contrário, pois essa é a sua natureza. Se uma pessoa vai até à margem de um rio e vê a água a correr firmemente para baixo e se estultamente quiser que ela corra para cima, irá sofrer. O seu pensamento errado não lhe permitirá gozar paz de espírito. Sentir-se-á infeliz por causa da sua visão errada, pensando contra a corrente. Se tivesse uma visão correcta, veria que a água deve inevitavelmente correr em direcção à foz e enquanto não perceber e aceitar esse facto, tal pessoa ficará agitada e preocupada.
O rio que corre a partir da nascente é como o teu corpo.
Tendo sido jovem, o teu corpo envelheceu e agora corre para a sua morte. Não desejes que seja de outra forma, pois é algo contra o qual não tens poder. O Buda disse-nos que víssemos as coisas como são e nos desprendêssemos dos laços que nos ligam a elas. Refugia-te nesse sentimento de deixar ir as coisas. Continua a meditar mesmo que te sintas cansada e exausta. Permite à tua mente viver com a respiração. Inspira profundamente e depois concentra a mente na respiração, utilizando o mantra BUDDHO. Faz desta uma prática habitual. Quanto mais cansada te sentires, tanto mais subtil e focada deve ser a tua concentração, a fim de poderes suportar as sensações dolorosas que surgirem. Quando começares a sentir-te fatigada, então interrompe todo o teu pensar, deixa que a mente se recomponha e depois volta a aplicar-te à respiração. Continua a recitar interiormente BUD-DHO, BUD-DHO. Esquece tudo quanto é externo. Não te agarres a pensar nos teus filhos e parentes, não te agarres seja ao que for. Esquece o resto. Deixa que a tua mente se concentre num único ponto e que a tua mente recomposta se concentre na respiração. Permite que a respiração seja o único objecto de conhecimento. Concentra-te até a tua mente se tomar crescentemente subtil, até os sentimentos se tomarem insignificantes, até haver dentro de ti uma grande clareza e consciência. Depois, quando as sensações de dor surgirem, elas gradualmente cessarão. Finalmente, encara a respiração como se fosse um parente que te viesse visitar. Quando um parente se vai embora, acompanho-lo com o nosso olhar. Observamo-lo até ter desaparecido de vista e depois voltamos para dentro de casa. Observamos a respiração da mesma maneira. Se a respiração for difícil, sabemos que é difícil; se for suave, sabemos que é suave. Ao tornar-se crescente mente mais ténue, continuamos a segui-la, enquanto simultaneamente acordamos a mente. Eventualmente, a respiração acaba por desaparecer totalmente e tudo o que resta é o sentimento de acordar. Isso é o que chamamos encontro com o Buda. Temos essa clara consciência desperta, chamada «Buddho», aquele que sabe, aquele que está desperto, o radioso. É o encontro e o habitar com o Buda, com o conhecimento e á claridade. Foi por o Buda histórico de carne e osso ter entrado no Parinirvana, o verdadeiro Buda, o Buda que é conhecimento radioso, que podemos ainda experimentar e atingir hoje e quando o conseguirmos, e o coração é um só.
Assim, esquece tudo, desprende-te de tudo, de tudo, excepto do conhecimento. Não te deixes enganar se na tua mente durante a meditação surgirem sons ou visões. Deixa-os de lado. Não te agarres a nada. Permanece apenas com esta consciência não dual. Não te preocupes com o passado ou com o futuro, permanece apenas calma e atingirás o lugar de onde não há avanço, não há recuo, não há paragem, onde não há nada a que te agarres. Porquê? Porque não há o ser, não há o «eu» ou o «meu». Desapareceu tudo.
O Buda ensinou-nos a esvaziar-nos assim de tudo, a não transportar nada connosco. Conhecendo e tendo conhecido, larga tudo.
Compreender o Dharma, o caminho para a liberdade da roda do nascimento e morte é uma tarefa que todos temos de executar sozinhos. Assim, procura tentar largar as coisas e compreender os ensinamentos. Esforça-te na tua contemplação.

Não te preocupes com a tua família. De momento, eles são como são, no futuro serão como tu. Não há ninguém no mundo que possa escapar a este destino. O Buda disse-nos que quebrássemos com tudo a que falte uma verdadeira substância permanente. Se puseres tudo de lado, verás a verdade, se não, não a verás. É assim que as coisas são e é a mesma coisa para todos neste mundo. Assim, não te preocupes e não te agarres a nada.

Mesmo que dês contigo a pensar, tudo bem, desde que penses sabiamente. Não penses estultamente. Se pensares nos teus filhos, pensa neles com sabedoria, não com estultícia. Seja o que for em que a tua mente se prenda, então pensa e conhece essa coisa com sabedoria, consciente da sua natureza. Se conheceres algo com sabedoria, então solta-te e não experimentarás sofrimento. A mente ficará brilhante, alegre e em paz e ao afastar-se das distracções fica indivisa. Mesmo agora, podes procurar ajuda e o apoio é a tua respiração.

Esta é a tua própria tarefa, de mais ninguém. Deixa os outros fazerem o seu trabalho. Tu tens o teu próprio dever e responsabilidade e não tens de carregar os da tua família. Não carregues nada mais. Abre mão de tudo. Esse abrir mão acalmar-te-á a mente. A tua única responsabilidade neste preciso momento é focar a tua mente e dar-lhe paz. Deixa tudo o resto aos outros. Formas, sons, odores, paladares - deixa isso para os outros. Põe tudo para trás das costas e cumpre a tua própria responsablidade. Seja o que for que surgir na tua mente, seja medo da dor, medo da morte, ansiedade quanto aos outros, seja o que for, diz-lhe: «Não me perturbes. Já não tenho que me preocupar contigo.» Continua a dizer isso para ti mesma quando vires surgir esses dharmas.

A que se refere a palavra dharma? Tudo é um dharma. Não há nada que não seja um dharma. E que dizer do «mundo»? O mundo é o próprio estado mental que te está a agitar neste momento. «Que irá fazer esta pessoa? Que irá fazer aquela pessoa a si mesma?» Assim, seja o que for que te vier à mente, diz: «Não tenho nada a ver contigo. És impermanente, insatisfatório e não-ser.»

Pensar que gostavas de continuar a viver durante muito tempo far-te-á sofrer. Mas pensar que gostarias de morrer mesmo agora ou morrer muito depressa também não está certo, pois é sofrimento, não é? As condições não nos pertencem; elas seguem as suas próprias leis naturais. Nada podes fazer quanto à forma de ser do corpo. Podes petrificá-lo por um pouco, torná-lo atraente e puro durante algum tempo, como as jovens que pintam os lábios e deixam crescer as unhas, mas quando a velhice chega, estão todos no mesmo barco. É assim que o corpo é, não podes fazê-lo de outra forma. Mas o que podes melhorar e embelezar é a mente.

Todos podem construir uma casa de madeira e tijolos, mas o Buda ensinou que esse tipo de lar não é o nossa verdadeira casa, é apenas nominalmente nossa. É um lar no mundo e segue os caminhos do mundo. O nosso verdadeiro lar é a paz interior. Uma casa material exterior pode ser muito bonita, mas não tem muita paz. Há esta preocupação e depois aquela, esta ansiedade e depois aquela. Por isso, dizemos que não é o nosso verdadeiro lar, é-nos exterior, mais tarde ou mais cedo, temos de desistir dele. Não é um lugar em que possamos viver permanentemente porque realmente não nos pertence, faz parte do mundo. Com o nosso corpo é o mesmo, aceitamo-lo como sendo ser, como sendo «eu» e' «meu», mas de facto não é nada disso, é apenas outro lar mundano. O teu corpo seguiu o seu curso natural do nascimento até agora, está velho e doente e não podes impedi-lo de ser o que é, pois as coisas são assim. Querer ser diferente seria tão estulto como querer que um pato seja um frango. Quando vires que isso é impossível, que um pato tem de ser um pato, que um frango tem de ser um frango e que os corpos envelhecem e morrem, encontrarás força e energia. Por muito que queiras que o corpo continue e dure um longo tempo, isso não acontecerá.

o Buda disse:


Anicca vata sankhara

Uppadavayadhammino

Upajjhitva nirujjhanti

Tesam vupasamo sukho.


A palavra sankhara (samskara) refere-se a este corpo e mente. Sankharas são impermanentes e instáveis, chegando a existir, desaparecem. Tendo surgido, desaparecem, e, no entanto, todos querem que sejam permanentes. Isso é estultícia. Olha para a respiração.

Tendo aparecido, desaparecem, essa é a sua natureza, é assim que tem de ser. A inalação e a exalação têm de se alternar, tem de haver mudança. Os sankharas existem através da mudança, não o podes impedir. Pensa: poderias exalar sem inalar? Sentir-te-ias bem? Ou podes só inalar? Queremos que as coisas sejam permanentes, mas elas não o podem ser, é impossível. Assim que o ar da respiração entra, ele tem de sair, quando sair, volta de novo e isso é natural, não é? Nascemos, envelhecemos e adoecemos e depois morremos e isso é totalmente natural e normal. É porque os sankharas fizeram o seu trabalho, é porque a inspiração e a expiração se têm alternado que a raça humana ainda hoje existe.

Assim que nascemos, morremos. O nosso nascimento e a nossa morte são uma só coisa. É como uma árvore: quando existe raiz, tem de haver ramos. Se há ramos, tem de haver raiz. Não podes ter uma sem a outrá. É engraçado ver como na morte as pessoas ficam tão desanimadas e chorosas, temerosas e tristes e no nascimento felizes e contentes. É ilusão; ninguém jamais encarou isto claramente. Penso que se quiseres chorar, então é melhor fazê-lo quando alguém nasce. Porque realmente nascer é morrer, morrer é nascer, a raiz é o ramo, o ramo é a raiz. Se tens de chorar, chora na raiz, chora com o nascimento. Presta atenção: se não houver nascimento, não haverá morte. Consegues compreender isso?

Não penses muito. Pensa apenas: «É assim que as coisas são.» É o teu trabalho, é o teu dever. Neste preciso instante, ninguém te pode ajudar, não há nada que a tua família e os teus bens possam fazer por ti. A única coisa que te pode ajudar agora é uma correcta consciência.

Então, não vaciles. Não te prendas. Lança tudo fora. Mesmo que não queiras abrir mão, tudo está a começar a partir. Não percebes que todas as diferentes partes do teu corpo estão a tentar escapar? O cabelo, por exemplo: quando eras jovem, era espesso e preto; agora, está a cair. Está a ir-se embora. Os teus olhos eram sãos e fortes e agora estão fracos e a tua vista está nublada. Quando os órgãos já trabalharam o suficiente, vão-se embora; este não é o seu lar. Quando eras criança, os teus dentes eram saudáveis e firmes; agora, abanam; talvez até tenhas dentadura postiça. Os teus olhos, ouvidos, nariz, língua - tudo está a tentar partir, porque este não é o seu lar. Não podes fazer uma habitação permanente de um sankhara, podes ficar apenas durante um breve instante e depois tens de partir. como um inquilino a vigiar a sua casa com olhos enfraquecidos. Os seus dentes já não são bons, os seus ouvidos já não são bons, o seu corpo já não é tão saudável, tudo está a partir.

Então, não precisas de te preocupar com nada, porque esta não é a tua verdadeira casa, é apenas um abrigo temporário. Ao entrares neste mundo, deves contemplar a sua natureza. Tudo quanto nele existe, está a preparar-se para desaparecer. Olha para o teu corpo. Tens nele algo que ainda conserve a sua forma original? A tua pele é como costumava ser? Para onde foram essas coisas? É essa a sua natureza, é assim que as coisas são. Quando o seu tempo chegar ao fim, as condições seguem o seu caminho. Não podemos confiar neste mundo - é uma roda infindável de perturbação e dificuldade, prazer e dor. Não há paz.

Quando não temos um lar verdadeiro, somos como o viajante sem rumo a caminhar pela estrada, seguindo o seu caminho umas vezes por aqui, outras por ali, parando de vez em quando e recomeçando depois. Até regressarmos ao nosso lar verdadeiro, não nos sentimos à vontade, façamos o que fizermos, tal como alguém que deixa a sua aldeia e parte em viagem. Só quando ele chega a casa pode realmente descansar e repousar.

Em lado nenhum neste mundo encontramos verdadeira paz.

O pobre não tem paz e o rico também não. Os adultos não têm paz, as crianças não têm paz, os incultos não têm paz, nem tão pouco os muito cultos. Não há paz em lado nenhum. Essa é a natureza do mundo.

Os que têm poucas posses sofrem e o mesmo sucede aos ricos. Crianças, adultos, idosos, todos sofrem. O sofrimento de se ser velho, o sofrimento de se ser jovem, o sofrimento de se ser rico, o sofrimento de se ser pobre - tudo não passa de sofrimento.

Quando contemplares as coisas a esta luz, verás anitya, impermanência e duhkha, insatisfação. Por que razão estas coisa são impermanentes e insatisfatórias? Porque elas são anatman, não-ser.

Tanto o teu corpo deitado aqui doente e cheio dores como a mente que está consciente da sua doença e dor, chamam-se dharmas.

Aquilo que é informe, os pensamentos, sentimentos e percepções chamam-se namadharma. O que está atacado de achaques e dores chama-se rupadharma. O material é dharma e o imaterial é dharma. Assim, vivemos com dharma, em dharma e somos dharma. Na verdade, não encontramos o ser em lado algum, só há dharmas continuamente a aparecerem e a desaparecerem, pois essa é a sua natureza. Em cada simples momento passamos por nascimento e morte. Essa é a natureza das coisas.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

VENDO AS COISAS COMO ELAS SÃO

 

NYANAPONlKA THERA (Thera significa «Ancião») nasceu em 1901 na Alemanha, filho de pais judeus. Tornou-se budista aos vinte anos e em 1936 mudou-se para o Ceilão, onde se tornou monge. Tem permanecido desde então principalmente no Ceilão e fundou a Sociedade Budista de Publicações em Kandy, que desempenhou um papel relevante no reavivamento do Theravada ocorrido no século xx.
Nesta selecção, Nyanaponika Thera ajuda-nos a captar o significado e o ensino de Buda sobre as três marcas da existência: impermanência, sofrimento e não-ser. Particularmente, clarifica como, do ponto de vista da experiência, o sofrimento pode ser uma característica geral da existência, embora pareça ser apenas uma qualidade psicológica subjectiva. O não-ser, também, como ausência de essência pessoal, pode aplicar-se tanto a fenómenos como a pessoas, pois as coisas do mundo são também vazias de essência. Assim, o mundo criado pela análise dualista que separa o eu do outro manifesta-se como um fantasma mutável. Os que se relacionam com ele como sendo sólido e real estão condenados à frustração descrita na Primeira Nobre Verdade.
Se contemplarmos um sector mínimo que seja da vida, somos confrontados com uma variedade de formas vivas tão tremendas que desafiam todas as descrições. No entanto, podemos distinguir três características básicas comuns a tudo quanto tenha existência animada, desde o micróbio ao homem, das sensações mais simples aos pensamentos de um génio criativo:

impermanência OU mudança (anitya)
sofrimento ou insatisfação (duhkha)
não-ser ou insubstancialidade (anatman)

Estes três factos básicos foram primeiro descobertos e formulados há mais de 2500 anos pelo Buda que correctamente foi designado «o Conhecedor do Mundo». Na terminologia budista, são chamadas as três características - as marcas ou sinais invariáveis de tudo quanto entra no ser, os «signata» estampados no rosto da própria vida.
Dos três, o primeiro e o terceiro aplicam-se directamente tanto à existência inanimada como à animada, pois cada entidade concreta, pela sua própria natureza, passa pela mudança e é desprovida de substância. A segunda característica, o sofrimento, é, naturalmente, apenas uma experiência da vida animada. Mas o Buda aplica as características do sofrimento a todas as coisas condicionadas, no sentido em que, para os seres vivos, tudo que é condicionado é uma causa potencial do sofrimento experimentado e é em todo o caso incapaz de dar satisfação duradoura. Assim, as três são verdadeiramente marcas universais, características daquilo que está abaixo ou além do nosso nível normal de percepção.
O Buda ensina que a vida só pode ser entendida correctamente se estes três factos básicos forem entendidos. E esta compreensão deve ocorrer não apenas logicamente mas em confronto com a experiência pessoal. A sabedoria intuitiva, que no Budismo é o factor libertador final, consiste nesta compreensão experimental das três características aplicadas aos processos mentais e físicos da própria pessoa e aprofundadas e amadurecidas em meditação.

Ver as coisas como elas realmente são, significa vê-las consistentemente à luz das três características atrás citadas. Não vê-las desta maneira ou enganar-nos quanto à sua realidade e variação de aplicação, é marca definitória de ignorância e a ignorância por si mesma é uma causa potente de sofrimento, preparando a rede em que o homem é apanhado - a rede das falsas esperanças, dos desejos irrealistas e nocivos, de ideologias enganadoras de valores e alvos pervertidos.
Em última análise, ignorar ou distorcer os três factos básicos conduz apenas à frustração, ao desapontamento e ao desespero.

Mas se aprendermos a ver através das aparências enganadoras e discernirmos as três características, isso trará imensos benefícios, tanto à nossa vida diária como à nossa luta espiritual. Ao nível mundano, a compreensão clara da impermanência, do sofrimento e do não-ser fornece uma perspectiva mais sã da vida. Livra-nos de expectativas irrealistas e leva-nos a uma aceitação corajosa do sofrimento e do fracasso, protegendo-nos contra o engano de assunções e crenças erradas. Na nossa busca do supramundano, a compreensão das três características será indispensável. A experiência meditativa de todos os fenómenos, inseparável das três marcas fará perder e finalmente cortará os laços que nos ligam a uma existência falsamente imaginada a ser duradoura, prazenteira e substantiva. Com crescente clareza, todas as coisas, internas e externas, serão vistas segundo a sua verdadeira natureza: como constantemente mutáveis, como presas ao sofrimento e como insubstanciais, sem uma alma eterna ou essência permanente. Vendo as coisas assim, o desprendimento crescerá, trazendo maior liberdade da posse egoísta e culminando no nirvana, a libertação mental final do sofrimento.

TERCEIRO E ÚLTIMO TEXTO

O NOSSO VERDADEIRO LAR




terça-feira, 5 de janeiro de 2021

JOÃO CUTILEIRO • MEMÓRIAS DE PEDRA


 Acordei hoje a saber que o João Cutileiro morreu. Assim mesmo, cruamente. 
Morrer é desaparecer fisicamente. É não aparecer mais...

Não tivesse eu ido para o Museu Luís de Camões, e seguramente muitos dos grandes artistas portugueses me teriam passado ao lado. Mercê da Amizade criada com Arlete e Manuel de Brito, com Pedro Tamen, administrador da Gulbenkian, e o Arq. José Sommer Ribeiro, director do Centro de Arte Moderna, posso dizer que conheci os maiores artistas portugueses da segunda metade do século XX.


Corria o ano de 1988, governava Carlos Melancia, aquele que foi, sem dúvida, um dos mais cultos governadores de Macau, quando o Museu Luís de Camões, que então eu dirigia, organizava uma exposição de João Cutileiro, comissariada pelo Arq. José Sommer Ribeiro. 

O governador pediu que o avisasse quando as peças do Cutileiro chegassem ao Museu, tal era o seu interesse. 


À chegada, João Cutileiro, por detrás dos óculos redondos, olhava com ar penetrante para nós, procurando pontos fracos. Ao saber que minha Mulher era do Porto, fez-lhe uma provocação tão ao seu gosto mas que mereceu resposta à altura. Passados no seu exame, passámos, disse, “a ser dos meus”. Demos então início ao trabalho de montagem da exposição na que era a galeria mais importante de Macau, a Galeria do Leal Senado que eu dirigia (Câmara Municipal).


capa do catálogo de Macau de João Cutileiro


Carlos Melancia não se fez rogado e comprou algumas peças, e eu comprei uma menina. Mais gente terá comprado, nessa oportunidade única, embora nem todas as comunidades achassem graça às peças acabadas à máquina e à nudez feminina, coisa muito pouco habitual na China.

Eis aqui a transcrição do Prefácio do catálogo que escrevi na altura:


Esculpir é apenas remover a pedra que está a mais

 Michelangelo Buonarroti


“O século XX, herdeiro das contestações dos primeiros movimentos anti-académicos, vai-se desenrolando num crescendo de liberdade criativa e da consequente tolerância às libertinagens e transgressões do espírito.

É nesse contexto que vejo a obra de João Cutileiro. Irrequieta, irreverente, pujante, multi-facetada,

João Cutileiro transgride as “boas normas” da escultura, recusando-se a ser, ao mesmo tempo, escultor e canteiro, não fossem as “boas normas” a regra a transgredir para, conscientemente, se poder afirmar como escultor.

Cutileiro é um pioneiro na introdução da máquina no altar sacro da escultura, renovando com isso o próprio acto de esculpir, conferindo-lhe as características próprias das tecnologias do nosso século, e os seus naturais e consequentes merecimentos. Porque o processo criativo de um autor como João Cutileiro, e os seus inúmeros temas, se não compadece com a morosidade da cantaria, antes requerem um quase-imediatismo que ele sabiamente soube construir para si.

Este rompimento com o tradicional, torna João Cutileiro num inovador, como inovadoras são as suas obras, de um figurativismo personalizado, ora carregadas de uma ancestral sensualidade, ora de uma carga histórica fortíssimas, mas sempre eivadas de um cunho pessoal diferenciado.

Depois, a personalidade simultaneamente afectiva, atenta e irreverente de João Cutileiro, fazem dele um ponto polémico de convergência dos afectos. Amem-no ou detestem-no. Tal como à sua obra, que nunca é indiferente...”


Encimando uma cabeça de gesso da Revolução Cultural e uma dama Song (960 - 1279) 
a preciosidade de uma pesadíssima menina de Cutileiro.

Já não me recordo se antes ou posteriormente, o Centro Hospitalar Conde de S. Januário, encomendou a Cutileiro uma peça para a entrada. O escultor teve o cuidado de olhar para a medicina chinesa e perceber que quando uma senhora na velha China imperial queria apontar uma maleita, não indicava directamente no corpo. Antes usava uma boneca deitada para indicar a parte do corpo desconfortável. 


boneca em madeira usada em diagnóstico


A peça cujo tema estava ligado à medicina chinesa, foi colocada no átrio. Porém, depois, deixou de estar...


Mais tarde, sendo minha Mulher directora-adjunta e posteriormente da Comissão Instaladora do Centro Cultural de Macau, Cutileiro iria ainda enriquecer o conjunto com um enorme conjunto escultórico composto por um navio lançando jactos de água sobre cavaleiros que contra ele cavalgam eternizando o confronto com salpicos de água a refrescar a peleja.


instalação do grupo escultórico de João Cutileiro - os cavalos frente ao barco de pedra

o navio de pedra

O perpétuo confronto


Assim tem Macau um belo legado da obra do Mestre Português da Pedra. Só buscando conhecer bem a obra do Mestre que um dia nos recebeu em Évora, se poderá perceber como a beleza da pedra se eterniza. 

Quem disse que a pedra não vive?