segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

ANTÓNIO ARESTA

Os saberes da actualidade conduzem-nos a uma reflexão sobre a nossa interioridade, isto é, a interioridade de cada um.

E é confortado que constato que os saberes de António Damásio e Robert Lanza convergem em muitos pontos. Sob as suas batutas direi que a intangibilidade da Memória confere-nos a imaterialidade que se associa directamente à Consciência, essa condição que nos define na relação com o mundo dito material.

É assim que cada fotografia de décadas, que retrata um tempo irretornável, convoca a imemorialidade de cada um – nome que dou ao tempo que precede a existência da nossa própria consciência – por via do legado de memórias indirectamente vividas.

Entramos assim, pela chave da consciência ou do seu legado, no campo da autenticidade. A autenticidade de Macau dos princípios do século XX, ou do século XIX. Uma urbe, herdeira de séculos precedentes, uma matriz urbana e arquitectónica mista, e uma convivialidade entre Macaenses, Chineses e Portugueses os últimos dos quais, por serem poucos e virem de longe, aqui se inseriam, tornando-se, eles também, pela via do afecto à terra, em Macaenses. Desses há a destacar nomes como Camilo Pessanha, Manuel da Silva Mendes e, num tempo subsequente, Hermman Machado Monteiro, Joaquim Morais Alves, José Silveira Machado ou J. J. Monteiro entre tantos outros. Esse processo de enraizamento era único e singular, assente numa  sedimentação iniciada no século XVI, originadora e legitimadora da genuinidade da cidade.

Se é obsoleto o desejo de retornar a outro tempo, essa apiração preenche-nos a Memória, como a desejar que o mesmo ficasse congelado, contrariando o seu fluir e, com ele, as mutações, mais ou menos radicais, que foram acontecendo para além da vontade de alguns. É no capítulo da alteração do espaço envolvente, que fisicamente nos confina, que se encontra a chave da transfiguração que, quer se queira quer não, nos afecta.

Porém a mais importante dos ingredientes é, infelizmente, a incompreensão ou ignorância radical da Multiculturalidade que desde há muito existe em Macau.

Aprofundemos a questão da Consciência, aquele cérebro em forma de panejamento, pintado por Miguel Ângelo na Capela Sistina. Miguel Ângelo Buonarroti sinaliza definitivamente o cérebro como sede da Consciência, isto é, da divindade.

Com Copérnico e depois Galileu, a humanidade deu lentos passos que, para o século XVI, eram heresias proclamar que estava “teologicamente errada” a teoria de que a terra se move. Esse peso da ignorância foi conquistado, mas o peso permanece noutros planos de rotunda ignorância a que já aludi.

Ter consciência da Etnicidade Macaense e da história múltipla de Macau, talvez possa ser só percepcionada , vista de fora, como algo que desperta, geralmente, estranheza, na medida em que conflituará com a percepção que cada um tem de si e da sua circunstância, que é tudo o que define o horizonte do próprio Inconsciente de cada um, remetendo-se tudo o resto para o plano dos clichés ou mitos urbanos que há muito se foram construíndo e consolidando.

Talvez tenhamos esquecido alguns pressupostos, entre os quais o da condenação de estarmos solitariamente enclausurados num corpo material dedicado à nossa percepção das coisas do mundo. Na interpretação do Universo, um elemento essencial já anteriormente referido como Consciência, é peça de um puzzle que o paradigma predominante tem tentado contornar porque não se encaixa num mundo objectivo e materialista, independente e alheio a qualquer percepção da noção disso, anuncia precisamente a pedra angular dos princípios que compõem essa nova teoria que nos revela os aludidos planos do Ciente. Com efeito, e citando o biólogo Robert Lanza que enverada pelos mesmos caminhos de António Damásio, direi que:

- A nossa percepção da realidade exige a participação da consciência.

- As percepções externas e internas do ser humano são dois lados da mesma moeda, absolutamente inseparáveis.

- Sem consciência, a matéria reside num estado indeterminado de probabilidade.

- O universo é perfeitamente ajustado para que haja vida nele, que tem um significado real, já que a vida cria o universo, e não o contrário. O universo é simplesmente a lógica espaço-temporal do ser.

- O tempo não tem existência real fora da percepção dos animais sensoriais. É o processo pelo qual percebemos as mudanças no universo.

- O espaço, como o tempo, não são objectos. São outra forma de compreensão humana e carecem de realidade independente. Assim, não há matriz absoluta da sua própria existência e independente da vida em que os eventos físicos ocorrem.

É em todo este contexto de percepção, que encaro a extraordinária e vasta obra de António Aresta, pessoa que muito estimo e por quem nutro especial Amizade.

Aresta é professor, isto é, alguém que professou, abraçou, aderiu à causa do Ensino, de educar, elucidar, esclarecer, e logo Filosofia. Mas isto não lhe basta. Será antes motivo para se ter lançado para outros planos de interesses, daqueles que nos segredam que não há apenas uma só realidade, mas várias, condicionadas pelas experiências de vida de quem ficou no rectângulo ou ousou saír, como muitos dos nossos maiores.

Mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foi professor em Macau durante onze anos, entre 1987 e 1998, tempo mais do que suficiente para que pessoas como ele, sensíveis, cultas e atentas, sorvessem o muito que por esse Lugar mágico existe.

Será exaustivo listar a sua extensíssima bibliografia de investigador nato e dedicado à Macaulogia. De qualquer modo citarei alguma obra:

A Educação Cívico-Política em Macau, 1989

A inovação Curricular no Ensino da Filosofia em Macau, 1993

Camilo Pessanha, Professor no Liceu de Macau, 1994

O Poder Político e a Língua Portuguesa em Macau [1770-1968]

Um relance legislativo, 1995

Manuel da Silva Mendes e a Poética do Taoísmo, 1995

O Neo-Confucionismo na Educação Portuguesa: Pedro Nolasco da Silva na História da Educação em Macau, 1996

Os Estudos Sínicos no Panorama da História da Educação em Portugal, 1997

José Miranda e Lima: Professor Rágio e Moralista, 1997

Falar Português: subsídio para a história do ensino da lingua portuguesa em Macau (1960-1968), 1997.

Monsenhor Manuel Teixeira e a História da Educação em Macau, 1998

Benjamim Videira Pires, um educador português em Macau, 1999

A Educação Portuguesa no Extremo Oriente, 1999

Joaquim Afonso Gonçalves, Professor e Sinólogo, 2000

O Professor Luís Gonzaga Gomes e a divulgação pedagógica da cultura chinesa, 2001

Manuel da Silva Mendes, Professor e Homem de Cultura, 2002

Álvaro Semedo e os exames na China Imperial, 2010

A Professora Graciette Batalha, 2010

Camilo Pessanha, 2011

Cinco Figuras do Diálogo Luso-Chinês em Macau, 2012

Figuras de Jade: os Portugueses no Extremo Oriente, 2014

Álvaro Semedo, 2015

D. Arquimínio Rodrigues da Costa, Bispo de Macau [1976-1988], 2016

Macau Histórico Cultural, 2016

Um filósofo em Macau no século XIX (Francisco Severino Rondina) 2016

Manuel da Silva Mendes, 2017

O Pensamento Moral de Leôncio Ferreira, 2017

Figuras de Jade II, 2019

 

A importância da investigação de António Aresta coloca-o ao mesmo nível de Manuel da Silva Mendes, com a diferença de que, tendo António Aresta saído de Macau, não só não permitiu que Macau dele saísse, como tem estado em Macau em toda a sua extensa obra.

É sempre de fora que as realidades surgem mais nítidas, porque os actores não se podem observar, apenas os espectadores e os investigadores.

E a investigação sobre Macau apossou-se de António Aresta, calcorreando pela investigação e subsequentes palavras, ruas, calçadas e vielas das histórias que compõem a História de Macau, esse Lugar onde a Miscigenação tem sido uma constante e o Macaense uma nação de indivíduos, todos geneticamente diferentes e todos iguais, e onde as milhares de narrativas se acumulam aos personagens, tantos, que é difícil enumerá-los.

Macau foi e é o paradigma do multiculturalismo, muito antes da existência do vocábulo que a aldeia global nos trouxe. O Macaense foi ao longo dos séculos o verdadeiro embaixador, portador, e usufrutuário da cultura portuguesa que soube legitimar, tornando-se o elemento conjugador, ambivalente, habitante de uma Cidade cujo sortilégio é indizível, mas cujo apelo se fixou em homens como António Aresta, inteiramente comparável a um outro homem do Norte, Manuel da Silva Mendes. Corremos o risco de entrarmos pelo plano da mitografia. Mas mesmo resistindo a ele, é imperativo reconhecer hoje o futuro daquilo que António Aresta é: uma voz fundamental para a historiografia de Macau, porque um investigador é um arqueólogo que navega nas águas da história e António Aresta é um navegante de alto mar.

A obra que já realizou, e onde se patenteia um rigor e uma riqueza histórica no resultado da pesquisa, alcandora-o a um lugar superior no plano dos pesquisadores e autores da Macaulogia, não apenas na qualidade como na quantidade da obra produzida.

Assim, fazer a apresentação de uma obra de alguém como António Aresta é tarefa ingrata porque esgota a adjectivação. Porém uma obra que continuamente se desenrola constitui uma esperança do aprofundamento e enriquecimento dos saberes sobre Macau, acabando por se constituir, involuntariamente no melhor do seu próprio elogio pela intenção, pela investigação e pelo alcance desta, porque é obrigação de todos saber que se trabalha sempre sobre o Passado para o Futuro, mesmo que o primeiro usufruto seja o Presente.

O meu interesse pelas culturas orientais, nomeadamente a Chinesa e a Nipónica, levam-me a acreditar que o muito está no pouco e que o maior dos elogios à obra de António Aresta não reside nestas modestas palavras, mas na certeza que tenho de que a sua obra transcenderá, em muito o devir, e será esse o maior elogio e reconhecimento para com António Aresta.

A este meu distinto amigo, resta-me humildemente dizer obrigado pela sua obra, e pelo futuro que vejo para ela, e ao Instituto Internacional de Macau, o meu aplauso pela visão de dar ao futuro a forma material neste nosso presente.