domingo, 6 de outubro de 2019

O CAOS


No sábado, dia 5 de Outubro, a República Popular da China entregou às autoridades da Região Administrativa Especial de Macau, vulgo RAEM, um dos sequestradores de Jorge Neto Valente, Presidente da Associação de Advogados de Macau que, em 2001, foi raptado por um grupo armado e ferido com um tiro numa coxa.
Curiosamente, esta medida da R.P. da China vem no sentido inverso da contestadíssima proposta da Chefe de Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, àcerca da criação de um acordo de extradição entre a Região Administrativa Especial de Hong Kong, RAEHK, e a República Popular da China, situação que deu origem aos primeiros protestos de cerca de dois milhões de habitantes de Hong Kong.

Porém, e porque este escrito se insere num blogue que poderá ter memória futura, em breve, os chamados democratas – jovens habitantes de uma cidade onde a maioria viveu e vive numa servidão ao sistema liderado pelos grandes capitalistas locais como Li Ka Shing, embalando sonhos de uma casa e uma vida em condições que não têm, courtesy of the British colonial system – dão continuidade aos protestos, agora exigindo democracia e, mesmo, independência para o território.

Breve se tornou numa revolta caótica onde difícil se torna encontrar o fio à meada quando a juventude desce à rua e inicia verdadeiras batalhas campais, destruindo quase tudo à sua passagem, incendiando estações de metro e entrando em guerra aberta contra a polícia. De permeio, canta-se o hino americano, agitam-se bandeiras americanas e dos colonos ingleses e queima-se a bandeira da República Popular da China, a nação tutelar de que Hong Kong faz parte intrínseca.

O caos instala-se quando a razão de qualquer reivindicação se perde pelo uso da violência, tantas vezes excessiva. Após mais de 14 semanas de distúrbios, os jovens democratas de cara coberta, que lançam cocktails molotov contra a polícia, acusam-na de ter ferido gravemente, a tiro, dois jovens, um deles de 14 anos, em consequência do alto grau de vandalismo que as manifestações e os protestos atingiram.

A disrupção do aeroporto

Noutra geografia, por protestos reclamando serviços básicos, empregos e água potável, cerca de 100 iraquianos foram mortos e mais de 4.000 são feridos. Estaremos perante uma avaliação com dois pesos e duas medidas?

Entretanto noticia-se que “A Alta-Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet manifestou preocupação com o elevado nível de violência das últimas manifestações em Hong Kong e frisou que todas as medidas para controlar a situação devem respeitar a lei.
A noite de hoje foi marcada por violentos distúrbios associados aos protestos contra uma lei que impede o uso de máscaras pelos manifestantes.
“Estamos preocupados com o nível elevado de violência atingido em certas manifestações nos últimos dias.
A responsável lamentou os ferimentos sofridos por polícias, manifestantes e jornalistas durante os distúrbios e frisou ‘condenar firmemente todos os atos de violência, venham de onde vierem’.
Questionada sobre a lei que proíbe o uso de máscaras em manifestações, Bachelet disse que ‘qualquer restrição deve ter um fundamento legítimo, respeitar a lei e ser proporcionada’.
‘Na medida do possível, a liberdade de se reunir pacificamente [...] deve ser exercida sem restrições. Mas por outro lado, não podemos aceitar que pessoas utilizem máscaras para provocar a violência’, afirmou.

E enquanto teatros de batalhas entre autoridades e partes da população recebem atenções diferentes pela imprensa internacional, no Iraque pós Saddam morre-se com demasiada facilidade, na Venezuela, Maduro e Guaidó desapareceram da cena internacional, enquanto Hong Kong é o filme do momento, com o mundo à espera que o caos, o ataque ao aeroporto, a destruição de estações de metropolitano e outros actos de vandalismo façam a China precipitar-se para um desfecho que, atrevo-me a alvitrar, não irá acontecer, porque a RPC possui sabedoria milenar e porque sabe que todo este processo acabará por se tornar autofágico.
Só falta saber quem está realmente por detrás de tudo isto, se isto é um jogo de sombras e marionetas, ou se é apenas o que se vê.
Por mim, desconfio. Prefiro esperar para ver...
Entretanto os media internacionais vão escolhendo os próximos destinos da nossa atenção.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O TERCEIRO HEMISFÉRIO


Memória Tua Est Homo

A Memória confere a substância necessária para a compreensão das fundações de um país, de uma família, de um ser.
Sucede que, por circunstâncias várias, inseridas no irretornável plano da não consciência actual, o meu país tem Memórias no Panteão, mas não as transporta no seu DNA.
Confesso-me Português, outro que não europeu, nascido no Extremo Oriente onde se espraia a incompreendida e ignorada extensão da Portugalidade, naquela que foi, por séculos vários, a cidade do Santo Nome de Deus de Macau, tão leal que se recusou a hastear a bandeira dos Filipes.
Convoco aqui as brumas da Memória para dizer que só através delas podemos ser, mesmo na ignorância quotidiana, uma longitude invejável.
Ocorre-me assim explicitar o que é o Macaense, nação de indivíduos tão singulares quanto a história genética de cada um.  Ser-se geneticamente Macaense é somar em si Portugal e as rotas de África, da Índia, de Ceilão, de Malaca e do Sião, e ainda todos os encontros fortuitos com povos com quem se entrecruzou.
Ser-se uma nação de indivíduos, a extensão quase máxima da Portugalidade, a oito fusos horários de distância, com o mesmo sentimento de portuguesismo, tão diferentemente igual ao do recanto onde tudo se originou, é ser-se herdeiro de algo a que hoje se chama multi-culturalismo e que nesta pequena cidade existe há cinco séculos.
Ser-se Macaense é uma condição que considero de excelência, quando dela assumimos a plenitude da consciência, essa de conviver com Platão e Confúcio, com a língua Portuguesa e a Chinesa, e o Inglês, e o Francês. É, desde logo, operar a descodificação das linguagens e das culturas que se mantêm mutuamente exóticas e ignaras. A Portuguesa bem poderia ter centenas de sinólogos e não tem, mas acolhe, deficitária, os Institutos Confúcio.
Ser-se Macaense é ter assistido, passo a passo, à ascensão da China, hoje a segunda maior potência mundial, é ainda conhecer-lhe a história, a estratégia, os ritos e as divindades, o Budismo e o Taoísmo e a importância dos Analectos no edifício civilizacional chinês.
Mas ser-se Macaense é também ser-se objecto da indiferença e do olvido de um país, o seu, que depois do Comércio da Prata abandonou a cidade que fundou para ir garimpar ouro para o Brasil, e hoje se centra no umbigo da sua dimensão Europeia, da sua continentalidade, mesmo quando apregoa o que Luis Vaz escreveu: dar mundos ao mundo a um Sebastião tão desastroso quanto infeliz.
A consciência da Etnicidade Macaense não pode ser percepcionada. Precisa de ser vivenciada no Lugar chamado Macau, com a humildade de quem não sabe mas deseja compreender o sortilégio daqueles que, desde a nascença, falam várias línguas. Esta pluralidade cultural confere a capacidade inata de perceber e conjugar os extremos civilizacionais, quase por intuição.
Cada Macaense é em si desigual, cada família única e singular, e já tarda e arrefece a vontade de compreender a sua potencialidade.
O mundo não é só feito de Ocidente, como a actualidade se encarrega de nos dar a ver e de reduzir à insignificância o potencial do que poderiamos ter sido. Agora já entardeceu.
No actual diálogo Oriente-Ocidente surgem inevitáveis dificuldades de compreensão e entendimento entre os dois hemisférios, excepção feita à ascensão da grande China, já prevista por Bonaparte e lembrada por Alain Peirefitte.
Um dos polos nucleares de descodificação e mediação intercultural residiria, porque lógico, em Macau. Os Macaenses constituíriam, aquilo que sempre foram, a hibridação cultural, o Terceiro Hemisfério, como resposta a Ian Morris na sua “A Vitória do Ocidente” .
Essa falha, talvez mais profunda do que a geológica de San Andreas, esse desaproveitamento e omissão, constituem o maior acto de cegueira depois da visão de Sagres. É a deriva em alternativa à estratégia, saber tão longínquamente cultivado na China, desde Sun Tzu a Zhugueliang, aliás Kong Ming.
Foi essa falta de saber transcultural, essa continentalidade inconsciente da Europa ainda até há bem pouco tempo, que presidiu por longo período aos destinos de Macau, deitando por terra a antecipação à globalização de hoje. Essa mesma falha determinou que os do reino para cá mandados nada soubessem destas paragens, nem a língua, cultura ou costumes.
Depois de 20 anos sobre a transferência de soberania, emerge como inevitabilidade a falta de entendimento de Portugal sobre Macau, resultando no desbaratar de um património histórico e sociológico. Jamais se urdiu uma estratégia de indispensabilidade através da “continentalidade” que seria como um que terceiro hemisfério, o da conjugação.
Dizer que não houve abandono seria mentir para a história, e isso jamais o farei.
É comum dizer-se que só quem sai se torna verdadeiramente grande. De Luis Vaz a Mendes Pinto, Gama a Albuquerque, Pessoa a Pessanha e a Venceslau. Na contemporaneidade a urgência da saída nomeia-se de Damásio a Pomar,  Maria João Pires a Paula Rego, Vieira da Silva a Saramago, Mourinho e Cristiano Ronaldo, todos heróis, como os que os precederam.
Esse terceiro hemisfério que não houve e que já é tarde para haver, foi substituído pela estratégia chinesa para a lusofonia. Resta a amargura de mais uma cegueira.
Interrogo-me sobre o que permanecerá. Vislumbro que apenas o imaterial, porque emula a metáfora da areia, rocha indestrutível porque pulverizada. 
E nesta singular gesta do lugar e da diáspora, da afirmação e da dissolução, sobrevém um vendaval de metamorfoses, formas outras através das quais a história será, apenas isso, Memória.
Nota: Este texto foi escrito originalmente sem fazer uso do novo acordo ortográfico