terça-feira, 23 de junho de 2015

O DRAGÃO ACORDADO

Zhugue Liang, aliás Kong Ming

Zhugue Liang foi o mais importante estratega do turbulento Período do Três Reinos da História da China, (220d.C. - 280d.C.), no ocaso dos Han. O seu outro nome era Kong Ming, tendo-se celebrizado pelo modo como liderou a estratégia do Estado de Shu, senhoreado por Lio Bei, contra os Estados de Wu e de Wei, este último liderado por Cao Cao (leia-se Chou Chou).
Kong Ming era conhecido pelo epíteto de "dragão escondido", pois os que o rodeavam desconheciam a sua capacidade de protagonizar grandes feitos. Assim era o homem que é representado com vestes taoistas e um leque de penas de ganso.
Liu Bei, um dos heróis do "Romance dos Três Reinos" e descendente de um dos ramos da casa imperial dos Han, visitou-o por três vezes, pedindo-lhe para ser o seu principal conselheiro e estratega. Liu Bei teria 47 anos e Zhugue Liang, aliás Kong Ming, teria apenas 26, quando ambos estabeleceram o reino de Shu, naquela que é hoje a província de Szechuan.
Na batalha dos Penhascos Vermelhos, Kong Ming recomenda a Lio Bei que se alie a Sun Quan para derrotar o plano de Cao Cao de conquistar toda a China.
O vento do Oriente
A Batalha dos Penhascos Vermelhos começou com uma escaramuça nas ditas rochas, seguida por um recuo para Wulin, nos campos de batalha na margem noroeste do Yangtze, e finalizada por uma batalha naval decisiva, com a desastrosa retirada de Cao Cao.
Cao Cao tinha acorrentado os seus navios uns aos outros, com o objectivo de criar uma frente intransponível. Kong Ming percebeu que essa força era também uma fraqueza, com o vento soprando de Oriente, isto é, contra a frota acorrentada. O estratega utilizou ardilosamente o vento de Oriente, expressão ainda hoje utilizada. Sob o pretexto de rendição, enviou sete barcos cheios de material inflamável na sua direcção. Com vento pela popa, os sete navios rapidamente chegam àquela frota estacionada no rio e, quando bem próximos, os poucos tripulantes incendiaram os navios, fugindo em pequenos botes. O resultado foi um incêndio de enormes proporções e a consequente destruição da frota de Cao Cao.
Eça escreveu que, no mundo, a não ser a China, tudo muda. Não posso deixar de concordar, sobretudo quando lembro o ditado que diz que "no rio Yangtze, a onda de trás empurra a da frente", significando que as gerações devem suceder-se no fluir da história. Entre e longínquo Lio Bei e o contemporâneo Xi Jing Ping, passaram muitos líderes, fazendo jus às ondas do Yangtze.
A captura das flechas
Desde a abertura da China ao mundo, quando Deng Xiao Ping aplicou o princípio estratégico da "Fortaleza Vazia" e convidou o mundo a aí ganhar dinheiro, e o Ocidente foi transformando a China na sua "fábrica", mais uma vez se aplicou uma velha táctica de Kong Ming.
Faltavam cem mil flechas ao exército de Lio Bei antes das primeiras escaramuças nos Penhascos Vermelhos e não havia como municiar o exército. Kong Ming deu ordem para que, durante a noite, pequenos barcos fossem enviados com "soldados de palha" até às proximidades dos navios de Cao Cao. Incontáveis flechas voaram para atingir os inúmeros barquitos que, à luz dos distantes archotes, lembravam intenções malévolas. Em pouco tempo as flechas abundavam no campo de Lio Bei.
Hoje, a China não é apenas o maior mercado do mundo mas, também o maior produtor doméstico. Que o digam, por exemplo, os telemóveis da Huawei, da Vivo, Xiaomi, Umi, para citar só os maiores.
O dragão Acordado
Napoleão Bonaparte, em 1816, terá dito "quando a China despertar, o mundo tremerá". Em 1973, Alain Peyrefitte retoma a frase na sua obra “Quando a China despertar”, numa feliz premonição de um observador atento.
Enquanto a terra de Vespúcio e o velho continente se procuram desenrolar da teia que criaram, paulatinamente a Oriente, o velho Império do Meio dispõe de uma nova arma: mais de um milhão de bilionários, encabeçados Jack Ma do Alibaba. Dando um salto para o 25o. Lugar do ranking dos mais endinheirados, este é ocupado por Guo Gangchang, que adquiriu recentemente a Thomas Cook, o Club Med, o Cirque du Soleil, o Hospital da Luz-Saúde (ex-Espírito Santo Saúde) e o mais que se verá. Xu Jiayin, fundador do grupo Imobiliário Evergrande, que detém 45.8 milhões de m2 de terrenos em 22 cidades da China. Xu Jiayin está instalado em cem cidades do continente, diversificou os seus negócios para os painéis solares, e detém o Guangzhou Evergrande, campeão de futebol da Superliga chinesa. Aos bilionários, todos eles gente de grande visão como se pode ver, a liderança considera-os os novos heróis desta nova e renovada China.
O país prepara-se para estar na linha da frente da sustentabilidade e da ecologia. O tempo joga a favor da China. O Império Imóvel move-se pausadamente, em passos gigantescos.
Perante todos estes cenários, perante todos os planos que a já mais poderosa economia do mundo tem para os seus Territórios, pergunto-me qual o verdadeiro desígnio para este minúsculo pedaço de terra, para esta pequena cidade que habitamos, para este legado, esperando que tal como no Yangtze as ondas de trás empurrem as da frente, seguindo o curso da natureza.

terça-feira, 16 de junho de 2015

DO AROMA AO PERFUME


Viemos de um outro tempo em que o que nos era mais caro era a sinceridade. Inocência dos tempos da juventude e, possivelmente, de muita ingenuidade. Vivíamos um tempo que a si mesmo se dava generosamente mais.
Tal como agora, havia acácias, árvores de polpudas flores de cor de romã que se estatelavam no chão, soltando fibras que semelhavam algodão, pairando no ar. Projectavam sombras frondosas enquanto os triciclos nos traziam frescas brisas e a barraca de pesca permanecia na meia-laranja.
No ar pairavam aromas tantos, misturas indiscerníveis, metáforas do que são os macaenses, nação de singularidades, de indivíduos multilingues que por aqui permanecem ou pelo mundo se espalharam em diáspora.
Há trinta ou mais anos, disse que o que fazia a diferença em Macau do resto da China era a existência de uma comunidade que tinha conseguido, pela genética, legitimar a fugaz presença portuguesa, configurando-se, ela sim, como embaixadora, usufrutuária e portadora da Portugalidade.
Saltando o desfiladeiro das décadas, é grato constatar que desde a Transição, a República Popular da China encontra em Macau a mais adequada plataforma para a relação com os Países Lusófonos.
Macau sempre foi, de forma inexplicável, um sortilégio que por aqui nutriu as raízes, não apenas de tantos portugueses aqui radicados ad aeternum, como de chineses que por aqui se instalaram, provenientes de províncias diversas.
A nós, portugueses e luso-macaenses, é-nos requerido que saibamos encontrar e emanar a essência da singularidade, para que o aroma se transmute em perfume singular para o Lótus de Macau.
A cada um de nós, de origem vária, diversa e dispersa, cumpre-nos ser a diferença. Que fiquem para trás os tiques de outros mundos que a este não pertencem. Que nos afirmemos pela qualidade, pela natural capacidade de nos misturarmos, em vez de nos atermos a refúgios de círculos fechados.
Macau é, deve ser, sobretudo, um espaço para relações singulares, sempre pronto ao reatamento.
A idade tem destas coisas, potencia o tempo distante e traz a cada reencontro a certeza de que, aos Amigos de verdade, Macau nunca lhes é indiferente.
À medida que o tempo passa, os aromas ou se apuram ou se decompõem.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

DA PRIMAVERA E DO OUTONO


Em 1046 a.C., há cerca de 3.500 anos, em plena Idade do Bronze, os Shang travavam a mais crucial batalha contra os Zhou, onde é hoje a província de Henan, na bacia do Rio Amarelo, berço da civilização chinesa.
A batalha de Muye opôs o exército dos Shang, de 700.000 homens, contra os Zhou, possuidores de uma força de 4.000 carros de guerra e 48.000 homens, ditando a queda dos primeiros.
Esta batalha iria dar origem à mais longa dinastia da China, a dos Zhou, nada mais que 790 anos (1046 - 256 a.C.), dividindo-se em complicados sub-períodos, nem por isso menos interessantes.
É no período chamado “Primavera e Outono” (770 a.C. – 476 a.C.) que se afirmam, na falta de outro termo, as quatro escolas filosóficas chinesas: o Taoísmo, o Confucionismo, o Mozismo e o Legalismo.
Conta a lenda que Lao Tzu, antes de transpor as portas de Luoyang para desaparecer no horizonte Ocidental, deixou escrito o Tao te Qing, os fundamentos do Taoísmo, que contém este belo trecho, entre tantos outros:
"Havia algo de indeterminado antes do nascimento do Universo.
Essa qualquer coisa vagueia sem cessar.
Como não lhe conheço o nome, chamo-lhe Tao (Caminho, Via)
Com um nome deve ser a Mãe de todas as coisas
Sem nome, é o Antepassado dos deuses".
Do legado Taoísta, à benevolência do Confucionismo, segue-se a entrada do Budismo na China dos Han (206 a.C. - 220 d.C.) pela Rota da Seda, estabelecendo-se uma como que trindade de crenças, onde ao conceito cósmico, dinâmico e abstracto do Taoísmo se conjugam os princípios éticos do Confucionismo e a oportunidade da extensão temporal por via da crença Budista na roda das encarnações.
No Império do Meio o tempo passa a ter uma outra dimensão.

O tempo do tempo
Das altas montanhas debruadas de nuvens, às magnificentes capitais e à grandeza dos seus inventos, dir-se-ia que toda a longa história da China parece ter sido tecida - pura ilusão - para desembocar num conceito que lhe era exógeno, o da República.
A República mais não significou que a primeira tentativa de resgate de um sistema decadente e corrupto cujo final, protagonizado pela Regente Ci Xi, mostrou a distância e o alheamento com que o Império era (des)governado.
Após o período revolucionário liderado por Mao Zedong, a China percorre em 30 anos, como país mais populoso do mundo, um caminho em direcção ao que Deng Xiao Ping apontou: "Socialismo não tem de significar pobreza". E nos subsequentes planos quinquenais e no estabelecimento do princípio Um País Dois Sistemas conduzem com firmeza o país a uma Economia Socialista de Mercado, um dos conceitos-chave que iriam, num curtíssimo período, criar uma classe média de 400 milhões, uma classe milionária assinalável, e colocar a economia chinesa no topo da escala mundial. Apesar dos quase 100 milhões que vivem ainda abaixo da linha de pobreza, das migrações e da sustentabilidade ambiental constituírem um desafio para o governo central, a República Popular da China é hoje uma presença mundialmente poderosa.
Este breve olhar sobre a história milenar de um país que, nas últimas décadas, assistiu a uma transformação quase ímpar no desenrolar da história do mundo, fez-me lembrar um outro, no Extremo Ocidental da Europa, que, também há poucas décadas, teve o ensejo de se poder metamorfosear em um país democrático, moderno e desenvolvido, mas, dessa Primavera, resta-lhe apenas, apesar do céu azul, um ar Outonal. 

terça-feira, 2 de junho de 2015

O PRINCÍPIO DO FLAMINGO


As crises ou "ajustamentos" que ciclicamente têm assolado a história da economia de Macau tomam agora algum corpo com as opiniões de sectores da população sobre a distribuição dos cheques de comparticipação pecuniária.
Desde há muitas décadas que o orçamento do Território tem tido como seu grande pilar os jogos de fortuna e azar.
Em 1937, Kou Ho Neng e Fu Lou Yong criaram a "Tai Hing", que ganhou o exclusivo do jogo e teve no hoje vetusto e anacrónico Hotel Central não só o centro do jogo em Macau como também o do entretenimento, fosse o restaurante de comida chinesa com ópera à hora do meio-dia, fosse o salão de dança, hoje apenas habitado pelos fantasmas da memória.
Em 1962 Stanley Ho, Henry Fok, Yip Hon e Teddy Yip ganhavam o monopólio do jogo.
Progressivamente, o governo de Macau ia beneficiando, com cada renovação do contrato de jogos, de maiores fundos. Simultaneamente, os velhos ferries Tak Shing, Tai Loi e Fatshan, pertença da Tai Hing, eram substituídos por hidroplanadores e, mais tarde, por jactoplanadores, propriedade da S.T.D.M. Faz parte dos primórdios da concessionária o agora tão falado Hotel Estoril, dos anos 1960, seguindo-se-lhe o Hotel Casino Lisboa, nos inícios dos anos 1970.
Aos poucos, as fábricas de têxteis iam fechando, as quotas de exportações iam-se dissolvendo com a abertura de indústrias do outro lado da fronteira, e a cidade mantinha-se, apesar disso, reconhecível na sua forma de vida.
Macau ficou, desde então, dependente do jogo como principal indústria, uma fórmula que chamo de Princípio do Flamingo, ave que repousa sobre uma perna, porque a economia do Território dependia e depende, praticamente em exclusivo, dessa actividade.
Com a sua liberalização, os valores envolvidos na primeira década e meia de operações romperam todos os recordes, colocando Macau como capital mundial do jogo e enchendo os cofres do governo de montantes inauditos. É a febre e a excitação de uma cidade que se vê catapultada para os máximos de lucros e de visitantes, mais se reforçando a indispensabilidade do Princípio do Flamingo na economia local.
Numa escassa década e meia, a transformação de Macau é absolutamente radical, afirmação porventura LaPallissiana, mas nem por isso menos verdadeira.
E é aqui que entra o termo diversificação, numa economia que, após a ascensão já sabida, se procura ajustar, segundo os especialistas, sendo que, mesmo com ajustamentos, ainda proporciona elevadíssimos lucros, se comparados com o período pré-liberalização.
Sucede que num cenário destes, em que quase todos os recursos e formatações se viraram para o jogo, a diversificação, a existir, não poderá contar com parceiros mais bem preparados que as próprias operadoras. Esquecê-las é um erro, pensar que se pode diversificar sem elas é outro, porquanto a sua expansão e sobrevivência requer isso mesmo.
Teria sido interessante que, desde logo, se tivesse compreendido as potencialidades das operadoras no que toca ao seu know how no capítulo da gestão de recursos humanos, de operações, e pudessem estar integradas nos contratos cláusulas que envolvessem estágios para quadros, no que diz respeito a direcção e gestão em geral. Poderá parecer, à primeira vista, impraticável, contudo a formação de quadros em empresas privadas ofereceria uma experiência muito qualificada.
A diversificação económica exógena à participação das operadoras afigura-se quase impossível, como também pensar em Macau como Centro Mundial de Turismo e Lazer é pura utopia, enquanto não se encontrarem soluções viáveis e moralizadoras das diversas maleitas que inquinam a qualidade de vida. Isto é, como pode existir um Centro Mundial de Turismo e Lazer quando o trânsito e consequente poluição são o que são, quando a cidade no seu todo é um pejamento desordenado, quando os objectivos passam ainda pela oferta de 14 mil habitações e especulação imobiliária, ou quando da nobreza do centro da cidade uma antiga barbearia é subtraída em favor de uma vulgar joalharia ou uma tabacaria histórica por outra banalidade idêntica numa progressiva e avassaladora erradicação de tudo o que conferia identidade própria a Macau.
Pergunto-me, assim, se o Território tem capacidade para definir, esclarecer e operar esse objectivo de se configurar num Centro Mundial de Turismo e Lazer.
Para já o que prevalece é, seguramente, o Princípio do Flamingo.