domingo, 29 de março de 2015

CONCRETIZAÇÕES


A vida é, em si, uma concretização cujo corolário está no Cartesiano Cogito Ergo Sum. Penso, logo sou.  É neste acto, nesta condição da existência que nasce a premissa primeira para a antecâmara da realização. 
O homem existe por uma razão, trabalha não apenas para se manter mas para justificar, perante si mesmo, a sua condição de ser.
É aqui, neste espaço de virtualidades e virtudes várias que cabem os edificadores, os construtores de algo. Lee Kwan Yew, na Ásia, foi um deles, na edificação da sua Singapura.
O que caracteriza existências como a do primeiro dos primeiros-ministros da cidade Estado, advogado brilhante, estudante de Fitzwilliam College, Cambridge, é a indispensável bagagem cultural. É um pensamento orientado para uma causa e, consequentemente, um ordenamento mental, uma estratégia que vem desembocar numa ideologia que, neste caso, transformou Singapura, em apenas 30 anos, num dos dragões da Ásia e numa cidade-modelo com influência britânica, que Lee, descomplexadamente, não renegou.
Não posso dizer que Singapura, as proibições e as canas à velha escola inglesa me atraiam. Porém, não posso deixar de constatar, pelas vezes que lá fui, a existência de uma soberba organização cívica, um ordenamento, urbano, viário e mesmo humano, exemplar que quase raia a esterilização hospitalar. Resultado da visão de um homem levada ao seu ponto mais extremo. E isso merece todo o respeito, como tem vindo a ser demonstrado internacionalmente.
Cogitar é o primeiro e mais importante passo que reclama os seguintes, o delineamento de uma ideia e o da sua concretização. Lee foi igual a si mesmo, conseguindo concretizar o seu pensamento e subsequentes passos.
Daí que a concretização seja um processo, apanágio dos determinados, dos audazes, daqueles que ousam fazer da existência algo mais do que simples acto vegetativo.
Se Lee Kwan Yew deixou um legado em Singapura, deixou sobretudo uma identidade num universo multi-racial, convergente no orgulho de ser cidadão da cidade-estado.
Em tempo de discussão das Linhas de Acção Governativa para Macau no corrente ano, há planos, ideias, projectos e desafios que se levantam e se não podem perder de vista no meio das minudências com que alguns deputados se entretêm àcerca do sexo dos anjos. Um desses desafios é, sem dúvida, a concretização de uma diversificação económica. 
Existe uma evidência incontornável: os 31 milhões de visitantes que nos afogaram em 2014 vieram, na sua maioria, por causa da maior indústria de Macau e do comércio que lhe está associado - lojas de produtos de luxo e de venda de ouro. Há depois uma outra indústria, a que chamarei de especulação imobiliária, que funciona como alternativa aos baixíssimos juros de depósitos que a banca do Território oferece, inferiores à inflacção. Já aqui se falou das Indústrias Criativas, apenas um projecto por concretizar. 
Resumidamente, não é muito saudável a economia do Território, apesar das abundantes receitas. A diversificação é muito mais.
Este cenário que se oferece à população deixa algumas interrogações, que as perspectivas de investimento na ilha de Henqin não calam, nem as ainda pouco esclarecidas possibilidades de desenvolvimento nas zonas abertas do Delta do Rio das Pérolas. 
Hoje, mais do que nunca, e tal como em 2002 escrevi, o conceito de criação de riqueza está cada vez menos interessado na manipulação de bens materiais ou mesmo de serviços. A transformação de dados em informação e a sua consequente manipulação e valor acrescentado estão na directa proporção com os factores de competitividade que se deslocaram de recursos físicos e imóveis, como o carvão e o ouro, para a nova era do poder criativo e da imaginação.
O conceito de ciclos vitais está em transformação. As sociedades vão-se distanciando do velho sistema de educação-trabalho-reforma, para uma era de maximização de recursos assente numa aprendizagem contínua e no aproveitamento de todas as idades. Isto é, nem os jovens nem as mulheres nem os velhos podem ser descartáveis. Pelo contrário, a cidade imperativamente criativa comporta o aproveitamento e inserção de todos, como elementos integrados na rede de eficiência que se pode vislumbrar como óbvia.
O conceito de tempo transformou-se, com comunicações instantâneas, em tempo-real através de diferentes fusos horários, trazendo com a sua emergência mudanças de padrões de trabalho, comércio e tempos livres. 
Como Macau estará a aproveitar estes factores temporais é uma das muitas questões que ficam no ar, aguardando a definição de um plano quinquenal com objectivos muito concretos e concretizações que, estou certo, a população vem aguardando, e que poderão ajudar a encontrar alternativas para a desejada diversificação económica.

terça-feira, 24 de março de 2015

ÀS VEZES


Por desígnios da Natureza, o Equinócio deu-se e, assim de repente, a Primavera quer florescer, não se sabendo bem onde, neste recanto com mingua de canteiros.
E quantos terão visto o eclipse? Com o capacete que por aqui paira, o sol é uma metáfora. Mas, quantos se terão perguntado como isto tudo, não sendo do dono disto tudo, é tão profusamente natural, cósmico, universal? E no entanto, sendo-o, opta-se pela parte em vez do todo.
Aí, onde não há som nem gravidade, onde tudo permanece impassível seguindo a ordem natural, não chegam notícias dos eventos deste planeta e, mesmo que chegassem, não chegariam. O verdadeiro Universo é uma indizibilidade com as suas convulsões próprias que se desassemelham ao que se passa neste pequeno planeta que habitamos, poucas de origem natural, demasiadas de origem humana.
Vivemos atolados em nós, nos universos que edificamos, no histriónico que abafamos, no desprezo pela sorte que temos, quase sempre ingratos. E assim, neste nosso pequeno planeta onde, por vezes, se questionará a humanidade dos humanos, pequeno mundo cosmocêntrico, míope, que insistimos em mais o apequenar, enquanto a vida percorre as idades todas, uns aproveitando-a outros nem por isso.
Sobram palavras espalhadas pelo chão, desperdícios de vidas dos subúrbios de tantos lugares pintados de silêncios, tão óbvios quanto as omissões praticadas por gentes que vivem abertas dentro de aquários dourados, borbulhando intenções inconclusivas.
Isto é o mundo que nos rodeia, como a água rodeia ilhas e, apesar disso, há nesse mar uma frieza que arde na pele, como a indiferença do género humano, pontilhada aqui e ali por encontros e momentos onde a luz da empatia alumia bruxuleante e fugaz, projectos de esperança.
E no entanto, nada disto atinge o que quer que seja senão os próprios. Tudo o resto permanece ignaro, distante, impassível e indiferente. Porque tudo é uma subjectividade, uma relatividade e apenas isso.
Talvez a Primavera traga no vento sementes de vontades em tudo fecundar e, assim sendo, possam germinar realidades concretas que tragam a este lugar a fertilização das esperanças que tantos almejam, para que às suas vidas se acrescente alguma qualidade, felicidade maior que aquela que lhes é dado ter nesta urbe antiga e acolhedora.
Por ora, enquanto a esperança persiste, o governo prepara-se para anunciar as intenções das suas linhas de acção, enquanto poetas e escritores falam para uma audiência que se desejaria maior, não fossem outras concorrências levarem gente para outras bandas, perante a impassibilidade do todo.
Às vezes a Primavera é assim.

terça-feira, 17 de março de 2015

A CARTILHA


Neste húmido mês de Março, servido por uma frente fria, a cidade, com o nevoeiro que a invade, nem se reflecte nas águas pouco transparentes e lodosas deste braço do delta, num momento em que se vertem ao conhecimento do público algumas decisões para enfrentar o grave problema do excesso – sempre o excesso – da imensa população automóvel e outros veículos, que foi invadindo, impune e desregradamente, a cidade até ao pejamento e total insustentabilidade. 
Durante todo este processo de importação de automóveis, que se estendeu por anos, não se vislumbrou – por parte, supostamente, da DSAT – qualquer medida capaz de evitar o descalabro existente, que, além do pejamento, da tremenda poluição, conduziu à autêntica lotaria que é encontrar um lugar de estacionamente na cidade. 
Mas compreende-se todo este processo de necessidade de aquisição, de mostrar poder de compra. Compreende-se a necessidade de, à falta de outros objectivos, ostentar. Uma margem, muito marginal, de habitantes busca o sonho do estatuto, e nada melhor que a equação entre a falta de espaço e a cilindragem de alguns automóveis – que já não são poucos – para se perceber quanto de novo-riquismo infesta esta velha e bela urbe.
Cruzei-me com um Ferrari negro, de tinta fosca, possivelmente para mostrar o vanguardismo do fascinado dono, que se passeia em segunda e atravessa a ponte em terceira. Mais além um BMW topo de gama, também negro fosco (ele há modas que sim), entalado como eu no trânsito. Pouco depois, passou por mim um Mazda desportivo rubro, dois lugares, ronronante, a ameçar velocidade. Acolá um Bentley negro, silencioso.
E por esta cidade, que tão excelente seria se passeada a pé, sem pressas, em sintonia com as temperaturas que lhe presidem, perpassam estas peculiaridades de quem, à maneira do Macaco Nu, de Desmond Morris, não tendo mais que mostrar, exibe o carro.
De entre o nevoeiro que se abateu, ainda assim se vislumbram as metades inferiores dos prédios, não se sabendo quantos têm parques de estacionamento ou são portadores da tecnologia de papelão, nem se alguns dos autores serão porventura chamados a depôr sobre as novas técnicas de construção, antes que a natureza, que tudo comanda, pense em despir certas paredes ao primeiro abalo.
Estamos num mês do faz de conta. Não chove nem faz frio ou calor. Mas este mês dedicado a Marte, que se entretém mais para o Oriente-Médio, vai revelar também quais as linhas da acção governativa desta nova equipa executiva. Muito se espera e muitas são as expectativas sobre as soluções a apresentar para resolução dos problemas que mais afligem a população que, segundo sondagens recentes, passam prioritariamente pela habitação e transportes.
Mas Março foi, é e será ainda montra para outros importantes eventos, como a inauguração da instalação da portuguesa Joana de Vasconcelos no MGM, o "Carnevale" dito Veneziano do Venetian, e o Festival Literário Rota das Letras, a arrancar com a apresentação d"Os Rapazes dos Tanques" de Adelino Gomes, que também por Macau andou nos tempos heróicos da TDM. 
Tirando o capacete plúmbeo que nos toca a todos,  ressalta o facto de os dias deste tempo de transição serem todos muito iguais para muitos, sobretudo para aqueles cujo prazer máximo é rodar sonora e desmedidamente de madrugada, sendo indiferentes ao que realmente importa, enquanto as águas do delta correm silentes para o mar, também indiferentes às desmesuras dos homens, a ambições, ódios, afectos ou simplesmente omissões.
Para que tudo fosse algo diferente, importava que as LAG trouxessem consigo uma verdadeira reorganização urbana, uma Cartilha para o Mando e para os Cidadãos, na certeza porém que as águas do delta continuarão impassíveis, apesar de os vivos se esquecerem vezes sem conta que a Memória não é deferência, antes a obra que deixarem atrás de si.  Vem numa Cartilha.

terça-feira, 10 de março de 2015

DOIS ESCRITOS


1 VIVÊNCIA E CONVÍVIO 
António Conceição Júnior

São dois amigos meus, nenhum deles desta zona do mundo, que gostam desta cidade e de fruir o prazer do convívio, assim como que uma transferência de referências e interesses para outros planos, latitudes e longitudes, para retornar sempre a este lugar.
Macau é o apelo, o sortilégio que os faz regressar regularmente, prenhes de mundo e de olhos brilhantes de interesse por todas as poéticas que nos rodeiam e que, não poucas vezes, passam despercebidas aos olhos das gentes de aqui e de outros lados, quando imersas na cadeia produtiva do quotidiano.
Saboreio as horas que passamos juntos, fruindo da amizade e empatia que percorre a mesa e quem se senta nela. Um é fotógrafo de renome, o outro, com mais de setenta anos, antropólogo, estudioso das migrações espanholas. A conversa desfia por entre mundos partilhados, olhares complacentes para os distantes tempos da juventude, de mistura com a boa cozinha portuguesa de que eles tanto gostam.
A idade traz destas amizades que a distância apenas acentua pela qualidade da fruição.
As partidas e as chegadas mimam a própria mecânica da vida. Alegria à chegada, tristeza pela partida.
Cada reencontro é como um novo ciclo que se inicia, porque compartilhar memórias, experiências e diferentes vivências sempre enriqueceu. Foi também por isso, pela postura de abertura ao Outro, pela aceitação da diferença, que os Tang representaram o Renascimento chinês, numa altura em que a Europa ainda estava na Idade Média. Foi também por uma visão empreendedora que os americanos desenvolveram uma política de acolhimento para a excelência. Foi assim que I.M. Pei se tornou o arquitecto que é, com a sua pirâmide no Louvre ou, entre outros, o Centro de Ciência de Macau. Do mesmo modo, entre milhares de exemplos, António Damásio, neurocientista e autor do "Erro de Descartes", entre outros títulos, é professor na University of Southern California.
Recentemente, na R.P. da China, Álvaro Siza Vieira ganhou, de parceria com Carlos Castanheira, o prémio "Archdaily Building of the Year 2015" com o seu esplêndido trabalho em Huaian, o "Edifício sobre a Água".
E porque as palavras são como as cerejas e estas como as ideias, tudo se interliga e conota para se compreender que a excelência é, em si, também uma das formas pelas quais se expressa a qualidade de vida.
E se o convívio com aqueles homens bons me deixou um sabor acentuado a excelência, o pós-convívio acentuou-me a vontade de reflexão.
Tenho-me vindo a aperceber que se vem acentuando, em alguns sectores da vida do território, a arte de mimar, penso que a mesma é atribuível, muito provavelmente, à falta de capacidade de inovar. Esta tendência camaleónica, no óbvio sentido da imitação, não raras vezes termina em actos que recordam produtos contrafeitos.
Não sei se é ânsia em obter "sucesso de corista", como afirmou certa vez em Macau Eugénio Andrade, se é do déjà vu, mas circulam por aí, em alguns círculos da sociedade, ideias gastas, palavras compostas cujo único brilho vem do excessivo uso que se lhes dá.
Sabe-se que a cópia é das primeiras formas de aprendizagem. As crianças copiam os gestos, balbuciam as palavras que ouvem, procurando reproduzi-las, mais tarde fazem cópias de textos num processo de aquisição de conhecimentos que, supostamente, não deveria parar, sem tirar espaço à criatividade e à inovação. Mas, neste caso, julgo que tanto se pára como se regride sempre que se mima ou copia desorientadamente.
Felizmente, a par da cópia, também em círculos da sociedade civil, surgem exemplos de consubstanciação de qualidade, como é o caso da Rota das Letras. Este evento de grande importância cultural para todo o Macau, enquanto significante de criatividade, cultura e organização de qualidade, que junta as duas línguas oficiais de Macau bem como seus autores, faz convergir as atenções para as questões culturais que tão importantes são para a apreensão da Excelência.

2 DO ÓBVIO DA EXCELÊNCIA
A excelência constitui, por si, a mais perfeita forma de realização de um objectivo.
Olhando em redor, há que reconhecer que a proliferação inicialmente desordenada de casinos criou anti-corpos nas consciências mais críticas e exigentes. Porém, uma reflexão mais aprofundada e despida de preconceitos leva-me à conclusão de que os seus hotéis, restaurantes e serviços representam o paradigma de qualidade pelo qual se deveria reger toda a actividade do Território. Isto é, por vezes o óbvio está tão à nossa frente que nos escapa.
A qualidade do serviço, do bilinguismo ou trilinguismo disponível, a vinda de experimentadíssimos gestores que seleccionam os melhores quadros intermédios entre locais bilingues ou na região administrativa especial vizinha, tornam-se incontornáveis exemplos de excelência, porque os padrões que regem esta área de prestação de serviços tem normativos e exigências que colocam os funcionários destes serviços num nível de comportamento e treino acima da norma de Macau.
Sendo incontestável paradigma de gestão, de serviço ao cliente, de higiene, de exigência e de salários atractivos, a excelente hotelaria de Macau - inevitavelmente associada aos casinos - sua restauração e serviços de suporte, bem podem servir de exemplo para a qualidade de serviços em Macau e consequente aumento da qualidade de vida.
E isso aplica-se também na organização de eventos ao nível do que de excelente há no entretenimento, como House of Dancing Water ou Cats, inúmeras novas salas de cinema ou, a nível do desporto, com combates de boxe organizados dentro dos parâmetros do Showbiz americano e eventos culturais como a instalação de Joana Vasconcelos, que só encontram paralelo na organização local do Grande Prémio, sob a cuidadosa supervisão da F.I.A. e do Festival Internacional de Música de Macau.
Perante a excelência dos serviços aludidos, ocorre prontamente a necessidade de valorizar e elevar em muito a qualidade dos serviços locais, sejam da Função Pública ou do sector privado.
Assim, ocorre-me que seria extraordinariamente útil para Macau, que se criassem cursos no I.F.T. no âmbito da gestão de recursos humanos, de apresentação, comportamento e boas maneiras, destinado não ao pessoal da chamada Linha da Frente, que merece todo o aplauso, mas ao nível das pequenas e médias chefias cuja ascensão à compreensão dos mecanismos e lógicas da gestão e dos recursos humanos em muito iriam beneficiar o Território e a eficiência não apenas dos serviços públicos mas também privados.
Se revisitarmos a qualidade dos táxis e do modo como os condutores trajam e se comportam - 352 casos autuados na primeira semana do ano - fácil é compreender que, em conjunção com os autocarros, e com as baixas percentagens gastas dos orçamentos espelham o baixo nível de educação e a baixa qualidade de vida existente, se comparados com o geral da realidade do know how da hotelaria e restauração de qualidade.
Factualmente, é incontornável que os melhores hotéis de Macau representam a qualidade das instalações, do serviço, da eficiência, e da necessidade de uma auto exigência. Porque este parece ser o modo como se poderá fazer a valorização do funcionalismo público, do respeito interno pelo direito ao conforto e à limpeza.
Tudo isto faz também parte da expectável qualidade de vida de Macau, a Excelência em tudo, para a eliminação de diferenças.
Tal significa também, e inerentemente, que há que implementar ou fazer cumprir todo o tipo de legislação ao nível do acolhimento, higiene de todos os serviços em Macau.
A qualidade que se espera e deseja, exige uma completa e profunda valorização de toda a vida citadina, que se não compadece, por exemplo, com os despojos que certos restaurantes lançam para a rua. Educação cívica precisa-se.
Voltando à Excelência, mesmo com o previsível preconceito do jogo, é preciso reconhecer que removido este da nossa mente, se poderão reconhecer paradigmas à mão de colher e de semear. 

terça-feira, 3 de março de 2015

OS MANDARINS


Na China antiga existiram exames imperiais desde os Zhou (c.1046 – 256 AC).
Foi Confúcio (551 - 479 AC), ainda na mesma dinastia, através da sua formulação do conceito de Homem Superior, o verdadeiro Homem Nobre,
Jün Zi
君子, em alternativa à mera nobreza de sangue, quem consolidou a fórmula dos exames imperiais para acesso à classe dos burocratas, futuramente designados por Mandarins. Poderiam vir de todos os cantos do império, mas teriam de saber de cor os Quatro Clássicos para se candidatarem à ambicionada carreira do Mandarinato, composta por aqueles que Confúcio definiu como Homens de Mérito.

Se o foram não se poderá afirmar nem confirmar, já que as autobiografias e outras grafias têm esse objectivo de adulterar verdades, mas desde pequeno que ouço a expressão chinesa "olhar a cadeira antes de tudo", que é como quem diz, "proteger o seu lugar".

Ora sucede que o conhecimento, mesmo que aprofundado, dos Clássicos, não outorgava aos mandarins conhecimentos mais do que generalistas.

Estes funcionários tinham, por vezes, um conselheiro chamado Shi Yé, bajulador que os chineses apelidavam de "boca de ouro", cujo principal papel consistia em insuflar o ego do chefe e engendrar planos para benefício do amo e seu próprio.
Guanxi, assim se designa, ainda hoje, na sociedade chinesa, a ancestral rede de "contactos e ligações" que cada um constrói e possui, e com as quais joga. É através do Guanxi que o emigrante escolhe o lugar para onde vai. Primeiro busca alguém da sua aldeia, do seu distrito, da cidade mais próxima da sua aldeia e, assim por diante, e se criam laços de empatia regional e de entreajuda. Assim nasceram, pelo mundo, muitas China Towns.

Os mandarins de graus mais baixos eram os mais propensos, querendo ascender, a olhar pela sua "cadeirinha" de pequeno poder, generalistas que eram, incultos para lá dos Clássicos e da caligrafia, indiferentes ou ignaros do gosto pela astronomia que Qianlong alimentava. Muitos deles, pertencentes já aos graus que lhes permitiam frequentar a corte dos Ming, detestaram a presença de Matteo Ricci e, mais tarde, com os Qing, foi Castiglione o alvo, porque ambos eram diferentes, cultos e porque lhes podiam fazer sombra. Nada de novo sob o céu.

Curiosamente, Qianlong gostava de conversar e ouvir Matteo Ricci, o que era causa de considerável desconforto naquele grupo anquilosado, que tradicionalmente cultivava o servilismo, cumprindo farisaicamente os Ritos, além do cuidado com os seus guanxi.

Tais práticas, contrárias à definição confucionista de Homem Superior, iriam necessariamente conduzir ao desgoverno do Império do Meio, tal a confusão que reinou por debaixo do manto da Paz e Harmonia. O exército  tornou-se obsoleto, e a própria Cixi, imperatriz Regente, usou caprichosamente o orçamento da marinha para construir o Yihe Yuan, o Palácio de Verão, com o seu famoso barco de mármore.  

Tempos de decadência, esses, em que a Regente insistia em ignorar que o seu povo estava minado pelo estupefaciente vendido pelos bárbaros e que teve, como consequência, a cedência de território após duas humilhantes Guerras do Ópio.

As ideias republicanas do Ocidente, trazidas por Sun Yat Seng, agitaram as águas dos patriotas e propiciaram à inevitável queda dos Qing, para que uma outra estrutura se pudesse erguer e, dando lugar à longa marcha, finalmente, fazendo recuperar o orgulho, a riqueza e o prestígio da nação, hoje aberta como no tempo do Renascimento Tang (618 - 907), quando estudantes de Confúcio, oriundos da Coreia e do Japão puderam, eles também, ser funcionários em Chang An.

Sempre que vícios antigos, casados com a ignorância – esse não saber que não se sabe –ressurgem, a tentação dos que cuidam das suas cadeirinhas e dos seus pequeninos poderes, sem conhecimentos tanto dos velhos Clássicos como do pensamento contemporâneo, é  a de vestirem os mantos da conveniência para ocultar insuficiências abundantes.

Hoje sabe-se quão anacrónico é o mandarinato e sua bafienta burocracia, aliada da velha máxima "se nada fizeres, nenhum mal te acontecerá", causadores do enfraquecimento do país. 

E no entanto, ignorando-os, a terra gira, o mundo pula e avança, e tudo acontece sem que, no seu pequeno mundo, dêem sequer por isso.

Aprendida a lição do Passado, é imperativo que, sem guanxis, seja o mérito, a competência e a eficiência a presidirem ao Presente.

Estou certo que o virtuoso Zheng Guanying, Mandarim e autor de Shengshi Weiyan (Advertências em Tempos de Prosperidade), antigo dono da hoje chamada Casa do Mandarim, concordaria.