Das artes do fogo, a cerâmica, o vidro, a
joalharia, e a cutelaria, a primeira
transporta uma carga eivada a ocidente de uma ancestralidade que remonta ao
Livro do Génesis e ao sopro divino.
Marta Cristina Carvalho nasceu
em Coimbra, em 1964. Entre 1986 e 87 obtém um diploma de
moldes para a indústria da cerâmica. No ano seguinte trabalhou na indústria cerâmica portuguesa.
Entre 1988 e 1990 frequentou o curso de escultura da Escola Superior de Belas
Artes do Porto.
Em 1990 lançou-se à aventura e veio
para a Ásia por onde deambulou até poisar em Macau e
aqui trabalhar com designer gráfica.
Em 1993 levanta âncora e viaja para
o Japão onde trabalha com ceramistas nipónicos.
Em 1994-94 torna-se ceramista
residente no Parque Cultural de Cerâmica de Shigaraki.
Em 1995-96, em part-time,
torna-se professora convidada assistente do Departamento de Cerâmica da
Universidade de Arte e Design de Kyoto.
Em 1996, apenas três anos depois de
chegar a Kyoto, na região de Kansai, torna-se ceramista independente, viajando frequentemente para
Macau para expôr e ensinar.
Marta, da leitura da sua resumida biografia e
curriculum nota-se uma grande irrequietude até chegar ao Japão, onde já reside há 22 anos. O que é que a prendeu à prática da cerâmica no Japão?
A prática da cerâmica no
Japão, para mim, quase foi como uma consequência natural de me encontrar na
Ásia precisamente na altura em que, como artista, procurava o meu próprio
caminho e expressão estética.
A cerâmica sempre foi uma constante presença
na minha vida, por ter nascido numa familia com ligações a essa indústria. O
meu pai como geologo encontrou muitos dos existentes jazigos de matéria prima
para a indústria ceramica portuguesa, e muitas vezes me levava em trabalho de campo,onde sempre
havia descobertas de muitos minerais, muitas vezes quartzos raros e outros de
origem muito específica daquela zona atlântica. Desde adolescente passava os tempos
livres trabalhando com esse lado da minha familia que possuia ateliers de
ceramica artistica também. Quando abandonei um curso de geologia para escultura
mas uma vez iniciei a cerâmica paralelamente com um curso técnico, mas sem qualquer intenção profissional, apenas
me era natural poder trabalhar em algum ramo da cerâmica para poder
financiar por alguns anos a universidade onde estudava no Porto.
Acontece que, quando na Ásia,
mais uma vez me tocou a curiosidade de conhecer novas técnicas , materiais e
outras maneiras de ver a cerâmica me levou ao Japão pelo qual tinha um especial
interesse.
Sendo portuguesa,
e com curso de moldes de cerâmica, frequência em cerâmica industrial e curso de
escultura na ESBAP, existe algum vestígio ocidental na
cerâmica que faz desde que chegou
ao Japão?
Começo por dizer que nunca
acabei o curso da ESBAP, pois na altura algo do ambiente académico não me
satisfez como artista, e senti naquela altura particular que tudo o que tinha
para '' estudar'', ou procurar como artista
não precisava de ser numa coisa chamada escola.
Quanto a influências culturais
acho que é impossivel nos livrarmos da nossa cultura e das influências
estéticas e emocionais do sitio que nos fez crescer.
Como tal, e mesmo já vivendo no Japão quase há
tantos anos como os que vivi em Portugal, em grande parte do meu trabalho,
tenho que admitir que possuo uma visão bastante ocidental apesar de tudo. Quero dizer que, mesmo nas minhas peças de uso utilitário a componente
artesanal e tecnologia de materiais, bem como a visão filosófica que os
japoneses têm relativamente aos materiais usados na cerâmica, apesar de ser
importante, não toma no meu caso um papel relevante ou fundamental.
De uma maneira simplista diria que os japoneses vêem qualquer que
sejam as arts and crafts no sentido:
matéria-forma-estética, e o ocidente no sentido: estética-forma-matéria.
O shintoísmo religião
primordial no Japão tem muito a ver com
este fenómeno em minha opinião, mas isso já é outra conversa.
Sendo a cerâmica tão vasta e
complexa em termos de técnicas, materiais e possibilidades desses minerais
serem transformados em algo pela mão do homem, artista ou artesão, acabei por
perceber que não seria nunca um potter
ou oleiro. Isso no sentido em que a
busca de técnicas para conseguir milhares de efeitos derivados de diferentes
barros, cores ou certos resultados nas queimas consome por assim dizer toda a
energia e tempo disponível na vida
inteira de um ceramista. Aperfeiçoar
técnicas exaustivamente a todos esses níveis, nunca foi no meu trabalho o mais importante.
Na realidade a busca na cerâmica para mim é
mais centrada em encontrar uma verdade, uma expressão própria e inerente quase
que universal em qualquer material, como também a madeira terá, outra o metal e
por assim dizer todos os materiais. Então conseguir ultrapassar finalmente o
factor ''os materiais''. Ou seja, o que acontece no meu trabalho muitas vezes
até no mais ''utilitário'' é quase um paradoxo:
na realidade os materiais são tão essenciais quanto pouca relevância
têm. Pode ser um qualquer, mesmo plástico, apenas emergem, este ou aquele, pela
necessidade de encontar uma mais perfeita composição, cor, equilibrio ou
expressão.
Sei que a cerâmica japonesa é altamente apreciada pelos
japoneses, que por ser utilitária não deixa de ser menos artística. Esta atitude e visão contradiz de certo modo
aquele (falso) paradigma ocidental que diz que a arte, para o ser, não pode ter uma utilidade. Quer
comentar?
Esta questão é complexa e só
pode ser vista à luz dum conceito de beleza muito próprio e inato aos
japoneses. Na realidade até na cerimónia do chá, que é onde se atinge o auge deste conceito,
como falo mais adiante, por estranho que pareça, ia buscar tijelas com várias
outras funções e objectos que não eram feitos por japoneses. Muitas tijelas e
escolas de chá usaram e apreciaram tijelas e utensílios até de diferentes
eras na história, encontrados na China e
Coreia.
Isto apenas
prova que não são as técnicas ou tradições de um artesanato japonês, e o
seu aperfeiçoamento ate à exaustão que podem levar a que um objecto seja tido
como de grande valor artistico para satisfazer o conceito de beleza nos
Japoneses.
A existência do conceito wabi sabi, ou os três iis, imperfeito, impermanente, incompleto,
derivado de ensinamentos budistas, e associado a outras influências shintoístas
como a assimetria, simplicidade, austeridade, e sentido de
economia de meios na concepção dos objectos e uso de imagem, criam uma
sensação de intimidade profunda com a natureza.
E é assim que esses objectos, de uma ingenuidade íntegra, criam um
muito particular conceito de
estética, pelo que objectos de uso
diário, podem também ser elevados por tal, ao mais alto sentido artístico.
Além do barro, que outros
materiais utilizas para as tuas peças? Consideras-te
pioneira na utilização dos diversos materiais e na
sua combinação?
Acho que já respondi um pouco a esta
pergunta. Há muitos artistas que combinam materiais, mas sim cada um encontra o
seu caminho e expressão e nesse sentido todo o artista é pioneiro em algo. Uso muito o gesso, que é considerado um
material menos nobre na cerâmica e escultura, pelas suas características de
pouca durabilidade, mas que para mim é um material rico e infinito de
possibilidades técnicas e expressivas. Também uso metal e madeira, e vidro
fundido, não vidro soprado, esse só muito esporadicamente. Combino para
além disso técnicas de gravura e serigrafia em todos esses materiais, sejam essas
impressões feitas depois cozidas a alta temperatura ou não.
Como é a vida cultural no Japão e como se consegue expôr em galerias no Japão?
Acho como um pouco em todo
lado, ou se entra num círculo de galerias comerciais, depois de se apresentar
ou ser apresentado, que fazem contratos com os artistas e os representam, ou se
apresenta o trabalho a galerias para exposições esporádicas e as que gostam
convidam para expôr. No entanto no Japão há uma grande quantidade de galerias
que são alugadas, e artistas que querem estar independentes de horários e
restrições de vária índole por parte das galerias de convite, acabam por uma ou
duas vezes por ano alugar e pagar as suas próprias galerias, no entanto todas
as vendas são na mesma divididas pelo artista e galerista, independentemente de serem ou não alugadas
pelos artistas.
No caso de trabalho mais
artesanal e funcional há uma grande variedade de lojas/galerias que vendem
à comissão fazendo exposição individual
por uma semana ou duas e que depois têm sempre algum stock em exposição permanente na loja
de trabalhos dos artistas que vão expondo ao longo do ano. Mas estas embora
sejam em maior número são no fundo lojas mais dedicadas a peças de artesanato e uso mais comum, pois
faz parte da vida quotidiana dos japoneses usarem louça feita à mão, por razões
de tradição, noção de conforto, noções de estética, etc .
Há depois galerias , no mundo da cultura à
volta da cerimónia do chá que é bastante estanque do resto das galerias de arte
e mesmo artesanato. Todos os instrumentos usados na cerimónia do chá são tidos
como peças fundamentais de todo um ritual e filosofia onde a tijela de chá, por
exemplo, é mais um item, a par de chaleira em metal, colheres em bambu,
instrumentos de queimar incenso ou preparar cinzas para ferver a água etc. etc.
A tijela de chá em cerâmica na cerimónia do chá não é tida como
artesanato, terá de ser sem duvida um
objecto de contemplação já elevado a um outro nível a que o artesanato por si
só não satisfaz, mais perto de um objecto de arte, que tem tanto valor
artístico por si só como a capacidade de criar um ambiente ou um espaço
emocional, mais perto de um conceito existente na escultura e mesmo em muita da
pintura.
Continua ligada a
Macau. Porquê?
Em Macau continuam amigos queridos, e às vezes sinto que existe também um pouco de Portugal aqui à mão de semear. Para além disso encontrei Macau numa fase importante de mudança da minha vida, e como tal voltar, ver as diferenças e, se puder, fazer algo por Macau com alguma exposição ou algum workshop em que possa ajudar com novos conhecimentos e ideias estará sempre nos meus planos e será sempre um prazer.