quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

TEMPO E MEMÓRIA

O CASARÃO À DIREITA

A passagem do Tempo incorpora em nós passado e memórias.
E no segundo que medeia entre o velho e o novo, acorre-me um outro tempo, neste mesmo lugar. Macau, a Calçada do Tronco Velho e um vetusto edifício que se foi nos vendavais gerados por gente que hoje nem memória são. À esquerda de quem sobe, o passante que olhasse para as primeiras janelas do rés-do-chão veria homens debruçados, manipulando pedaços de chumbo, e sentiria um forte cheiro a tinta. Aquele casarão era misterioso.
Bocas maledicentes segredavam rumores de que ali mandava um perigoso comunista, o republicano “Monteiro das barbas”, que para aqui se degredara para estar próximo dos camaradas do outro lado das Portas do Cerco.
Ali dentro trabalhava-se até muito tarde. Funcionava aí o "Notícias de Macau" que Hermman Machado Monteiro havia fundado em 1947, sucedendo ao "A Voz de Macau", do Capitão Domingos Gregório da Rosa Duque. 
Os tipógrafos viam-se da rua, compondo, letra a letra e com rapidez, colunas que se iriam encaixar umas nas outras de um modo tão anacrónico quanto, aos olhos de hoje, é a máquina de imprimir. 
Junto às janelas dos tipógrafos, comandados pelo senhor Jacob, que naquele tempo era assim que se tratavam os mais velhos, situava-se a porta de entrada. Esta dava para um largo átrio, em tijoleira vermelha, de luz coada, sábia medida para manter a frescura dos dias ardentes. Uma escada em L, que chiava, dava acesso ao andar superior onde havia dois caminhos a tomar. À direita, a zona da administração onde trabalhavam duas simpáticas senhoras. Um pouco mais à frente vislumbrava-se uma papaieira que anunciava o grande jardim, que confinava com a igreja de Sto. Agostinho. À esquerda, percorrendo uns escassos metros e abrindo uma porta de vaivém, chegava-se à sala da redacção com inúmeras mesas frente a frente, munidas de máquinas de escrever. Numa dessas mesas, Patrício Guterres matraqueava impiedosamente a sua Remington que um dia descobri já não ter letras nas teclas.
No gabinete que dava para a redacção, trabalhava Luis Gonzaga Gomes, vizinho de casa e a quem todos chamavam de "Inho" Gomes. De poucas falas e que, para minha surpresa, conseguia andar sem barulho, deslizando pelo sobrado antigo. Tão metido consigo, era quase uma sombra. Só mais tarde vim a ler os seus livros, com dedicatória aos meus pais, que publicou nas oficinas do jornal. 
Chegavam aos poucos os senhores Anízio, Raul da Rosa Duque, José dos Santos Ferreira, meu tio Adelino da Conceição, Mário de Abreu e o Major Cabreira Henriques, que se detinha em longas conversas com meu Pai.
A sala da redacção ia ganhando vida à medida que as horas passavam e o senhor Jacob entregava linguados para serem corrigidos, que aquilo era obra para muitas horas.
O meu fascínio ia sobretudo para Hermman Machado Monteiro e o seu charuto. Falava pouco, como que pairava por lá, alentando com a sua presença toda aquela plêiade de gente.
Recordo que no Fim de Ano, naquela casa de sobrado que rangia, havia sempre uma ceia aberta a todos e brindes com Vinho do Porto. 
Sabia que Hermman Machado Monteiro vivia no Hotel Riviera. Visitei uma vez, com meu pai, o seu quarto, enorme, com varanda para a Praia Grande. 
Tinha dois poisos preferidos, onde gostava de reunir os seus colaboradores.
O restaurante do próprio Hotel Riviera, onde se reuniam em ampla e culta cavaqueira aqueles que seriam a Tertúlia do Notícias de Macau. 
No Fat Siu Lao, onde ia com tanta frequência que ficou na ementa o "Bife à Monteiro", fazia questão de reunir todo o pessoal que trabalhava no jornal, desde redactores, revisores, director e tipógrafos.

Nunca me perguntei se o jornal era viável. Acredito que não. Como não o era o Círculo de Cultura Musical que Luís Gonzaga Gomes dirigia. Mas outros elevados valores se levantavam. 
O Dr. Pedro José Lobo, verdadeiro Mecenas no panorama cultural de então e figura a requerer estudo biográfico, era também assíduo nestas tertúlias. Era um amante da música e, além de compositor, podia dar-se ao luxo de ter uma rádio, a Rádio Vila-Verde, em chinês, na sua mansão, e a Rádio Vila-Verde em Português, na rua Francisco Xavier Pereira. 
Meu pai, António Maria da Conceição, foi o último director do "Notícias de Macau". Viu, ironicamente, fecharem-se as portas com a liberdade de Abril. Uma estranha comissão ad hoc desferiu o golpe final a um jornal que tinha por tradição juntar todos sem distinção. Meu pai escreveu o último editorial, à guisa de saudação final, que intitulou "Morituri te salutant". Malhas que o Império tece... 
Antes, a marcar o Tempo, penduravam-se calendários nas paredes. Hoje, perdura a Memória, essa intangibilidade desconhecida por tantos. Os anos sucedem-se e, no bolor do tempo, pouco permanece. 
Que tenham um Bom Ano. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O ENCONTRO


Anoiteceu cedo, como é habitual nesta altura do ano, embora aqui o calor retire ao bafo da vaca do presépio o conjunto de clichés que nos foram impondo. Estava fora, e isso também fazia alguma diferença nos hábitos.
A entrada do hotel patenteava uma árvore natalícia gigante. Um piano ecoava pelo enorme átrio onde se cruzava uma multidão díspar que, tal como eu, aproveitava a época para sair do repetitivo quotidiano.
Lá fora, onde de dia se nadava, acendiam-se velas que bruxuleavam no escuro, expressando os festivos desejos habituais.
Senti-me algo perdido naquela multidão enquanto esperava que nos agrupássemos para o jantar. Mas uma como que frequência chegou-me aos ouvidos na forma de um sinal quase insonoro,  que se afirmava pelas vibrações que sobre mim exercia, como que uma membrana de uma coluna de som a vibrar. O fenómeno transbordou, percorreu-me a mente, os membros, o corpo. Subitamente, observei o que me rodeava de um outro modo, como se não fizesse parte daquele cenário.
Vislumbrei então, vindo na minha direcção, um homem estranho, que se movia deslizando, sem se lhe ver os pés. Tinha uma tez de cera, vestia uma sobrecasaca preta, gola de veludo, um colete escuro. O mais insólito era o cabelo frisado, já ralo, e uma barba longa, encimada por um bigode farto e branco, todo ele saído da era Vitoriana. Olhava-me fixamente à medida que se aproximava, atravessando as pessoas sem que elas dessem conta dessa extraordinária visão. 
Não falámos. O extraordinário é que comunicou de uma forma que eu  ouvia sem que houvesse som. “I bid you good evening, my dear gentleman” disse-me, e cada palavra como que vibrava dentro da minha cabeça. “Good evening” respondi-lhe estupefacto, porque apenas pensara as palavras. Comunicávamos pelo pensamento, algo, para mim, deveras surpreendente.
“I have been around for quite a while but these days I find all this a little too odd to my liking” retorquiu. “Anyway, my dear sir, my name is Charles. You may call me Charles given these informal days you live in”. O ar era sisudo, as pálpebras descaíam sobre um olhar pesado, talvez mesmo cansado. 
Aquele rosto era-me familiar, mas não com tanta idade. Arrisquei: “I presume, if my memory does not betray me, that you are Mr. Dickens, Mr. Charles Dickens”.  O meu interlocutor fitou-me com um semblante algo triste. “In fact I created Ebenezer Scrooge, and since then all they know about me is the Christmas Carol. Well, I guess one cannot escape one’s destiny”. Tossiu, pigarreou, olhou para mim e disse: “Não sei porque estou a falar inglês quando posso falar qualquer língua”.
“Mas venha”. Agarrando o meu antebraço, começámos a elevar-nos por sobre as pessoas no átrio, dirigimo-nos para a enorme parede de vidro que atravessámos sem custo, olhei a piscina iluminada de velinhas flutuantes. Não senti medo. Acostumara-me à vibração que me percorria, como uma corrente de energia cuja origem era insondável. Ascendíamos sem parar, lentamente, numa trajectória oblíqua. Estávamos sobre o mar. Olhei para cima, mas fui interrompido: “Neste plano, ascender ou descender não tem significado. Não existe o acima nem o abaixo, o atrás ou o à frente, a esquerda ou a direita. Quando habitamos o humano, a nossa compreensão tem limites impostos pelo mundo em que crescemos e vivemos. A matéria ilude-nos e formata-nos. Escrevi sobre Ebenezer Scrooge e a sua avareza, que era material, e o seu arrependimento”.  Olhei-o, enquanto continuávamos a subir. “Então quer dizer que neste momento estou materialmente tão... emaciado quanto o senhor?”. Sorriu-me, cofiou a barba e disse-me: “A morte material é uma realidade humana incontornável, mas tão natural como o nascimento. É a passagem pelo mundo plano e primário da matéria. 
Apontou-me para o gigantesco globo que tínhamos à nossa frente, a lua, que nunca tinha visto assim, enorme.  
Daí já podia contemplar um pouco mais do Universo. Não muito mais. Lendo o meu pensamento, pegou-me no pulso e deslocámo-nos a uma velocidade inimaginável. Abrandámos e, de súbito, estacámos no vácuo. Um panorama deslumbrante abria-se perante os meus olhos de mortal. Enormes galáxias em forma de nuvem, estrelas poderosas emitindo explosões de si próprias, planetas gigantes, outros menores, chuvas de meteoritos passavam perante o meu extasiado olhar.
“Veja, estamos num ponto do Universo em expansão. Aqui não existe nem bem nem mal, nem aqui nem em lado nenhum. Não há agendas nem desejos. A matéria é uma consequência, não um fim. Apenas os espíritos muito primários alimentam guerras e usufruem delas, falam de paz e lucram com ela, arrancam confissões, combatem por deuses diferentes ou por matérias que destroem o seu próprio habitat. Oprimem e orgulham-se disso. Agarram-se ao poder com ambas as mãos. Matam, matando-se. Criam o inferno, o verdadeiro inferno”
Olhou-me com o seu olhar entristecido, de pálpebras descaídas. “A matéria é energia acumulada. E isso é o que ilude no plano terrestre. Há outros planos de consciência, mas geralmente só se ascende a eles quando o espírito se liberta da matéria”.
“Aqui onde estamos,  percorre uma energia extraordinária que se chama Amor. Mas esta é de tal ordem que não é perceptível à maioria dos que dele falam. É demasiado poderosa para ser compreendida por seres incipientes”.
E, sem mais, em um tempo que não é tempo, estávamos de volta ao átrio do hotel. Talvez não tivesse passado um segundo. Mas o que é o tempo? Fui cear com muitas interrogações e um olhar desconfiado para tudo o que o Natal representa  de consumismo. Mas não deixei de, bem comportadamente, manifestar os meus votos de paz e amor. 

sábado, 12 de dezembro de 2015

VIRGINIA OR


I met her some years ago and there was a warm smile from Virginia.
Oddly enough, Macau sometimes seems to be big, as we didn't meet too often, but empathy can draw people together.
Virginia always made me curious of her. She is a Macau native, but many of  her friends were not. I observed curiously her openness. Later I learnt that she graduated in Philosophy from Seattle University and returned to Macau 15 years ago. She worked at the Macau Cultural Institute. She then left .... years ago and chose Lisbon to live, in the typical Alfama quarters, from where she freelances in events and performance.
I am very curious, in the positive sense, about some people. People that touch me. I wonder what drives them to make some choices, what attracts them, and so forth. It is all about human beings.

ACJ: Virginia, having been born in Macau what drove you to such a distant place like Seattle, and why philosophy? Was Macau not giving you fulfillment for your aspirations?
After I graduated from secondary school in Macau, like the majority of my classmates, we looked to continue our college education somewhere else other than Macau, while universities in the next door Hong Kong at the time were difficult to get admitted to.  We applied to more than one place, and a community college in Seattle accepted my application, and after two quarters of studies in improving English, Seattle University accepted me.   The education system was pretty relax in the U.S. and we got to change majors many times.   Influenced by some freshly grad professors at the time, who truly loved and enthusiastic in teaching philosophy, I kept taking more and more classes and at the end it became my major.   At that time and age, coming from a small and somewhat closed society like Macau, before the popularity of internet, we were trying to understand many things by thought and by physically going to places: the environment, social issues, racial relations, our time, how we thought and have been thinking about things…   In that sense, perhaps yes, Macau did not have the psychologic space to offer us the opportunity to broaden our horizon in thought to crystallize our aspirations.
ACJ: I have noticed that many of your relations in Macau encompassed non-Chinese friends and now, I suppose that all in Portugal are none Chinese. What drove you to cross the bridge to a "different culture and environment?"
The bridge is "crossed" or "getting crossed" the minute we stepped out of our home environment and our comfort zone and stepped into the openness of trying to understand the others.   From knowing people of difference places, they bring the world to us, or nearer to us.   There is still much to be learnt.
ACJ: The curiosity is mine. Is there a difference between Chinese young people and your non Chinese friends? Would you identify the differences?
I guess the difference is not so much the culture or race as the social upbringing and cultural awareness.   I find the same kind of young people in all societies and cultures that I have experienced, who are not so open to people from different environments and cultures, and who are more interested in the mainstream such as their own security, social status and good jobs, which is a choice… but I also find others who are open to diversity and changes, for themselves and also for the others.   Yet, I do think that people, young and old, without travel and experience cultures and environments other than their own, would be more difficult to be open to the differences.
ACJ: In your view, what really differentiates the Chinese philosophers from their Western counterparts? What are the main cultural differences in your opinion.
My university only offered Western Philosophy studies and that was the sole genealogy of thought I learnt.   But because by cultural upbringing and ethnicity, I am Chinese, i found intuitively some premises in forms of analysis, points of departure to begin the works, did not apply to our eastern psyche, or perhaps to ways of thinking that are close to and inclined towards eastern thoughts.  In this sense, it's more difficult to merge the two.
ACJ: What made you chose Lisbon of so many countries in Europe? And then Alfama... I am really curious.
Because I was born in Macau before the handover, so naturally I am Portuguese by birth.   And Lisbon feels like home because the way the old city is laid out, some buildings, the calçada (cobbled stone) streets, the mellow inclusiveness, warmth and sense of humor of the people, and the diversity nowadays adds to the flavor of the place.  Nostalgia for the old attracted many included myself to the old neighborhoods of Lisbon, such as Alfama, Mouraria or Graça… among others.   For me, simply, I just feel more safe living with old things rather than new.

VIRGINIA DE OIRO


Conheci Virgínia Or há alguns anos e sempre encontrei um genuíno e caloroso sorriso.
Estranhamente, ou talvez não, Macau parece ser grande, porque raramente nos encontrávamos, mas a empatia pode juntar as pessoas.
Virgínia sempre me suscitou curiosidade. Sou curioso acerca de pessoas que me tocam. Virgínia é natural de Macau, mas muitos dos seus amigos não são. Observei, com atenção, a naturalidade da sua abertura ao outro. Soube que se havia licenciado em filosofia pela Universidade de Seattle e regressado a Macau há 15 anos. Trabalhou no Instituto Cultural. Depois, saiu mais uma vez e escolheu Lisboa para viver, na típica Alfama, onde trabalha como freelancer em eventos e performances. A minha curiosidade sobre pessoas leva-me a inquirir o que as leva a fazer algumas escolhas, o que é que as atrai.

ACJ: Virginia, tendo nascido em Macau, o que a levou a um lugar tão distante como Seattle, e porquê filosofia? Macau não preenchia as suas aspirações?
V.O.: Depois de terminar a escola secundária em Macau, e à semelhança dos meus colegas, procurámos continuar a nossa educação universitária noutro lugar. As universidades de Hong Kong, à época, eram de difícil acesso. Tentámos em vários lugares e, no meu caso, um colégio da comunidade em Seattle aceitou o meu pedido. E assim, após dois trimestres de estudos na melhoria do inglês, fui admitida na Universidade de Seattle. O sistema de ensino era bastante livre nos Estados Unidos e nós temos de mudar de curso várias vezes. Influenciada por alguns professores recém-graduados nessa altura, que verdadeiramente gostavam e eram entusiastas do ensino da filosofia, continuei a ir a mais e mais aulas e no final concluí o curso de filosofia. Nesse tempo e idade, vinda de uma pequena sociedade um tanto fechada como Macau, antes da popularidade da internet, nós tentávamos compreender muitas coisas pelo pensamento e pela ida física aos lugares: o ambiente, as questões sociais, as relações raciais, o nosso tempo, como nós pensávamos sobre as coisas... Nesse sentido, talvez sim, Macau não tinha o espaço psicológico para nos oferecer a oportunidade de ampliar os nossos horizontes de pensamento, antes propício a cristalizar as nossas aspirações.
ACJ: Reparei que muitas das suas relações em Macau envolviam amigos não-chineses e agora, suponho, em Portugal, também. O que a levou a atravessar a ponte para uma cultura e ambiente diferentes?
V.O.: A ponte é "atravessada" ou "está a ser atravessada" a partir do momento que saímos fora do nosso ambiente de casa e da nossa zona de conforto e entramos no espaço de tentar compreender os outros. Ao conhecer pessoas de diferentes lugares, elas como que trazem o mundo até nós, para mais perto de nós. Ainda há muito a aprender.
ACJ: A curiosidade é minha. Existe alguma diferença entre jovens chineses e não chineses entre os seus amigos?
V.O.: Acho que a diferença não é tanto a cultura ou raça, mas a educação social e a consciência cultural. Encontro o mesmo tipo de jovens em todas as sociedades e culturas que conheci, que não são muito abertos a pessoas de diferentes ambientes e culturas, e que estão mais interessados ​​no mainstream, como a sua própria segurança, status social e bons empregos, o que é uma escolha... mas também encontro outros que estão abertas à diversidade e às mudanças, para si e também para os outros. Por isso, acho que as pessoas, jovens e velhos, sem viajar e conhecer culturas, outras que não a sua própria, têm mais dificuldade em estarem abertos à diferença.
ACJ: Na sua perspectiva, o que é que diferencia os filósofos chineses dos seus colegas ocidentais e quais as principais diferenças culturais?
V.O.: A minha universidade só oferecia estudos de filosofia ocidental, a única genealogia do pensamento que aprendi. Mas porque, por educação cultural e etnia, sou chinesa, descobri intuitivamente que algumas premissas na forma de análise, pontos de partida para iniciar os trabalhos, não se aplicavam à nossa mente oriental, ou talvez para formas  de pensar que se aproximam e inclinam no sentido do pensamento oriental. Nesse sentido, é mais difícil de fundir os dois.
ACJ: O que a fez escolher Lisboa, entre tantas cidades na Europa? E depois Alfama... estou verdadeiramente curioso.
V.O.:Porque nasci em Macau antes da transferência de soberania, então, naturalmente, sou Portuguesa de nascimento. Lisboa faz-me sentir em casa. A forma como a cidade velha se estende para fora, alguns edifícios, as ruas em calçada, a suave inclusão, o calor e sentido de humor das pessoas, bem como, hoje em dia, a diversidade, são acrescentos ao sabor do lugar. A nostalgia atraiu muitos, eu incluída, para os bairros antigos de Lisboa, como Alfama, Mouraria ou Graça, entre outros. Sinto-me, simplesmente, mais segura entre as coisas antigas do que entre as mais novas.

domingo, 6 de dezembro de 2015

A CIDADE CULTA

CHARLES LANDRY

Planeando criatividade, cultura e cidades, muitas vezes leva a visões limitadas e sensacionalistas, em que os criativos culturais são vistos principalmente de um ponto de vista económico. Isto é uma pena, diz Charles Landry, para a cultura é muito mais do que o valor económico ou o aumento das indústrias criativas. Landry apela para que uma cidade a use a criatividade de muitos "para se tornar a melhor e mais imaginativa cidade para o mundo - e não a cidade mais criativa do mundo".
Roy van Dalm

A cultura não é uma transcendência, muito menos uma utopia. A cultura é a estrutura que define o ser, que lhe dá maior abertura, maior capacidade de visão, educação e, com isso, abrem-se as portas às imensas possibilidades e opções que se deparam através do acto de pensar.
Charles Landry, britânico, autor de "A Cidade Criativa", publicada no ano 2000, constitui um manual para planificadores urbanos. Landry vê a necessidade de um pensamento novo e culto e o subsequente recurso à criatividade de muitos para resolver questões importantes da cidade. Não é uma história económica, portanto, mas antes uma chamada para uma visão cultural mais ampla.
Sucede que uma das verdades menos consideradas é que ignorância é não se saber que não se sabe, tanto quanto o grosseiro não sabe que é mal-educado. Sendo verdades de La Pallisse não constituem evidências suficientemente assertivas para se constituirem em metáforas do que há a combater.
Charles Landry, como tantos outros, passará por Macau, para um painel integrado no "This is my City", a ter lugar no Centro de Design de Macau.
Diria que é um dos palcos possíveis, mas gostaria, enquanto cidadão de Macau, que Charles Landry e todo o painel, também falassem para toda a cidade, via televisão. Gostava que houvesse em Macau um Centro do Pensamento Contemporâneo, que precede e alimenta a criatividade, rasgando-lhe horizontes em permanente diálogo.
A cidadania não é um B.I.R. nem uma burocracia que define o permanente e o temporário. A cidadania é, também, a chamada dos mais habilitados, independentemente da proveniência, raça ou credo, para integrarem a cidade desejada, ainda por acontecer.
Carles Landry passará por Macau. Quanto do seu saber será aproveitado?
Já por mais de uma vez tive oportunidade de escrever que uma cidade é um organismo vivo, orgânico, um lugar consequentemente holístico, onde uma acção se repercute em todo o tecido urbano e humano.
Macau tem todas as possibilidades, ainda, de se converter numa cidade criativa, se houver visão e vontade política.
Não existe, infelizmente, na desumanização da cidade, uma teia de afectos que até Confúcio prescrevia. Existe apenas o egoísmo da sobrevivência, o todo excessivo, seja na construção, seja no trânsito, ou nas ruas tornadas metáforas do caos.
O contexto singular de Macau, característica antiga que situa ainda hoje a cidade ao nível da excepção e não da regra, radica fundamentalmente o seu estatuto numa relação de conveniência pragmática, compromisso que permitiu a consolidação da sua essência conjugadora entre dois mundos.
A nova realidade de Macau é um processo ainda por concretizar na definição política que lhe foi conferida, de centro mundial de turismo e lazer. Só o poderá ser verdadeiramente se a amálgama de todos os problemas urbanos forem resolvidos, se existir uma matriz estruturada para acolher este desígnio.
Perante esta indesmentível constatação, importa extrapolar um conceito que há mais de duas décadas venho defendendo, tendo em conta que uma parte da população de Macau é transitória:
o da consolidação de um polo referenciador e aglutinador das diversas comunidades em presença e que tenha como referência a percepção da Cidade, a relação supra-linguística, a recíproca interpretação cultural, num processo de plena abertura para com o Outro, tanto naquilo que o assemelha como naquilo que o distingue.
É na teia de relações e afectos ainda improváveis, que a Cidadania – enquanto também identidade – se pode consolidar na sua plenitude, permitindo então a aplicação plena da abordagem cultural na Cidade Criativa.
A questão da cidadania sempre me foi particularmente cara pelo que comporta de implícito compromisso, e também porque Macau, integrado no segundo sistema, tão inteligentemente concebido por Deng Xiao Ping, constitui parte integrante. Vislumbro aqui a formulação do segundo sistema como um acto de política eminentemente criativa, inicialmente destinado, como se sabe, a operar a progressiva transformação do interior da China pelo efeito de capilaridade de que a criação de zonas económicas especiais e de regiões administrativas especiais, todas situadas na orla marítima, são instrumentos fundamentais.
Porém, cidades como Shenzhen, nascidas do nada, já desempenham importantes papéis no que toca à estruturação urbana, cívica e de experimentação que urge observar e reflectir.
Se o figurino urbano de Macau mudou radicalmente desde a sua criação, a sua essência de cidade-estado mantém-se subjacente e inalterada, independentemente do seu estatuto político. E é neste figurino que se joga o êxito ou insucesso não apenas da organização da cidade, mas da interpretação e cumprimento do desígnio que Pequim outorgou à R.A.E.M. Ou seja, ou a cidade se torna globalmente culta ou os designios não se concretizam, porque a cultura é o pressuposto fundamental. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

ATURDIMENTO E VAZIO


Passado o tempo de choque causado pelos ataques a Paris, eis que a cidade das luzes é palco da Cimeira do Clima, neste mês de Dezembro.
Por aqui também faria jeito uma cimeira sobre cidades e cidadania, sobretudo quando Charles Landry está prestes a chegar a Macau. Não se deveria deixar passar a oportunidade da visita deste especialista em cidades criativas.
Este último mês do ano surge agora também ameaçador para quem tinha passes mensais de parques de estacionamento, agora descobertos como ilegais pelas entidades competentes. O efeito foi de total aturdimento. Os ouvidos a zunir e, em redor, o caos junto à incredulidade.
Cidadãos foram despejados de um parque de estacionamento que emitiu passes mensais posteriormente a 2009, o que para mim constitui uma estupefacção, porquanto não entendo nem consegui encontrar a razão da discriminação de datas e parques de estacionamento, a razão de o terem feito, porque só agora foram descobertos. Há um ditado que diz "ou há moralidade...".
Há nisto tudo uma impreparação clamorosa, um improviso total, porquanto em 2009 já devia ter soado o alarme quanto ao número de veículos em Macau.
Foram precisos mais oito anos para que se tomasse a iniciativa de desalojar os portadores dos ditos passes sem que se conheçam quaisquer medidas para estancar o dilúvio de automóveis que continua a inundar a R.A.E.M., além da extrema poluição, consequência mais do que natural.
Parece que a tudo isto preside uma lógica que, ou é a da batata ou a do inhame, conforme gostos e paladares, porquanto, para além de retirar benefícios aos cidadãos em nome de uma eventual "moralidade" que apenas existe na cabeça de algumas sumidades científicas propensas a sorteios e afins, redundou no aumento do custo do estacionamento para MOP6.00 por hora, o que significa que o trabalhador normal pagará dez horas por dia, aproximadamente, qualquer coisa como MOP60.00 diárias.  Como resultado, pude constatar que em plenas 15:00 horas, um dos parques apresentava 115 vagas para automóveis e 130 para motociclos. O panorama é radicalmente diferente, com enormes espaços desocupados por quem não pode, ou não aceita, pagar somas tão avultadas.
Perguntar-se-á a quem, verdadeiramente, beneficia esta medida. Seguramente não é aos cidadãos, únicas vítimas de tais luminosas ideias. Ora, não beneficiando o cidadão, alguém tirará lucro, se os automobilistas estiverem pelos ajustes ou forem obrigados a pagar por hora MOP6.00. Afinal, estamos num mercado libérrimo, onde até a asneira é livre.
Entretanto, e porque depois de Kyoto, a cimeira de Paris ainda não decidiu sobre o futuro dos combustíveis fósseis, o nosso mercado livre vai deixando engrossar a fileira de automóveis e motociclos, e o nível do caos que é o trânsito, e o veneno que é a poluição do dióxido de carbono, que mata que se farta, mas andam todos distraídos com outros malefícios.
Tudo isto me traz à mente o conceito budista do Vazio. "Uma taça só tem utilidade quando está vazia". Transpondo para a realidade que este escrito aborda, creio que o princípio, ainda que não budista, é o mesmo: esvaziar para encher.
Seguramente estamos no plano do aturdimento e do vazio.