terça-feira, 28 de abril de 2015

ALTERIDADE



Quase sucessivamente, Yao Feng, pseudónimo do poeta e professor Yao Jing Ming, lançou no auditório do Consulado Geral de Portugal as suas "Palavras Cansadas da Gramática", da editora Livros do Meio, e, na Casa de Portugal em Macau, numa edição do Instituto Cultural de Macau, assistiu-se ao lançamento de "Almas Transviadas" de Tang Hio Kueng, com tradução para português da Professora Ana Cristina Alves.
A singularidade destes dois eventos não se resume ao concreto de as obras terem sido publicadas em português e os autores serem de nacionalidade chinesa. O singular é os mesmos não terem nascido em Macau, o primeiro em Pequim e o segundo em Xangai. Contudo, ambos adoptaram esta cidade como sua.
Estes eventos revelam uma abertura ao Outro, uma saudável ausência de preconceito e discriminação, substituídos pela valorização da diversidade que tem origem em autores que possuem uma visão aberta do mundo.
Simbolicamente estes eventos que envolvem não apenas a questão da língua, mas também a da alteridade que politicamente se consubstancia na formulação da decisão da R.P. da China em consagrar Macau como a sede do Fórum da Cooperação Económica entre a China e os países de expressão portuguesa, o que, para os habituais atentos e veneradores, deveria servir de bússola comportamental como é habitual.
Hoje em dia ser-se chinês, português, inglês, filipino ou vietnamita num mesmo espaço, só pode constituir-se no elogio da diversidade, à maneira dos Tang, que acolheram árabes, judeus, japoneses, coreanos.  
Na segunda década do século XXI não faz sentido posturas xenófobas, quase sempre associadas à pobreza cultural, assentes num populismo demagógico que apela aos instintos mais primários dos manipulados.  
Não são de todo aceitáveis discursos discriminatórios para com os trabalhadores não residentes, só possíveis em gente que se esquece das suas próprias origens e que envergonha a cultura desta cidade que, por ser indizível, se situa no plano da imaterialidade patrimonial.
A importância da obrigatoriedade de um ensino bilingue ou, ainda, multilingue, permitirá indubitavelmente a abertura e arejamento de comportamentos agora por vezes ainda etnocêntricos, em tudo incompatíveis com o espírito e o destino multicultural desta cidade.
As políticas sociais precisam de ser inclusivas, integradoras. Macau está a passar a fase da sua adolescência enquanto Região Administrativa Especial, e é necessário preparar as próximas décadas, para que a sementeira dê, a seu tempo, os frutos esperados. A riqueza material em si não constitui sequer sinónimo de desenvolvimento. Quando muito é potencial que requer uso adequado sob pena de se incorrer no novo-riquismo.
Hoje, a cidadania não pode ser uma circunscrição, uma freguesia ou paróquia. Hoje, a cidadania tópica é apenas uma das parte de uma consciência que só pode desejar a alteridade como forma primeira de acesso a uma cidadania do mundo.
Posturas xenófobas que apontam à discriminação, quantas vezes esquecidas as próprias origens, não podem ter lugar em parte nenhuma.
Também por isso, é justamente a Educação Cívica que urge ser não apenas uma disciplina escolar obrigatória mas uma colectânea de princípios, regras e deveres a requer uma imposição legal conducente à responsabilização individual.
Está extinto um velho instrumento, o do Corpo de Fiscais Municipais. Muita falta faz um Corpo de Fiscais Cívicos, com competências para prevenir comportamentos incivilizados, pejamentos, sujidade, e todo um tipo de transgressões que perturbem a ordem e se configurem no complemento do ensino a haver.
Exemplarmente, Raimundo do Rosário não hesita em recorrer a técnicos do exterior se não os houver cá. Exemplarmente, Alexis Tam fala várias línguas e move-se com à vontade entre as diversas culturas que caracterizam Macau.

"Palavras Cansadas da Gramática" e "Almas Transviadas" tornam-se assim testemunhos e paradigmas de uma cidadania cuja semeadura se espera poder tornar-se numa prioridade Educacional.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

VALETES, DAMAS E REIS


É óbvio e LaPalissiano que as cidades, criadas pelos homens, foram concebidas para reflectir os seus anseios, projectar os seus sonhos e possuir a qualidade de vida expressa na(s) cultura(s) que as criaram. O que quer dizer que a cultura é a matriz de onde nasce a cidade e esta, naturalmente, interage com o cidadão, o seu principal fruidor, influenciando-o, tornando-o feliz ou infeliz, consoante a complexidade da sua organização cívica.
Até aqui não existe nada de errado. Muito pelo contrário, é o curso natural da história, como em todas as grandes cidades europeias que resistem o mais que podem a um processo de pseudo evolução, que é quando se confunde a preservação do património que confere a mais valia da identidade com a importação do chamado "moderno" para alguns e "contemporâneo" para outros. Quando bem concebido, o contemporâneo, como a pirâmide de I.M.Pei no Louvre, o Pavilhão de Portugal de Siza Vieira ou a Casa da Música no Porto de Rem Koolhaas , e outros exemplos que seria exaustivo listar, estamos perante a adequação de actos de cultura que convivem bem com o passado, integrando-se pronta e qualificadamente na malha urbana.
Mas para que tal exista é preciso exigência e um sentido crítico de uma população que, infeliz e generalizadamente, o não possui, perdida na confusão dos signos que não descodifica, senão o do todo-poderoso cifrão.
É o resultado de uma escolaridade maioritariamente anacrónica, onde ninguém leu os Clássicos, originando uma visão estreita e retrógrada, reprimida e, assim, despojada dos valores humanizantes que uma formação de âmbito mais alargado aos ensinamentos de Confúcio daria.
Se esta situação, constatável a todo o momento, dura há décadas, a acentuação de predominantes prioridades como a busca da riqueza, num ambiente onde a opulência se torna um culto que se patenteia por todo o lado, então estamos doentes.
Subsistem sérias dúvidas de que numa sociedade com estas características se possa desenvolver    um processo cultural, pelo cerco dos poderosíssimos componentes do capital, com excepção de uma pequena percentagem de interessados. A oferta é crescente e mais que abundante, porém afigura-se faltar um estrado ou um púlpito que conquiste mais gente, e que já se apontou: a Educação. Sem uma Educação adequada não há nem civismo nem cultura.
O que no caso presente sucede é o excesso. Significa isto que, por exemplo, há demasiada gente a afirmar-se artista ou criativo. Há demasiada gente contaminada pelo desejo de sucesso. Subitamente, sobretudo na última década, surgiu uma onda jovem, cujo principal objectivo é estar na cultura, é ser artista, mesmo que nunca tenha lido Roland Barthes, Gaston Bachelard, Deleuze, Walter Benjamin, ou só tenha começado a ler história de arte a partir dos impressionistas. Chamaria a essa onda, por uma questão meramente prática de datação, de casinista. Porque coincide, mais ano menos ano, com o aparecimento dos grandes grupos de jogo e entretenimento.
Estão no seu direito, tanto mais que o talento é facilmente perceptível e, como sempre, de toda uma plantação saem escassos rebentos, porque assim é a natureza das coisas. Arte não é néon, talento não se compra e quantidade é algo, por natureza, incompatível.
Por isso talento requer melhor tradução e conteúdo. Uma parte dos candidatos a protagonistas da cultura artística de Macau está contaminada pelo desejo, fonte de toda a ilusão e sofrimento. O facto de se agruparem não camufla. Todo o trabalho criativo é também, necessariamente, solitário. Acresce que o olho, mesmo a nu, ainda é o melhor controlador de qualidade e esta, quando existe, salta à vista. 
Como dizia Picasso, desenhar não custa, os primeiros oitenta anos é que são mais difíceis. E, nesse sentido, torna-se óbvio que se deve apostar nos poucos mas prometedores talentos que têm vindo a dar provas de o serem. São naturalmente poucos, pouquíssimos. Mas é nesses e só nesses que se deve apostar, por uma questão de boa gestão e de consequentes bons resultados.
É o caso de Fortes Pakeong Sequeira, que vive da sua arte, coisa dada a poucos em Macau, e que merece o nosso melhor entusiasmo. O lançamento de um livro seu constitui a consagração de um desses poucos jovens de talento transbordante que, como dizia, está patente ao primeiro olhar.
Mesmo assim, é bom recordar a morada das boas intenções, não vá o diabo tecê-las e andar por aí um baralho de reis, todos nus, sem valetes nem damas de companhia.


terça-feira, 14 de abril de 2015

AUTENTICIDADE


As férias são salutares. Retiram-nos da obssessiva repetição do quotidiano, da urbano-fagia que assalta sobretudo os que têm consciência da importância do ócio no sentido não apenas do lazer, mas do tempo dedicado ao pensamento e à reflexão enquanto alternativa ao trabalho, apesar de estarmos às portas da era robótica.
Pequenas férias servem para curtas viagens, em busca de paraísos para o espírito e, porque não, para o corpo. E se há férias e paraísos, conjugemos também aspectos culturais que satisfaçam algumas outras aspirações. 
Hôi An fica praticamente a meio, em termos de latitude, do Vietname, virada para oriente.
António de Faria, um português, tinha de passar pelo Vietname, mais propriamente por Danang, em 1535, onde tentou estabelecer um entreposto. Por seu turno, o Senhor de Nguyen, de sua graça Nguyen Hoàn, decidiu fundar Hôi An em 1595. No século XVIII Hôi An era considerado por chineses e nipónicos como o melhor destino para o comércio em todo o Sudeste Asiático.
A cidade tornou-se proeminente como um poderoso ponto exclusivo de permutas entre a Europa, China, Índia e Japão, especialmente para a cerâmica.
Em 1999 a velha cidade foi declarada Património Mundial da Humanidade pela Unesco.


A cidade converteu-se num ponto de demanda turística. Toda a velha cidade está preservada, rodeada de hotéis boutique ou de "resorts" que capitalizam do clima e do turismo que busca a comida e a velha cidade tão igual ao que sempre terá sido, dotada de uma arquitectura híbrida, fruto de encontros de culturas, onde predomina o ocre tão comum à velha Macau.
Toda a velha cidade transpira autenticidade, essa genuinidade natural que vem do fundo da alma. Fazem-se estranhos rituais às portas das casas tornadas lojas. Lança-se arroz ao chão e  uns grãos multi-colores. Acendem-se paus de incenso, reza-se com brevidade, queimam-se papéis aos montes em recipientes apropriados. Depois varre-se o que se sujou, um sorriso nos lábios, uma pureza de alma. 
Ali mesmo ao pé uns seis ou oito idosos vestidos de cinzento claro passeiam em grupo, agarrados uns aos outros.
O dinheiro não é tanto assim para que se tenham convertido à arrogância. Pelo contrário, os sorrisos são genuínos, o civismo é muito e o cuidado maior. Ainda se vive numa velha cidade com hábitos comunitários, apesar de invadida por estrangeiros. 
Velhas casas magníficas, pelo que têm de autêntico, tornadas restaurantes, oferecem não apenas comida vietnamita mas também simpáticos cursos de culinária. E então, quando o comércio encerra e os produtos são retirados, as ruas e as casas resplandecem ainda mais pelo seu integral regresso às origens.
Num hotel, Thuy é uma das empregadas. Tem malares de homem, dentes grandes, usa o cabelo enrolado dentro de uma rede. Não sei se lhe sei a idade. Quarenta, talvez.  Confessou que era de Hôi An, num bom inglês, entre um "good morning sir" e "you want coffee or tea?".  Quase toda a gente fala inglês ou então opera este milagre de saber comunicar de uma forma ou de outra. 
Vi gente de todas as idades dedicada às mais diversas formas de comércio, do mercado ao restaurante, dos souvenirs aos "bric a brac", passando pelas inevitáveis e muito proclamadas lojas onde o visitante poderá fazer roupa. 
No rio, os barcos levam turistas a olhar a paisagem. Os táxis, limpos, são conduzidos por motoristas fardados. Os guias turísticos, plenamente identificados pelo seu cartão, falam as mais diversas línguas. São parcos nos preços. Pode-se ir a Hué sem nos sentirmos espoliados.
Esta cidade possui algo que os americanos nunca conseguiram excisar: dignidade e genuinidade. Muita da sua gente apenas possui bicicletas e motociclos, mas entendem-se entre si e com os automóveis. 
Este Vietname é de gente modesta e digna, como aquele senhor de certa idade, que levando na mão um balde de tinta para retocar uma parede do hotel me disse com um sorriso bondoso  "good day sir, good luck to you".
Existe em Hôi An uma ponte construída pelos japoneses, cuja forma obedece à cultura local. 
No regresso, fiquei ainda mais convencido que sempre que um ser humano toca outro torna-se um verdadeiro construtor de pontes.


terça-feira, 7 de abril de 2015

O SAL E O ARROZ


I

Virei a esquina para uma rua secundária. À minha frente estava uma paragem de autocarros toda em vidro, de onde pude vislumbrar um homem idoso, de idade indefinida, entre os setenta e os oitenta, magro, de boné, sentado a contemplar algo, um infinito muito seu, desses olhos encovados no rosto esquálido ornado de orelhas enormes. 
Continuei o meu caminho, agora mais lento, reflectindo aquele olhar silencioso, vago, porém tão cheio de evocações. Dei-me a pensar se ele teria conhecido o último esplendor da rua Central. Certamente que o da Avenida Almeida Ribeiro conhecera, bem como os policias sinaleiros "mouros", de turbante verde rubro. Será que teria frequentado o Hotel Central, tomado chá à hora do meio-dia ouvindo ópera chinesa? Teria, à noite, frequentado o “dancing” e comprado bilhetes para dançar com as dançarinas de sedutoras cabaias, ou seria mais assíduo na Rua das Felicidades? Teria presenciado as provocações dos oficiais japoneses aos oficiais portugueses e americanos nesse espaço de neutralidades? Teria passeado pela Praia Grande desde o Hotel Riviera até ao palácio do Barão do Cercal? Uma enorme torrente de perguntas perpassavam-me pela mente.
Que memórias lhe povoavam o olhar fixo, perdido, na espera do autocarro?
Enquanto esses pensamentos me ocorriam, havia-se feito um tremendo silêncio em meu redor, uma ausência inaudita de  som, de ruído, como se de repente por ali se desse o vácuo.
O incidente passou, estranho, com outras solicitações a convocarem a minha atenção.

II
Passados anos, devido ao reaparecimento uma dor paralisante que me acometeu, vi-me obrigado a recorrer aos serviços de um “tit tá” (endireita), a conselho de um amigo. Este conhecia um, que embora velho, ainda atendia. Dirigimo-nos ao Porto Interior, pela Almeida Ribeiro, Ponte Cais 16 até à Demétrio Cinati, ornada de pontes e armazéns de peixe. Um jovem, vestido de jeans, veio atender-me.
O “consultório” não tinha tabuleta. Ficava situado quase em frente a uma dessas pontes onde atracam barcos de pesca. O rapaz entrou comigo e convidou-me a sentar. Foi por uma porta semi-aberta e ouvi-o a dizer “sifu” (mestre) em voz sumida. O mestre disse qualquer coisa e o jovem trouxe-me um copo de chá quente. Com a sua ajuda, levantei-me e transpus o umbral para o outro quarto cujo chão estava coberto por um linóleo gasto. Num velho sofá de pau preto, olhou-me o homem da paragem de autocarro. As orelhas enormes não enganavam. O olhar era o mesmo, inexpressivo, cavado do fundo das órbitas. Apagou o cigarro, pigarreou, perguntou onde me doía. Mandou-me tirar a camisa e disse-me para me sentar no chão. O meu amigo saudou o velho, que parecia conhecer bem, com um “Fóng pák” (tio Fóng)  e este limitou-se a retorquir com um “wei”.  Tentei sentar-me o melhor que podia mas ele disse que não, para me sentar com as pernas cruzadas. A mudança de posição custou, mas coloquei-me de pernas cruzadas, apoiado por um braço. Pela primeira vez dirigiu-se-me:
Essa articulação não dói com facilidade. Não acho que seja daí. A-Kan, estica-lhe as costas, disse para o jovem assistente. Tentei mexer-me, mas foi-me dito para estar quieto. A-Kan sentou-se à minha frente, pôs sem cerimónia os pés nos meus joelhos, agarrou-me nos pulsos e puxou-me para a frente. 
Fóng pák arrastou os pés até ficar atrás de mim, passou lentamente os dedos pelas minhas vértebras. Onde terminam as dorsais e começam as sacras demorou-se mais. Fez um “hmm”  surdo, tossicou. Senti-o mexer-se atrás de mim. Era um joelho que buscava o local exacto. Depois disse ao assistente para me soltar lentamente, enquanto as suas mãos e antebraços passavam por debaixo das minhas axilas. Era como uma gravata, só que o joelho empurrava as vértebras enquanto me puxava o tronco para trás com uma força que eu não imaginava. Esteve assim uns bons 30 segundos. Apenas o joelho incomodava, ali espetado. De repente a dor desaparecera por milagre. 
Já está, disse Fóng pák. A-Kan, isto nunca viste, disse o mestre. Respirou fundo enquanto eu me punha de pé com toda a normalidade e vestia a camisa. Antigamente, continuou, os discípulos sabiam que nunca sabiam o suficiente e seguiam o mestre por décadas. O olhar fitava, com nostalgia o infinito. Sentou-se, acendeu outro cigarro. No meu tempo aprendíamos com ossos de verdade. O meu “sifu” obrigava a que pegássemos num saco de ossos e os ordenássemos até o esqueleto ficar completo. Obrigava a que soubéssemos a posição correcta de cada um só com os dedos. 
Falava sem se dirigir a ninguém, o olhar, como sempre, perdido. Suspirou um “aaaaaiii” prolongado, roufenho, como que a exorcizar memórias que não partilhava, sentimentos que calava, emoções engolidas.
Agora, esta gente nova, aprende umas coisas, pensa que sabe tudo e estabelece-se. Só posso rir. Estou velho, mas como diz o ditado, já comi mais sal do que eles arroz, já andei mais por pontes do que eles por estradas. 
Olhou para mim e disse: São duas mil patacas. No regresso,  o meu amigo disse-me que Fóng pák tinha vindo de Sân Wui, fora discípulo dilecto do famoso mestre Wong Pui e herdara o título de “sifu”, o discípulo mais qualificado e preferido após a morte do mestre. Tinha vindo pelo rio para Macau quando os japoneses chegaram a Foshan.  
A Macau que conhecera era uma Macau de refugiados, de fome, de gente que vendia arroz aos punhados. No mercado negro um maço de cigarros chegara a custar quarenta patacas. 
Trabalhara num junco, pois no mar sempre se vivia melhor. Comia do que pescava, muitas vezes sem arroz.

Entretanto a guerra havia terminado. Muitos refugiados partiram, outros ficaram. Ele ficou a trabalhar em terra, na ponte cais ali defronte. Aos poucos tornou-se encarregado. Ao mesmo tempo ia curando este e aquele e a fama de “tit tá” foi-se espalhando.  Mas recusara sempre ter tabuleta à porta. Só há bem pouco tempo deixara de parte o láne de peixe e ficara apenas como endireita. 
Não me foi adiantado muito mais, mas agradeci muito o que tinha feito por mim. Depois, já sozinho, sorri ao recordar o ditado que o velho recitara: “Comi mais sal do que eles arroz”. Falava pouco, mas na sua idade avançada, a experiência conferia-lhe sabedoria.