quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

TEMPO E MEMÓRIA

O CASARÃO À DIREITA

A passagem do Tempo incorpora em nós passado e memórias.
E no segundo que medeia entre o velho e o novo, acorre-me um outro tempo, neste mesmo lugar. Macau, a Calçada do Tronco Velho e um vetusto edifício que se foi nos vendavais gerados por gente que hoje nem memória são. À esquerda de quem sobe, o passante que olhasse para as primeiras janelas do rés-do-chão veria homens debruçados, manipulando pedaços de chumbo, e sentiria um forte cheiro a tinta. Aquele casarão era misterioso.
Bocas maledicentes segredavam rumores de que ali mandava um perigoso comunista, o republicano “Monteiro das barbas”, que para aqui se degredara para estar próximo dos camaradas do outro lado das Portas do Cerco.
Ali dentro trabalhava-se até muito tarde. Funcionava aí o "Notícias de Macau" que Hermman Machado Monteiro havia fundado em 1947, sucedendo ao "A Voz de Macau", do Capitão Domingos Gregório da Rosa Duque. 
Os tipógrafos viam-se da rua, compondo, letra a letra e com rapidez, colunas que se iriam encaixar umas nas outras de um modo tão anacrónico quanto, aos olhos de hoje, é a máquina de imprimir. 
Junto às janelas dos tipógrafos, comandados pelo senhor Jacob, que naquele tempo era assim que se tratavam os mais velhos, situava-se a porta de entrada. Esta dava para um largo átrio, em tijoleira vermelha, de luz coada, sábia medida para manter a frescura dos dias ardentes. Uma escada em L, que chiava, dava acesso ao andar superior onde havia dois caminhos a tomar. À direita, a zona da administração onde trabalhavam duas simpáticas senhoras. Um pouco mais à frente vislumbrava-se uma papaieira que anunciava o grande jardim, que confinava com a igreja de Sto. Agostinho. À esquerda, percorrendo uns escassos metros e abrindo uma porta de vaivém, chegava-se à sala da redacção com inúmeras mesas frente a frente, munidas de máquinas de escrever. Numa dessas mesas, Patrício Guterres matraqueava impiedosamente a sua Remington que um dia descobri já não ter letras nas teclas.
No gabinete que dava para a redacção, trabalhava Luis Gonzaga Gomes, vizinho de casa e a quem todos chamavam de "Inho" Gomes. De poucas falas e que, para minha surpresa, conseguia andar sem barulho, deslizando pelo sobrado antigo. Tão metido consigo, era quase uma sombra. Só mais tarde vim a ler os seus livros, com dedicatória aos meus pais, que publicou nas oficinas do jornal. 
Chegavam aos poucos os senhores Anízio, Raul da Rosa Duque, José dos Santos Ferreira, meu tio Adelino da Conceição, Mário de Abreu e o Major Cabreira Henriques, que se detinha em longas conversas com meu Pai.
A sala da redacção ia ganhando vida à medida que as horas passavam e o senhor Jacob entregava linguados para serem corrigidos, que aquilo era obra para muitas horas.
O meu fascínio ia sobretudo para Hermman Machado Monteiro e o seu charuto. Falava pouco, como que pairava por lá, alentando com a sua presença toda aquela plêiade de gente.
Recordo que no Fim de Ano, naquela casa de sobrado que rangia, havia sempre uma ceia aberta a todos e brindes com Vinho do Porto. 
Sabia que Hermman Machado Monteiro vivia no Hotel Riviera. Visitei uma vez, com meu pai, o seu quarto, enorme, com varanda para a Praia Grande. 
Tinha dois poisos preferidos, onde gostava de reunir os seus colaboradores.
O restaurante do próprio Hotel Riviera, onde se reuniam em ampla e culta cavaqueira aqueles que seriam a Tertúlia do Notícias de Macau. 
No Fat Siu Lao, onde ia com tanta frequência que ficou na ementa o "Bife à Monteiro", fazia questão de reunir todo o pessoal que trabalhava no jornal, desde redactores, revisores, director e tipógrafos.

Nunca me perguntei se o jornal era viável. Acredito que não. Como não o era o Círculo de Cultura Musical que Luís Gonzaga Gomes dirigia. Mas outros elevados valores se levantavam. 
O Dr. Pedro José Lobo, verdadeiro Mecenas no panorama cultural de então e figura a requerer estudo biográfico, era também assíduo nestas tertúlias. Era um amante da música e, além de compositor, podia dar-se ao luxo de ter uma rádio, a Rádio Vila-Verde, em chinês, na sua mansão, e a Rádio Vila-Verde em Português, na rua Francisco Xavier Pereira. 
Meu pai, António Maria da Conceição, foi o último director do "Notícias de Macau". Viu, ironicamente, fecharem-se as portas com a liberdade de Abril. Uma estranha comissão ad hoc desferiu o golpe final a um jornal que tinha por tradição juntar todos sem distinção. Meu pai escreveu o último editorial, à guisa de saudação final, que intitulou "Morituri te salutant". Malhas que o Império tece... 
Antes, a marcar o Tempo, penduravam-se calendários nas paredes. Hoje, perdura a Memória, essa intangibilidade desconhecida por tantos. Os anos sucedem-se e, no bolor do tempo, pouco permanece. 
Que tenham um Bom Ano. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O ENCONTRO


Anoiteceu cedo, como é habitual nesta altura do ano, embora aqui o calor retire ao bafo da vaca do presépio o conjunto de clichés que nos foram impondo. Estava fora, e isso também fazia alguma diferença nos hábitos.
A entrada do hotel patenteava uma árvore natalícia gigante. Um piano ecoava pelo enorme átrio onde se cruzava uma multidão díspar que, tal como eu, aproveitava a época para sair do repetitivo quotidiano.
Lá fora, onde de dia se nadava, acendiam-se velas que bruxuleavam no escuro, expressando os festivos desejos habituais.
Senti-me algo perdido naquela multidão enquanto esperava que nos agrupássemos para o jantar. Mas uma como que frequência chegou-me aos ouvidos na forma de um sinal quase insonoro,  que se afirmava pelas vibrações que sobre mim exercia, como que uma membrana de uma coluna de som a vibrar. O fenómeno transbordou, percorreu-me a mente, os membros, o corpo. Subitamente, observei o que me rodeava de um outro modo, como se não fizesse parte daquele cenário.
Vislumbrei então, vindo na minha direcção, um homem estranho, que se movia deslizando, sem se lhe ver os pés. Tinha uma tez de cera, vestia uma sobrecasaca preta, gola de veludo, um colete escuro. O mais insólito era o cabelo frisado, já ralo, e uma barba longa, encimada por um bigode farto e branco, todo ele saído da era Vitoriana. Olhava-me fixamente à medida que se aproximava, atravessando as pessoas sem que elas dessem conta dessa extraordinária visão. 
Não falámos. O extraordinário é que comunicou de uma forma que eu  ouvia sem que houvesse som. “I bid you good evening, my dear gentleman” disse-me, e cada palavra como que vibrava dentro da minha cabeça. “Good evening” respondi-lhe estupefacto, porque apenas pensara as palavras. Comunicávamos pelo pensamento, algo, para mim, deveras surpreendente.
“I have been around for quite a while but these days I find all this a little too odd to my liking” retorquiu. “Anyway, my dear sir, my name is Charles. You may call me Charles given these informal days you live in”. O ar era sisudo, as pálpebras descaíam sobre um olhar pesado, talvez mesmo cansado. 
Aquele rosto era-me familiar, mas não com tanta idade. Arrisquei: “I presume, if my memory does not betray me, that you are Mr. Dickens, Mr. Charles Dickens”.  O meu interlocutor fitou-me com um semblante algo triste. “In fact I created Ebenezer Scrooge, and since then all they know about me is the Christmas Carol. Well, I guess one cannot escape one’s destiny”. Tossiu, pigarreou, olhou para mim e disse: “Não sei porque estou a falar inglês quando posso falar qualquer língua”.
“Mas venha”. Agarrando o meu antebraço, começámos a elevar-nos por sobre as pessoas no átrio, dirigimo-nos para a enorme parede de vidro que atravessámos sem custo, olhei a piscina iluminada de velinhas flutuantes. Não senti medo. Acostumara-me à vibração que me percorria, como uma corrente de energia cuja origem era insondável. Ascendíamos sem parar, lentamente, numa trajectória oblíqua. Estávamos sobre o mar. Olhei para cima, mas fui interrompido: “Neste plano, ascender ou descender não tem significado. Não existe o acima nem o abaixo, o atrás ou o à frente, a esquerda ou a direita. Quando habitamos o humano, a nossa compreensão tem limites impostos pelo mundo em que crescemos e vivemos. A matéria ilude-nos e formata-nos. Escrevi sobre Ebenezer Scrooge e a sua avareza, que era material, e o seu arrependimento”.  Olhei-o, enquanto continuávamos a subir. “Então quer dizer que neste momento estou materialmente tão... emaciado quanto o senhor?”. Sorriu-me, cofiou a barba e disse-me: “A morte material é uma realidade humana incontornável, mas tão natural como o nascimento. É a passagem pelo mundo plano e primário da matéria. 
Apontou-me para o gigantesco globo que tínhamos à nossa frente, a lua, que nunca tinha visto assim, enorme.  
Daí já podia contemplar um pouco mais do Universo. Não muito mais. Lendo o meu pensamento, pegou-me no pulso e deslocámo-nos a uma velocidade inimaginável. Abrandámos e, de súbito, estacámos no vácuo. Um panorama deslumbrante abria-se perante os meus olhos de mortal. Enormes galáxias em forma de nuvem, estrelas poderosas emitindo explosões de si próprias, planetas gigantes, outros menores, chuvas de meteoritos passavam perante o meu extasiado olhar.
“Veja, estamos num ponto do Universo em expansão. Aqui não existe nem bem nem mal, nem aqui nem em lado nenhum. Não há agendas nem desejos. A matéria é uma consequência, não um fim. Apenas os espíritos muito primários alimentam guerras e usufruem delas, falam de paz e lucram com ela, arrancam confissões, combatem por deuses diferentes ou por matérias que destroem o seu próprio habitat. Oprimem e orgulham-se disso. Agarram-se ao poder com ambas as mãos. Matam, matando-se. Criam o inferno, o verdadeiro inferno”
Olhou-me com o seu olhar entristecido, de pálpebras descaídas. “A matéria é energia acumulada. E isso é o que ilude no plano terrestre. Há outros planos de consciência, mas geralmente só se ascende a eles quando o espírito se liberta da matéria”.
“Aqui onde estamos,  percorre uma energia extraordinária que se chama Amor. Mas esta é de tal ordem que não é perceptível à maioria dos que dele falam. É demasiado poderosa para ser compreendida por seres incipientes”.
E, sem mais, em um tempo que não é tempo, estávamos de volta ao átrio do hotel. Talvez não tivesse passado um segundo. Mas o que é o tempo? Fui cear com muitas interrogações e um olhar desconfiado para tudo o que o Natal representa  de consumismo. Mas não deixei de, bem comportadamente, manifestar os meus votos de paz e amor. 

sábado, 12 de dezembro de 2015

VIRGINIA OR


I met her some years ago and there was a warm smile from Virginia.
Oddly enough, Macau sometimes seems to be big, as we didn't meet too often, but empathy can draw people together.
Virginia always made me curious of her. She is a Macau native, but many of  her friends were not. I observed curiously her openness. Later I learnt that she graduated in Philosophy from Seattle University and returned to Macau 15 years ago. She worked at the Macau Cultural Institute. She then left .... years ago and chose Lisbon to live, in the typical Alfama quarters, from where she freelances in events and performance.
I am very curious, in the positive sense, about some people. People that touch me. I wonder what drives them to make some choices, what attracts them, and so forth. It is all about human beings.

ACJ: Virginia, having been born in Macau what drove you to such a distant place like Seattle, and why philosophy? Was Macau not giving you fulfillment for your aspirations?
After I graduated from secondary school in Macau, like the majority of my classmates, we looked to continue our college education somewhere else other than Macau, while universities in the next door Hong Kong at the time were difficult to get admitted to.  We applied to more than one place, and a community college in Seattle accepted my application, and after two quarters of studies in improving English, Seattle University accepted me.   The education system was pretty relax in the U.S. and we got to change majors many times.   Influenced by some freshly grad professors at the time, who truly loved and enthusiastic in teaching philosophy, I kept taking more and more classes and at the end it became my major.   At that time and age, coming from a small and somewhat closed society like Macau, before the popularity of internet, we were trying to understand many things by thought and by physically going to places: the environment, social issues, racial relations, our time, how we thought and have been thinking about things…   In that sense, perhaps yes, Macau did not have the psychologic space to offer us the opportunity to broaden our horizon in thought to crystallize our aspirations.
ACJ: I have noticed that many of your relations in Macau encompassed non-Chinese friends and now, I suppose that all in Portugal are none Chinese. What drove you to cross the bridge to a "different culture and environment?"
The bridge is "crossed" or "getting crossed" the minute we stepped out of our home environment and our comfort zone and stepped into the openness of trying to understand the others.   From knowing people of difference places, they bring the world to us, or nearer to us.   There is still much to be learnt.
ACJ: The curiosity is mine. Is there a difference between Chinese young people and your non Chinese friends? Would you identify the differences?
I guess the difference is not so much the culture or race as the social upbringing and cultural awareness.   I find the same kind of young people in all societies and cultures that I have experienced, who are not so open to people from different environments and cultures, and who are more interested in the mainstream such as their own security, social status and good jobs, which is a choice… but I also find others who are open to diversity and changes, for themselves and also for the others.   Yet, I do think that people, young and old, without travel and experience cultures and environments other than their own, would be more difficult to be open to the differences.
ACJ: In your view, what really differentiates the Chinese philosophers from their Western counterparts? What are the main cultural differences in your opinion.
My university only offered Western Philosophy studies and that was the sole genealogy of thought I learnt.   But because by cultural upbringing and ethnicity, I am Chinese, i found intuitively some premises in forms of analysis, points of departure to begin the works, did not apply to our eastern psyche, or perhaps to ways of thinking that are close to and inclined towards eastern thoughts.  In this sense, it's more difficult to merge the two.
ACJ: What made you chose Lisbon of so many countries in Europe? And then Alfama... I am really curious.
Because I was born in Macau before the handover, so naturally I am Portuguese by birth.   And Lisbon feels like home because the way the old city is laid out, some buildings, the calçada (cobbled stone) streets, the mellow inclusiveness, warmth and sense of humor of the people, and the diversity nowadays adds to the flavor of the place.  Nostalgia for the old attracted many included myself to the old neighborhoods of Lisbon, such as Alfama, Mouraria or Graça… among others.   For me, simply, I just feel more safe living with old things rather than new.

VIRGINIA DE OIRO


Conheci Virgínia Or há alguns anos e sempre encontrei um genuíno e caloroso sorriso.
Estranhamente, ou talvez não, Macau parece ser grande, porque raramente nos encontrávamos, mas a empatia pode juntar as pessoas.
Virgínia sempre me suscitou curiosidade. Sou curioso acerca de pessoas que me tocam. Virgínia é natural de Macau, mas muitos dos seus amigos não são. Observei, com atenção, a naturalidade da sua abertura ao outro. Soube que se havia licenciado em filosofia pela Universidade de Seattle e regressado a Macau há 15 anos. Trabalhou no Instituto Cultural. Depois, saiu mais uma vez e escolheu Lisboa para viver, na típica Alfama, onde trabalha como freelancer em eventos e performances. A minha curiosidade sobre pessoas leva-me a inquirir o que as leva a fazer algumas escolhas, o que é que as atrai.

ACJ: Virginia, tendo nascido em Macau, o que a levou a um lugar tão distante como Seattle, e porquê filosofia? Macau não preenchia as suas aspirações?
V.O.: Depois de terminar a escola secundária em Macau, e à semelhança dos meus colegas, procurámos continuar a nossa educação universitária noutro lugar. As universidades de Hong Kong, à época, eram de difícil acesso. Tentámos em vários lugares e, no meu caso, um colégio da comunidade em Seattle aceitou o meu pedido. E assim, após dois trimestres de estudos na melhoria do inglês, fui admitida na Universidade de Seattle. O sistema de ensino era bastante livre nos Estados Unidos e nós temos de mudar de curso várias vezes. Influenciada por alguns professores recém-graduados nessa altura, que verdadeiramente gostavam e eram entusiastas do ensino da filosofia, continuei a ir a mais e mais aulas e no final concluí o curso de filosofia. Nesse tempo e idade, vinda de uma pequena sociedade um tanto fechada como Macau, antes da popularidade da internet, nós tentávamos compreender muitas coisas pelo pensamento e pela ida física aos lugares: o ambiente, as questões sociais, as relações raciais, o nosso tempo, como nós pensávamos sobre as coisas... Nesse sentido, talvez sim, Macau não tinha o espaço psicológico para nos oferecer a oportunidade de ampliar os nossos horizontes de pensamento, antes propício a cristalizar as nossas aspirações.
ACJ: Reparei que muitas das suas relações em Macau envolviam amigos não-chineses e agora, suponho, em Portugal, também. O que a levou a atravessar a ponte para uma cultura e ambiente diferentes?
V.O.: A ponte é "atravessada" ou "está a ser atravessada" a partir do momento que saímos fora do nosso ambiente de casa e da nossa zona de conforto e entramos no espaço de tentar compreender os outros. Ao conhecer pessoas de diferentes lugares, elas como que trazem o mundo até nós, para mais perto de nós. Ainda há muito a aprender.
ACJ: A curiosidade é minha. Existe alguma diferença entre jovens chineses e não chineses entre os seus amigos?
V.O.: Acho que a diferença não é tanto a cultura ou raça, mas a educação social e a consciência cultural. Encontro o mesmo tipo de jovens em todas as sociedades e culturas que conheci, que não são muito abertos a pessoas de diferentes ambientes e culturas, e que estão mais interessados ​​no mainstream, como a sua própria segurança, status social e bons empregos, o que é uma escolha... mas também encontro outros que estão abertas à diversidade e às mudanças, para si e também para os outros. Por isso, acho que as pessoas, jovens e velhos, sem viajar e conhecer culturas, outras que não a sua própria, têm mais dificuldade em estarem abertos à diferença.
ACJ: Na sua perspectiva, o que é que diferencia os filósofos chineses dos seus colegas ocidentais e quais as principais diferenças culturais?
V.O.: A minha universidade só oferecia estudos de filosofia ocidental, a única genealogia do pensamento que aprendi. Mas porque, por educação cultural e etnia, sou chinesa, descobri intuitivamente que algumas premissas na forma de análise, pontos de partida para iniciar os trabalhos, não se aplicavam à nossa mente oriental, ou talvez para formas  de pensar que se aproximam e inclinam no sentido do pensamento oriental. Nesse sentido, é mais difícil de fundir os dois.
ACJ: O que a fez escolher Lisboa, entre tantas cidades na Europa? E depois Alfama... estou verdadeiramente curioso.
V.O.:Porque nasci em Macau antes da transferência de soberania, então, naturalmente, sou Portuguesa de nascimento. Lisboa faz-me sentir em casa. A forma como a cidade velha se estende para fora, alguns edifícios, as ruas em calçada, a suave inclusão, o calor e sentido de humor das pessoas, bem como, hoje em dia, a diversidade, são acrescentos ao sabor do lugar. A nostalgia atraiu muitos, eu incluída, para os bairros antigos de Lisboa, como Alfama, Mouraria ou Graça, entre outros. Sinto-me, simplesmente, mais segura entre as coisas antigas do que entre as mais novas.

domingo, 6 de dezembro de 2015

A CIDADE CULTA

CHARLES LANDRY

Planeando criatividade, cultura e cidades, muitas vezes leva a visões limitadas e sensacionalistas, em que os criativos culturais são vistos principalmente de um ponto de vista económico. Isto é uma pena, diz Charles Landry, para a cultura é muito mais do que o valor económico ou o aumento das indústrias criativas. Landry apela para que uma cidade a use a criatividade de muitos "para se tornar a melhor e mais imaginativa cidade para o mundo - e não a cidade mais criativa do mundo".
Roy van Dalm

A cultura não é uma transcendência, muito menos uma utopia. A cultura é a estrutura que define o ser, que lhe dá maior abertura, maior capacidade de visão, educação e, com isso, abrem-se as portas às imensas possibilidades e opções que se deparam através do acto de pensar.
Charles Landry, britânico, autor de "A Cidade Criativa", publicada no ano 2000, constitui um manual para planificadores urbanos. Landry vê a necessidade de um pensamento novo e culto e o subsequente recurso à criatividade de muitos para resolver questões importantes da cidade. Não é uma história económica, portanto, mas antes uma chamada para uma visão cultural mais ampla.
Sucede que uma das verdades menos consideradas é que ignorância é não se saber que não se sabe, tanto quanto o grosseiro não sabe que é mal-educado. Sendo verdades de La Pallisse não constituem evidências suficientemente assertivas para se constituirem em metáforas do que há a combater.
Charles Landry, como tantos outros, passará por Macau, para um painel integrado no "This is my City", a ter lugar no Centro de Design de Macau.
Diria que é um dos palcos possíveis, mas gostaria, enquanto cidadão de Macau, que Charles Landry e todo o painel, também falassem para toda a cidade, via televisão. Gostava que houvesse em Macau um Centro do Pensamento Contemporâneo, que precede e alimenta a criatividade, rasgando-lhe horizontes em permanente diálogo.
A cidadania não é um B.I.R. nem uma burocracia que define o permanente e o temporário. A cidadania é, também, a chamada dos mais habilitados, independentemente da proveniência, raça ou credo, para integrarem a cidade desejada, ainda por acontecer.
Carles Landry passará por Macau. Quanto do seu saber será aproveitado?
Já por mais de uma vez tive oportunidade de escrever que uma cidade é um organismo vivo, orgânico, um lugar consequentemente holístico, onde uma acção se repercute em todo o tecido urbano e humano.
Macau tem todas as possibilidades, ainda, de se converter numa cidade criativa, se houver visão e vontade política.
Não existe, infelizmente, na desumanização da cidade, uma teia de afectos que até Confúcio prescrevia. Existe apenas o egoísmo da sobrevivência, o todo excessivo, seja na construção, seja no trânsito, ou nas ruas tornadas metáforas do caos.
O contexto singular de Macau, característica antiga que situa ainda hoje a cidade ao nível da excepção e não da regra, radica fundamentalmente o seu estatuto numa relação de conveniência pragmática, compromisso que permitiu a consolidação da sua essência conjugadora entre dois mundos.
A nova realidade de Macau é um processo ainda por concretizar na definição política que lhe foi conferida, de centro mundial de turismo e lazer. Só o poderá ser verdadeiramente se a amálgama de todos os problemas urbanos forem resolvidos, se existir uma matriz estruturada para acolher este desígnio.
Perante esta indesmentível constatação, importa extrapolar um conceito que há mais de duas décadas venho defendendo, tendo em conta que uma parte da população de Macau é transitória:
o da consolidação de um polo referenciador e aglutinador das diversas comunidades em presença e que tenha como referência a percepção da Cidade, a relação supra-linguística, a recíproca interpretação cultural, num processo de plena abertura para com o Outro, tanto naquilo que o assemelha como naquilo que o distingue.
É na teia de relações e afectos ainda improváveis, que a Cidadania – enquanto também identidade – se pode consolidar na sua plenitude, permitindo então a aplicação plena da abordagem cultural na Cidade Criativa.
A questão da cidadania sempre me foi particularmente cara pelo que comporta de implícito compromisso, e também porque Macau, integrado no segundo sistema, tão inteligentemente concebido por Deng Xiao Ping, constitui parte integrante. Vislumbro aqui a formulação do segundo sistema como um acto de política eminentemente criativa, inicialmente destinado, como se sabe, a operar a progressiva transformação do interior da China pelo efeito de capilaridade de que a criação de zonas económicas especiais e de regiões administrativas especiais, todas situadas na orla marítima, são instrumentos fundamentais.
Porém, cidades como Shenzhen, nascidas do nada, já desempenham importantes papéis no que toca à estruturação urbana, cívica e de experimentação que urge observar e reflectir.
Se o figurino urbano de Macau mudou radicalmente desde a sua criação, a sua essência de cidade-estado mantém-se subjacente e inalterada, independentemente do seu estatuto político. E é neste figurino que se joga o êxito ou insucesso não apenas da organização da cidade, mas da interpretação e cumprimento do desígnio que Pequim outorgou à R.A.E.M. Ou seja, ou a cidade se torna globalmente culta ou os designios não se concretizam, porque a cultura é o pressuposto fundamental. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

ATURDIMENTO E VAZIO


Passado o tempo de choque causado pelos ataques a Paris, eis que a cidade das luzes é palco da Cimeira do Clima, neste mês de Dezembro.
Por aqui também faria jeito uma cimeira sobre cidades e cidadania, sobretudo quando Charles Landry está prestes a chegar a Macau. Não se deveria deixar passar a oportunidade da visita deste especialista em cidades criativas.
Este último mês do ano surge agora também ameaçador para quem tinha passes mensais de parques de estacionamento, agora descobertos como ilegais pelas entidades competentes. O efeito foi de total aturdimento. Os ouvidos a zunir e, em redor, o caos junto à incredulidade.
Cidadãos foram despejados de um parque de estacionamento que emitiu passes mensais posteriormente a 2009, o que para mim constitui uma estupefacção, porquanto não entendo nem consegui encontrar a razão da discriminação de datas e parques de estacionamento, a razão de o terem feito, porque só agora foram descobertos. Há um ditado que diz "ou há moralidade...".
Há nisto tudo uma impreparação clamorosa, um improviso total, porquanto em 2009 já devia ter soado o alarme quanto ao número de veículos em Macau.
Foram precisos mais oito anos para que se tomasse a iniciativa de desalojar os portadores dos ditos passes sem que se conheçam quaisquer medidas para estancar o dilúvio de automóveis que continua a inundar a R.A.E.M., além da extrema poluição, consequência mais do que natural.
Parece que a tudo isto preside uma lógica que, ou é a da batata ou a do inhame, conforme gostos e paladares, porquanto, para além de retirar benefícios aos cidadãos em nome de uma eventual "moralidade" que apenas existe na cabeça de algumas sumidades científicas propensas a sorteios e afins, redundou no aumento do custo do estacionamento para MOP6.00 por hora, o que significa que o trabalhador normal pagará dez horas por dia, aproximadamente, qualquer coisa como MOP60.00 diárias.  Como resultado, pude constatar que em plenas 15:00 horas, um dos parques apresentava 115 vagas para automóveis e 130 para motociclos. O panorama é radicalmente diferente, com enormes espaços desocupados por quem não pode, ou não aceita, pagar somas tão avultadas.
Perguntar-se-á a quem, verdadeiramente, beneficia esta medida. Seguramente não é aos cidadãos, únicas vítimas de tais luminosas ideias. Ora, não beneficiando o cidadão, alguém tirará lucro, se os automobilistas estiverem pelos ajustes ou forem obrigados a pagar por hora MOP6.00. Afinal, estamos num mercado libérrimo, onde até a asneira é livre.
Entretanto, e porque depois de Kyoto, a cimeira de Paris ainda não decidiu sobre o futuro dos combustíveis fósseis, o nosso mercado livre vai deixando engrossar a fileira de automóveis e motociclos, e o nível do caos que é o trânsito, e o veneno que é a poluição do dióxido de carbono, que mata que se farta, mas andam todos distraídos com outros malefícios.
Tudo isto me traz à mente o conceito budista do Vazio. "Uma taça só tem utilidade quando está vazia". Transpondo para a realidade que este escrito aborda, creio que o princípio, ainda que não budista, é o mesmo: esvaziar para encher.
Seguramente estamos no plano do aturdimento e do vazio.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O OURO DO SILÊNCIO


"A razão mesmo vencida, não deixa de ser razão"
António Aleixo

Um dos mais fundamentais princípios de toda a governança é a existência de um pensamento ordenado, estruturado, para que se possa dizer que governar é também prever. A esse conjunto coerente de ideias dá-se o nome de ideologia. 
Governar não é o mesmo que administrar. À governação cabe definir os objectivos e os modos de os atingir, coisa pouca para uma cidade com seiscentos mil habitantes mas que, pelo descontentamento que significativos sectores da população demonstram quanto a algumas (in)decisões ainda recentes, e outras candentes, parece não existir ainda um fio de pensamento, uma bem urdida meada, e subsequentes acções. 
Recordemos: durante meses os táxis boicotaram a população local, lançando-se como lobos sobre os turistas, gerando conflitos, exclusões e outros descontentamentos que, felizmente, a nova administração decidiu debelar.
Os ambientalistas e alguma população não tolera o ar que se respira, os jactos do mortal monóxido de carbono que a superpopulação de carros e autocarros lançam sobre os cidadãos.
Ao longo da última década assistiu-se a uma verdadeira invasão desorganizada de automóveis novos-ricos, disseminados pelos vários estratos sociais da população, tempos de abundância e ostentação, a par do enorme enxame de motas e motinhas que povoam o quotidiano da cidade, sem que para isso houvesse mão. Foi entrada franca. 
Perante esta situação, que já extravasou todos os limites do tolerável, não se ouviu para os lados da AL nenhuma voz que alertasse para o óbvio, isto é, para a hipersaturação que é aquele ponto em que todos os veículos colocados em fila ultrapassam, em muito, a quilometragem das vias de circulação urbana.
Falou-se, isso sim, dos malefícios do tabaco, o que me leva a pensar se será necessária uma auscultação sobre os Malefícios do Automóvel para que se tomem providências nesse sentido.


E como sobre estes assuntos tem reinado silêncio, houve quem se lembrasse então de embirrar com as consequências, e propor que os parques de estacionamento não tenham passes mensais. Isto quer dizer que não havendo garagem privada, o utente do passe mensal dos parques públicos não pode estacionar o carro perto de casa. Ao contrário, segundo luminosas ideias, mesmo que não queira, o dono do passe tem de sair do parque e aumentar o fluxo de trânsito, porque "é preciso dar a vez a outros". Tal alegação encontraria em Magritte algum potencial acolhimento, se o artista ainda fosse vivo, e o Surrealismo fosse artisticamente vigente.
A primeira questão que se levanta é saber porque é que se emitiram passes mensais e porque é que há utentes para eles. Gostaria muito que certas luminárias soubessem responder adequadamente a esta questão.
Depois, desejaria, enquanto cidadão, ser elucidado porque é que nunca se pronunciaram contra a invasão de automóveis e motas e seus efeitos nefastos. Porque é que deixaram que o mal se fizesse e agora falam em farisaicas igualdades, e propõem debates.
Quando não se possui uma doutrina para a cidade, quando não se possui a cultura suficiente para compreender o que é uma cidade, quando as motivações são repentinas e despidas de uma lógica fundamentada, recomenda-se o recurso à sabedoria possível:  em certas circunstâncias o silêncio é mesmo de ouro. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

O BARRO E O SOPRO - ENTREVISTA A MARTA CRISTINA CARVALHO


Das artes do fogo, a cerâmica, o vidro, a joalharia,  e a cutelaria, a primeira transporta uma carga eivada a ocidente de uma ancestralidade que remonta ao Livro do Génesis e ao sopro divino.
Marta Cristina Carvalho nasceu em Coimbra, em 1964. Entre 1986 e 87 obtém um diploma de moldes para a indústria da cerâmica. No ano seguinte trabalhou na indústria cerâmica portuguesa. Entre 1988 e 1990 frequentou o curso de escultura da Escola Superior de Belas Artes do Porto.
Em 1990 lançou-se à aventura e veio para a Ásia por onde deambulou até poisar em Macau e aqui trabalhar com designer gráfica.
Em 1993 levanta âncora e viaja para o Japão onde trabalha com ceramistas nipónicos.
Em 1994-94 torna-se ceramista residente no Parque Cultural de Cerâmica de Shigaraki.
Em 1995-96, em part-time, torna-se professora convidada assistente do Departamento de Cerâmica da Universidade de Arte e Design de Kyoto.
Em 1996, apenas três anos depois de chegar a Kyoto, na região de Kansai, torna-se ceramista independente, viajando frequentemente para Macau para expôr e ensinar.

Marta, da leitura da sua resumida biografia e curriculum nota-se uma grande irrequietude até chegar ao Japão, onde já reside há 22 anos. O que é que a prendeu à prática da cerâmica no Japão?
A prática da cerâmica no Japão, para mim, quase foi como uma consequência natural de me encontrar na Ásia precisamente na altura em que, como artista, procurava o meu próprio caminho e expressão estética.
 A cerâmica sempre foi uma constante presença na minha vida, por ter nascido numa familia com ligações a essa indústria. O meu pai como geologo encontrou muitos dos existentes jazigos de matéria prima para a indústria ceramica portuguesa, e muitas vezes  me levava em trabalho de campo,onde sempre havia descobertas de muitos minerais, muitas vezes quartzos raros e outros de origem muito específica daquela zona atlântica. Desde adolescente passava os tempos livres trabalhando com esse lado da minha familia que possuia ateliers de ceramica artistica também. Quando abandonei um curso de geologia para escultura mas uma vez iniciei a cerâmica paralelamente com um curso técnico,  mas sem qualquer intenção profissional,  apenas  me era natural poder trabalhar em algum ramo da cerâmica para poder financiar por alguns anos a universidade onde estudava no Porto.
Acontece que, quando na Ásia, mais uma vez me tocou a curiosidade de conhecer novas técnicas , materiais e outras maneiras de ver a cerâmica me levou ao Japão pelo qual tinha um especial interesse.

Sendo portuguesa, e com curso de moldes de cerâmica, frequência em cerâmica industrial e curso de escultura na ESBAP, existe algum vestígio ocidental na cerâmica que faz desde que chegou ao Japão?
Começo por dizer que nunca acabei o curso da ESBAP, pois na altura algo do ambiente académico não me satisfez como artista, e senti naquela altura particular que tudo o que tinha para '' estudar'', ou procurar  como artista não precisava de ser numa coisa chamada escola.  Quanto a influências  culturais acho que é impossivel nos livrarmos da nossa cultura e das influências estéticas e emocionais do sitio que nos fez crescer.
 Como tal, e mesmo já vivendo no Japão quase há tantos anos como os que vivi em Portugal, em grande parte do meu trabalho, tenho que admitir que possuo uma visão bastante ocidental  apesar de tudo.  Quero dizer que,  mesmo nas minhas  peças de uso utilitário a componente artesanal e tecnologia de materiais, bem como a visão filosófica que os japoneses têm relativamente aos materiais usados na cerâmica, apesar de ser importante, não toma no meu caso um papel relevante ou fundamental.
De uma maneira simplista  diria que os japoneses vêem qualquer que sejam as arts and crafts no sentido: matéria-forma-estética, e o ocidente no sentido: estética-forma-matéria.
O shintoísmo religião primordial no Japão tem muito  a ver com este fenómeno em minha opinião, mas isso já é outra conversa.
Sendo a cerâmica tão vasta e complexa em termos de técnicas, materiais e possibilidades desses minerais serem transformados em algo pela mão do homem, artista ou artesão, acabei por perceber que não seria nunca um potter ou oleiro.  Isso no sentido em que a busca de técnicas para conseguir milhares de efeitos derivados de diferentes barros, cores ou certos resultados nas queimas consome por assim dizer toda a energia e tempo disponível na  vida inteira de um ceramista.  Aperfeiçoar técnicas exaustivamente a todos esses níveis, nunca foi  no meu trabalho o mais importante.
 Na realidade a busca na cerâmica para mim é mais centrada em encontrar uma verdade, uma expressão própria e inerente quase que universal em qualquer material, como também a madeira terá, outra o metal e por assim dizer todos os materiais. Então conseguir ultrapassar finalmente o factor ''os materiais''. Ou seja, o que acontece no meu trabalho muitas vezes até no mais ''utilitário'' é quase um paradoxo:  na realidade os materiais são tão essenciais quanto pouca relevância têm. Pode ser um qualquer, mesmo plástico, apenas emergem, este ou aquele, pela necessidade de encontar uma mais perfeita composição, cor, equilibrio ou expressão.

Sei que a cerâmica japonesa é altamente apreciada pelos japoneses, que por ser utilitária não deixa de ser menos artística. Esta atitude e visão contradiz de certo modo aquele (falso) paradigma ocidental que diz que a arte, para o ser, não pode ter uma utilidade. Quer comentar? 
Esta questão é complexa e só pode ser vista à luz dum conceito de beleza muito próprio e inato aos japoneses. Na realidade até na cerimónia do chá,  que é onde se atinge o auge deste conceito, como falo mais adiante, por estranho que pareça, ia buscar tijelas com várias outras funções e objectos que não eram feitos por japoneses. Muitas tijelas e escolas de chá usaram e apreciaram tijelas e utensílios até de diferentes eras  na história, encontrados na China e Coreia.
 Isto apenas  prova que não são as técnicas ou tradições de um artesanato japonês, e o seu aperfeiçoamento ate à exaustão que podem levar a que um objecto seja tido como de grande valor artistico para satisfazer o conceito de beleza nos Japoneses.
A existência do conceito wabi sabi, ou os três iis, imperfeito, impermanente, incompleto, derivado de ensinamentos budistas, e associado a outras influências shintoístas como a assimetria, simplicidade, austeridade, e sentido  de  economia de meios na concepção dos objectos e uso de imagem, criam uma sensação de intimidade profunda com a natureza.  E é assim que esses objectos, de uma ingenuidade íntegra, criam um muito  particular conceito de estética,  pelo que objectos de uso diário, podem também ser elevados por tal, ao mais alto sentido artístico.

Além do barro, que outros materiais utilizas para as tuas peças? Consideras-te pioneira na utilização dos diversos materiais e na sua combinação?
  Acho que já respondi um pouco a esta pergunta. Há muitos artistas que combinam materiais, mas sim cada um encontra o seu caminho e expressão e nesse sentido todo o artista é pioneiro em algo.    Uso muito o gesso, que é considerado um material menos nobre na cerâmica e escultura, pelas suas características de pouca durabilidade, mas que para mim é um material rico e infinito de possibilidades técnicas e expressivas. Também uso metal e madeira,  e vidro  fundido, não vidro soprado, esse só muito esporadicamente. Combino para além disso técnicas de gravura e serigrafia em todos esses materiais, sejam essas impressões feitas depois cozidas a alta temperatura ou não.

Como é a vida cultural no Japão e como se consegue expôr em galerias no Japão?
Acho como um pouco em todo lado, ou se entra num círculo de galerias comerciais, depois de se apresentar ou ser apresentado, que fazem contratos com os artistas e os representam, ou se apresenta o trabalho a galerias para exposições esporádicas e as que gostam convidam para expôr. No entanto no Japão há uma grande quantidade de galerias que são alugadas, e artistas que querem estar independentes de horários e restrições de vária índole por parte das galerias de convite, acabam por uma ou duas vezes por ano alugar e pagar as suas próprias galerias, no entanto todas as vendas são na mesma divididas pelo artista e galerista,  independentemente de serem ou não alugadas pelos artistas.
No caso de trabalho mais artesanal e funcional há uma grande variedade de lojas/galerias que vendem à  comissão fazendo exposição individual por uma semana ou duas e que depois têm sempre algum stock em exposição permanente na loja de trabalhos dos artistas que vão expondo ao longo do ano. Mas estas embora sejam em maior número são no fundo lojas mais dedicadas  a peças de artesanato e uso mais comum, pois faz parte da vida quotidiana dos japoneses usarem louça feita à mão, por razões de tradição, noção de conforto, noções de estética, etc .
 Há depois galerias , no mundo da cultura à volta da cerimónia do chá que é bastante estanque do resto das galerias de arte e mesmo artesanato. Todos os instrumentos usados na cerimónia do chá são tidos como peças fundamentais de todo um ritual e filosofia onde a tijela de chá, por exemplo, é mais um item, a par de chaleira em metal, colheres em bambu, instrumentos de queimar incenso ou preparar cinzas para ferver a água etc. etc. A tijela de chá em cerâmica na cerimónia do chá não é tida como artesanato,  terá de ser sem duvida um objecto de contemplação já elevado a um outro nível a que o artesanato por si só não satisfaz, mais perto de um objecto de arte, que tem tanto valor artístico por si só como a capacidade de criar um ambiente ou um espaço emocional, mais perto de um conceito existente na escultura e mesmo em muita da pintura.

Continua ligada a Macau. Porquê?
Em Macau continuam amigos queridos, e às vezes sinto que existe também um pouco de Portugal aqui à mão de semear.  Para além disso encontrei Macau numa fase importante de mudança da minha vida, e como tal voltar, ver as diferenças e, se puder, fazer  algo por Macau com alguma exposição ou algum workshop em que possa ajudar com novos conhecimentos e ideias estará sempre nos meus planos e será sempre um prazer.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

À CONVERSA COM PAULO BENTO



Jogou futebol desde os 8 até aos 35 anos em campeonatos nacionais. Depois seguiu a carreira de treinador. Treinou com Fernando Peres e Vitor Damas. Teve uma passagem de nove anos pelo Sporting Clube de Portugal e pelo futebol juvenil, onde colaborou directamente com Aurélio Pereira. Paulo Bento tem o curso de treinador de futebol com a Licença Profissional UEFA ADVANCED.
Treinou em Portugal muitos clubes dos mais variadíssimos campeonatos como treinador principal, e como treinador adjunto esteve na 1ª Liga, no Vitória de Setúbal e na 2ª Liga no Portimonense, onde recentemente trabalhou. Um dia aceitou o desafio do Monte Carlo e chegou a Macau, já lá vão alguns anos. Depois de duas épocas no Monte Carlo regressou a Portugal. Mais tarde, volta a cruzar-se com Macau e aceitou convite, desta feita do Benfica de Macau, mas saiu ainda antes do campeonato começar. Regressou a Portugal. Foi depois treinar para a China.  Xangai e o projecto de Luís Figo eram suficientemente credíveis para ele aceitar.
Por Macau mantém afectos, boas recordações e outras nem tanto, mas tem uma paixão muito grande por esta região e por poder contribuir para o desenvolvimento do futebol em Macau de uma forma geral, continuando aberto a propostas de projectos credíveis seja a nível de clubes ou das selecções.
Paulo Bento, como vê a situação actual do futebol em Macau em termos de organização, em termos de formação, em termos de infraestruturas físicas (estádios e campos de treino)?
PB: O desporto tem que ser visto como uma forma de organização social. Como tal existirá sempre aquele que visa o lucro e escolhe os melhores, os mais competentes, aqueles que melhor rendimento dão no momento para atingir determinados objectivos desportivos, tal como ser campeão de uma competição qualquer. Depois existe o desporto assente no lúdico, onde todos têm o seu espaço, onde praticam aquela modalidade de que mais gostam que lhes dá mais prazer, onde entendem ser melhores. 
Olhando para tudo aquilo que disse anteriormente e pela experiência que passei ao longo do tempo que permaneci em Macau em dois clubes da liga Elite, na minha opinião, Macau sofre deste mesmo problema ou seja; uma confusão de ideias quanto à sua organização, não sabe ainda dividir o "desporto para todos" do "desporto de alto rendimento". Vidé a organização do campeonato de futebol da Liga Elite onde podemos observar equipas de muito pouca qualidade, com atletas que interpretam o futebol não de uma maneira profissional mas assente em ideias do futebol amador, porque na realidade o futebol em Macau é ainda considerado como uma competição amadora, apesar de alguns clubes investirem em treinadores e atletas profissionais vindos de outros países. Considero que a organização dos campeonatos terá de ser bem pensada de forma a não acontecerem situações de falta de estratégia e de planificação. Na minha opinião, em Macau, a organização dos campeonatos terá de ser mais selectiva no que diz respeito à inscrição de equipas. As equipas que entrarem no campeonato da Liga Elite terão de cumprir determinados parâmetros que a identifiquem como uma verdadeira equipa de futebol de onze, onde os seus activos, por exemplo, são só jogadores de futebol de onze e não acumulem também espaço em equipas de futsal ou ainda na Bolinha. Na minha opinião terão que dividir essas competições, pois apesar de estarmos a falar de futebol, é muito diferente o futebol de onze do futsal e da Bolinha...existem muitos exemplos de excelentes jogadores de futsal que têm um nível médio/baixo como jogadores de futebol de onze, o mesmo se coloca ao inverso
Quanto aos equipamentos desportivos, tais como campos de futebol, estes terão de ser adequados à prática da modalidade. Em Macau, as equipas treinam em espaços que não são adequados para a prática da modalidade de futebol de onze, no que diz respeito ao espaço disponibilizado para desenvolver o seu trabalho (trabalha-se muito em meio campo e em campos de futebol de cinco e de sete) e ao piso, como por exemplo o Estádio de Hóquei em Campo, que tem (não sei como está actualmente) um piso muito antigo e extremamente duro que leva os atletas a sofrerem lesões graves ao nível das articulações e outras. Este equipamento desportivo deveria ser reformulado com colocação de novo piso e pensar na mudança do Hóquei em campo para um outro espaço unicamente destinado á modalidade. A mudança constante de piso é também prejudicial para o atleta levando-o por vezes a criar lesões. Nos atletas profissionais além destes serem os principais lesados, também a sua entidade patronal, ou seja os clubes, sofrem com a situação, pois ficam impedidos de os seus jogadores poderem rentabilizar o investimento feito neles e desta forma inviabilizar os objectivos preconizados em determinado momento, quando pensaram em investir em atletas profissionais, perde também o futebol e o campeonato. O mesmo se passa em terrenos relvados que não estão devidamente tratados para a prática do futebol de onze, neste caso tomo como exemplo o estádio da Universidade que no meu tempo na maioria das vezes não estava devidamente tratado e com alguma perigosidade para os atletas contraírem lesões. Desta forma, talvez este Estádio pudesse ser transformado num excelente campo sintético de última geração, proporcionando assim muitas horas de utilização. Na minha opinião, pode-se rentabilizar alguns espaços que poderão trazer mais disponibilidade para os clubes treinarem como por exemplo o espaço relvado por detrás do Hóquei em Campo, este, caso não haja inconveniente, poderá ser um bom espaço para um campo sintético de última geração, já que é utilizado por equipas para desenvolverem o seu trabalho. 

O futebol em Macau tem uma história que se pode localizar nos anos 1920, com picos nas décadas seguintes, nomeadamente nos interports com Hong Kong nas décadas de 1930, 1940 e 1950, em que as selecções locais ganhavam a Hong Kong. Nessa altura havia uma divisão de futebol de onze, enquanto vamos encontrar agora 3 divisões a ocupar todos os campos disponíveis, enquanto que, simultaneamente a mesma Associação de Futebol de Macau acumula a organização do futebol de onze com o futebol de sete. Que lhe parece isto tudo?
PB: Em minha opinião, num futuro próximo, deverá diminuir-se o número de divisões para duas e fazer uma Liga Elite mais forte. No entanto terá que se trabalhar no sentido de cada vez mais atrair praticantes de qualidade para a modalidade e mais tarde, quando houver uma maior competitividade, poderá voltar-se a mais uma divisão. Com mais equipas na Liga Elite poderá igualmente trazer maior competitividade, jogadores e treinadores de valia a este campeonato, até porque se poderá prolongar por mais tempo, oferecendo assim a possibilidade da população poder ter mais tempo o futebol de onze bem presente. A segunda divisão irá com certeza ficar também mais forte. De igual modo, poderá também pensar-se num campeonato amador, onde com certeza estará mais adequado à maioria dos atletas que jogam pelo gosto do futebol, mas que não estão disponíveis ou não querem estar disponíveis para abraçar um projecto profissional ou mesmo semi-profissional, já que possivelmente desenvolvem outras actividades profissionais e assim querem continuar. Também o futebol de sete aqui poderá ter a sua importância, já que com diminuição para duas divisões poderá abrir-se a possibilidade de um campeonato de futebol de sete mais longo e competitivo. Quem está por dentro do futebol juvenil sabe da importância de uma boa transição do futebol juvenil para o futebol sénior, daí que não será despropositado pensar em campeonato intermédio (Campeonato de esperanças) para uma boa integração dos jovens jogadores em campeonatos mais exigentes. Decididamente, o futebol de onze terá de estar num plano completamente diferente para melhor até porque na realidade é a modalidade com maior visibilidade mundial. A indústria do futebol de onze é muito forte e como tal poderá também alavancar algumas actividades que podem tirar dividendos com uma Liga forte e organizada de forma profissional. Tudo depende da vontade dos órgãos competentes analisarem a situação do futebol em Macau e terem ou não vontade de mudar para outra direcção. 

Considerando que há uma limitação de terrenos, e por consequência de campos, como é que - em sua opinião - se podem gerir os espaços para treinos? Algumas coisas deveriam ser alteradas. Quais? 
PB: Como referi na resposta à primeira pergunta, é urgente que se possa definir que as equipas que jogam na Liga Elite devem ter maior número de vezes os campos disponíveis para treinar em espaços de acordo com a modalidade que praticam. Impõe-se ultrapassar a ideia de que um grupo de amigos pode ter o campo alugado por vezes com poucos jogadores para fazerem uma brincadeira e uma equipa que está em competição oficial vê-se privada de treinar por falta de campo. Pensar também na construção de campos sintéticos de última geração pois conseguem aguentar maior número de horas de utilização e transformar alguns espaços até agora utilizados de forma deficiente em campos com qualidade para a prática do futebol. Enquanto não existirem campos suficientes para o futebol de onze, poderá tentar-se chegar a acordo com alguns colégios e escolas que disponham de espaços, para o futebol de 5 e de 7 para assim poderem dispor de mais opções e continuar a dar a possibilidade a quem pratica o futebol apenas por lazer continuar a ter a possibilidade de jogar com amigos sempre que quiser, fomentando assim o desporto lúdico. Desta forma, poder-se-á arranjar maior disponibilidade de campos de futebol de onze.

Nisto tudo há dois vectores que sofrem; a organização do futebol e os campeonatos e, por outro lado, a formação. Que é que lhe sugerem estes dois temas?
PB:Macau ainda vê o futebol de uma forma lúdica, onde todos pensam que podem jogar ao mais alto nível. Há que distinguir uma actividade lúdica como os jogos entre amigos e uma prova profissional ou mesmo semi-profissional. Os factores que influenciam o rendimento desportivo, técnico-táctico, físico e psicológico, bem como outros que fogem aos treinadores e suas organizações apresentam diferenças muito grandes entre competições profissionais e amadoras. Deste modo, entendo que falar de Macau e do seu futebol será uma longa discussão. A organização de uma Liga Profissional terá que ser levada em linha de conta pela AFM, mas também terão de se efectuar muitas alterações na sua organização, não só de logística, mas também fundamentalmente dos seus colaboradores, principalmente mudança de mentalidade e não ter receio de trazer para dentro de sua casa, técnicos, dirigentes e colaboradores com maior qualificação no sentido de poderem acrescentar algo. Os árbitros terão também de demonstrar mais competência, mas em minha opinião autónomos da AFM. Para que isto seja realidade, a AFM tem que apostar num plano estratégico de formação de todos os seus colaboradores, não deve continuar a permitir que treinadores estejam a treinar sem a devida licença profissional de treinador passada por organização mundial como a UEFA ou outra certificada e que ateste a validade da Licença Profissional do treinador. Deverá ter a certeza de que o Clube cumprirá na íntegra com todas as suas responsabilidade que tem para com os seus funcionários, para assim poder inscrever-se numa prova oficial. 
Esta é apenas opinião minha para poder contribuir para um desenvolvimento sadio e com qualidade. Gostava de ver um diálogo claro e objectivo sobre esta temática por parte de outras pessoas, principalmente daquelas que estão envolvidas neste fenómeno desportivo em Macau e que são influentes nas decisões a tomar no futuro para que o futebol em Macau possa desenvolver-se cada vez mais. Tenho paixão por Macau, estou e estarei sempre disponível dentro das minhas competências para colaborar e contribuir na melhoria do futebol da RAEM.
E muito mais haveria para dizer deste prelúdio para uma conversa.