quinta-feira, 24 de setembro de 2020

NAS COMISSURAS DO TEMPO

 


Entre o tempo que hesita em se pôr frio e o sol que se vai, pondo-se em raios de fénix apavorada, paira por aqui uma como que aragem congelante das horas, dos minutos e dos sentidos, espécie de absinto bebido no feérico mundo que antecede o do silêncio, quando as horas já não são e o dia ainda assim se não chama.


Não se mede esse hiato em horas, minutos ou segundos, não tem métrica marcada, é antes doença ou convalescença, tempo coado onde, por uma meia-mão se espera que tudo se abata, só o erguido cai, o rastejante arrasta, e o mundo divide-se também no punhado de fantasmas que a hora deles se vai chegando à medida que se fina um tempo para a outro dar lugar.


Nesse hiato que disse, a cidade doura-se de sol e fénix, e as gentes preparam-se para conviver com o reverso delas, tudo insonoro, como mudez musicada, como no tempo da última guerra. Escurecia e dançava-se, era assim a fuga, cantata, cantabile, um copo em corropio do copo ao corpo e deste a outro e ambos rodando, tudo vogando, ninguém tinha pés, apenas fumo rasando o sonho que descontínuo permeava os fantasmas. Como eram jovens e felizes, não tinham passado a recta da meta nem a sabiam, riam apenas do tempo em que este não contava nem escoava e o riso era só riso, não esgar ou trejeito de olhar suspeito, perdida a razão de uma ordem, outra se apronta e abastece, e prepara novos fantasmas de reencontros para que sobre esses corpos ainda por unir se expie a culpa de tantos sortilégios que se foram, e uma vez mais conduzidos, não condutores, mandados não mandadores, desembarcando da hipótese de cinco quadrantes, já memórias empalidecidas de folclore, vem quem dança ao lugar onde começou, e recomeça fingindo que é verdade que a verdade era assim, como se aqueles dias pudessem ser estes, e neste faz-de-conta mergulham o resto dos sentidos e façamos todos de conta.


Fazer de conta é não contar nem ir dizer, é virar a face e suspirar, olhar a moeda abrasada em que o sol ficou e preparar o mergulho nas sombras e esquecer que nos lembramos do tempo em que o mundo nem era nosso nem de ninguém, apenas não existia, e nos contentávamos com o que ao olhar se ostentava, não me lembro se era pouco se bastante, terá talvez sabido a pouco, apoucado que hoje é tanto e já não há.


Tocou estranha uma música, era estranha sempre que mudava, depois era o hábito do repetido e conformado, exaustão de ouvidos, e por vezes a marcha continuava e mesmo insólita e sem gosto se repetia, maldosa de tanto gostar de se ouvir, tínhamos de nos pôr a falar o que era pecado, sombra inventada para fustigar de medo o medo que se criava e se pressentia.


Diziam que medo substituía bem o prazer, eu ficaria na origem em vez da dobragem, de dobras já chegavam as da roupa e que por esse tempo eram miragem, que desse tempo não sou, nem daquele.


Sou do meu que acontece, como a sombra arrancada, fixa, perdida na contemplação do ocaso de um tempo perpetuado no som dos passos em sobrado rangente, inexistente, apenas rangendo a memória daqueles sapatos pretos e brancos que eu fixei, ainda me não serviam, e hoje perdidos estão, como tanto se perdeu por não se ter usado. A mim os sapatos não serviam, àqueles não sabiam de sapatos, e entre o achado e o perdido fez-se das achas uma fogueira e do perdido um incêndio que ainda lavrará quando a noite se cansar de se repetir, tal o olvido e tanta a ignorância espraiada na distância de onde nunca devia ter saído.


Há apenas um colar de luzes no horizonte, fez-se noite finalmente. E deste cansaço de esperar a alvorada, reina a esperança ainda, que nasça numa manhã um dia em que reinem a sensatez e o saber, para que de entre os dias ocorra um que à memória se junte, e em memória fique.


© António Conceição Júnior • 1999

sábado, 19 de setembro de 2020

O SOM E A IMAGEM DE ANTÓNIO VALE DA CONCEIÇÃO

 


O António Vale da Conceição é meu filho. Em casa e os amigos chamam-no de Kico. Ser pai dele tornar-me-ia suspeito, independentemente de eu brincar com “o suspeito do costume”, até que hoje, no Instagram, dei com o website dele. Atrevo-me a dizer que não me deveria espantar, mas fiquei estupefacto.

Desde criança que lhe conheço, entre outras, duas qualidades: gosto pela música “ó mãe, eu penso com sons” e fidelidade nas Amizades, que em Macau começaram no Jardim de Infância, com o André Roseira e o Tchucho, hoje arquitecto. 



O André, o Kico e o Tchuxo. Dois do Som e Imagem e um Arquitecto


E como desde pequeno vinha anualmente a Portugal, confraternizou com a Francisca e o Tomás, com a Mariana, ele sempre mais novo mas mais alto que a maioria dos amigos. 


Da esquerda para a direita: a Mariana, o Tomás, a Francisca, não me lembro, o André e o Kico

E, mais tarde, na Faculdade, o André Melo e o seu outro grande Amigo Francisco Castro Santos, o Chico. E estes foram quase todos visitar-nos a Macau, quando lá estávamos.
A ligação ao primo intensifica-se a ponto de o ter levado para o Crossfit, ele que é um dos sócios do ginásio de CrossFit em Macau e um gigante a precisar de nova dose de exercícios. 

Uma das coisas que, como observador posso ver no meu filho, além da sua capacidade enorme de ser um bom Amigo, de saber dar, de se preocupar, é a sua verticalidade e a sua grande capacidade de argumentação herdada seguramente da Mãe, além de outras qualidades.


O Kico e a Mãe em Macau


Parece-me que a maioria dos sues amigos conhecem os Turtle Giant  cujo website me parece também tipicamente do Kico, com a colaboração dos dois outros amigos da banda, o Beto Ritchie e o Frederico Ricci, que em 2013 foram representar a China no maior Festival Indie do mundo em Austin, Texas.

Independentemente de ser um filho extraordinário, muito Amigo dos pais, da irmã e sobrinhos, não posso deixar de partilhar esta descoberta do seu website e dizer do tanto que ele, modestamente, não revelou, sabendo eu que tem muito mais em preparação, música seguramente Indie, mas sobretudo música dele, ele que domina a composição em si e, também, a construção da música no computador, onde os violinos estão numa pista, os violoncelos noutra, o contrabaixo, o piano, enfim toda a panóplia de instrumentos que ele coloca e compõe para a harmonia final.

A par de produzir as suas próprias músicas e canções, produz para outros que não irei nomear e participa em filmes, sem necessidade de protagonismo mas antes com um espírito colaborativo. Já sofreu com isso, mas nada que o tenha abanado, não fosse ele determinado, leão de signo e búfalo de signo chinês. O que me espanta nele é o mundo que tem, que Macau e as constantes visitas a Portugal passando pelos aeroportos do trajecto lhe deram, ao qual ele acrescentou ainda mais mundo e uma enorme capacidade de estar bem e centrado em qualquer lugar, falando um inglês escorreito, inventando uma pronúncia só dele, claríssima, e desde os bancos da escola dotado de um humor que fazia chorar de rir os professores.

A sua natural modéstia impede-me que eu revele mais, esperando que o futuro possa mostrar do que é feito o António. Apenas dou a ver e ouvir o que ele tem feito, com uma vénia especial ao Beto e ao Fred dos Turtle Giant, e de todos os Amigos que lhe adoçam o coração com a sua constância. 

Desejo uma boa navegação no seu website. Sobretudo faça scroll até ao fim antes de voltar ao Menu.
A sua latência tem-se prolongado de uma forma que lhe é característica. Aguardo que saia do seu subterrâneo para dar a ver e a ouvir o muito do pouquíssimo que já ouvi. E gostei, porque estive no seu estúdio. Mas até emergir, o segredo permanece. Afinal somos pai e filho.




quinta-feira, 17 de setembro de 2020

À CONVERSA COM FILIPA PAIS RODRIGUES • DESIGNER E ARTESÃ EXCELENTÍSSIMA

 


INTRODUÇÃO

Tenho procurado ao longo da minha vida profissional divulgar pessoas que considero merecedoras disso. Sem contar com centenas de textos introdutórios a exposições e artigos em jornais, mantive interessantes conversas por escrito com algumas delas.

Tenho, para estas conversas, de ter uma motivação pessoalCada texto constitui uma incursão num caminho novo, específico e singular. Tudo sempre me interessou. 

A Filipa Pais Rodrigues nasceu em Coimbra e aos 12 anos foi para Macau com os pais, que eram médicos, e aí cresceu. Macau era um sortilégio que marcou quem lá passou e ainda marca, embora com outro pano de fundo.

Vim a reencontrar virtualmente a Filipa que é designer, porque concebe, e  artesã, porque realiza. Para mim, ser-se artesão é um elogio.

A Filipa Pais Rodrigues tem formação artística como se pode constatar aqui:


2001

Curso de ilustração com António Modesto – EUAC, Coimbra, Portugal

1996-1998

Pós-Graduação em Design de Comunicação, Jan van Eyck Akademie - Centre for post graduate studies, Maastricht, Holanda

1995

Curso de ilustração com Alice Geirinhas – Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

1989-1994

Licenciatura em Pintura / vertente gráfica – ARCA EUAC Escola Universitária das Artes de Coimbra, Portugal

1988

Curso de Cerâmica Artística, Macau, China.


PUBLICAÇÕES

1997-1998

  • Feeding the squirrels to the nuts, Holanda
  • Desire, Holanda
  • One single word stands for one thousand images, Holanda
  • The designer’s terms, Holanda


Cartonagem

No caso da presente conversa, constato que Filipa opera em diversas áreas, entre as quais também a pintura, mas a escolha  do tema que tive com ela explico-o, associando-o a outra descoberta: a de um jovem licenciado que se vem revelando uma promessa de carpinteiro-marceneiro. Sempre conferi valorização à parte do artesanato de construção ritual, sobretudo aquela que requer a consciência da geometria, o recurso à régua e ao esquadro, ao qual quer a carpintaria-marcenaria ou a cartonagem recorrem para o bom e correcto resultado dos seus projectos. As caixas, de Pandora e outras, constituem verdadeiros objectos de sedução porque foram criadas para ocultar ou para revelar.


O contador Amarelo é um Tributo a Siza Vieira, e o Vermelho é homenagem a Souto Moura – a Casa das Histórias (Museu da Paula Rego)


Admiro tanto o pintor, como o oleiro, a bordadeira, o escultor, o ceramista, o joalheiro, o carpinteiro, o marceneiro, o fotógrafo e tantas outras áreas de expressão, como aquela a que a Filipa se dedica. Privilegiar uma arte em desfavor de outra é preconceito ou  ignorância. 

Porém, sempre fui muito exigente, não apenas na medida dos afectos.  Reside em mim um gosto muito próximo do cartesiano, como ideia de subjectividade do gosto, isto é, o gosto como uma questão particular do sujeito. Adiciono ainda um hieratismo, uma como que necessidade da essencialidade e do solene, porque confere à estética o rito.

O rito, esse, é indesmentivelmente extremo-oriental. 

Fiquei rendido ao virtuosismo, competência, simplicidade e bom gosto da Filipa nas coisas que  faz, sejam obras de cartonagem, livros por si reiventados ou caixas de influências várias. 

Assim, e porque acho que é meu dever cívico continuar a promover autores e autoras que considero merecedores, eis o resultado da conversa havida com a Filipa.


Filipa, antes de mais gostaria de perguntar se achas que a tua infância e adolescência em Macau foram determinantes em algumas (ou todas) as escolhas estéticas que fizeste. 

FPR: Sem dúvida nenhuma... Tive o privilégio de passar grande parte das nossas férias no Alentejo em casa dos avós paternos, onde creio ter absorvido as influências mais marcantes da minha infância. Apesar da educação extremamente rígida e conservadora, a minúcia, a estética, a capacidade de organização e a contemplação da natureza que os meus Avós me incutiram foram determinantes. A minha Avó tocava piano, pintava, fazia as tintas para tingir as lãs para os Arraiolos, enfim, era uma Senhora muito delicada... Com o meu Avô íamos ao fim de semana, ao final do dia ver os prados, observar as aves, lembro-me de ficar fascinada pelo seu conhecimento tão pormenorizado sobre “tudo o que mexia no campo”, lembro-me de pensar que gostaria de vir a ser como ele... mas naquela época, só os homens podiam ir para o campo. Ansiava sempre pelo momento em que “as meninas” podiam ir dar a volta ao campo com o meu Avô, o meu Pai e o meu irmão...


Aos 12 anos tive a felicidade de ir para Macau... Se já antes tinha tido tal estímulo, desde aí, curiosidade e atenção ao detalhe é intrínseco à minha maneira de ser e estar na vida. Conhecer e crescer em Macau – no Extremo Oriente – foi um marco fraturante na minha personalidade, de uma densidade e intensidade extraordinárias. A minha experiência pessoal, num mundo repleto de formas, cores e cheiros absurdamente diferentes, incentivaram e despertaram ainda mais todos os meus sentidos… Penso que nem todas as pessoas entenderão o verdadeiro impacto numa criança com 12 anos, vividos entre uma cidade conservadora e fechada sobre si mesma como Coimbra nessa época, e o Alentejo do interior, confrontada com um lugar como Macau no início dos anos 80… Um lugar belo e misterioso, cheio de inúmeras experiências desconhecidas que íam das simples refeições, até à forma de vida nas suas diversas dimensões… Tudo diferente, tudo desconhecido… E sempre carregado de mistérios e simbolismos…


Álbum multi-funções


Sinto declaradamente essas influências na minha prática artística, em que procuro constantemente criar significado da experiência humana, do indivíduo. Essa criação é a materialização da expressão da minha vivência enquanto indivíduo, é uma busca constante da experienciação do Belo. Com o meu trabalho quero oferecer uma experiência de prazer, de satisfação, de harmonia com a natureza dos materiais, da forma, do ambiente cromático. Seja na contemplação de uma pintura, na convivência do movimento de um mobile, ou na descoberta do segredo de um contador de mesa. 


Quando é que surgem na tua vida estes variados interesses, que vão da cartonagem e fabrico de caixas, à reinvenção de cadernos, livros e álbuns de fotografia além do teu interesse pelo origami?

FPR: Tive desde sempre um enorme fascínio pelos trabalhos manuais. A minha Mãe tinha um sentido estético muito apurado e também grande habilidade de mãos. Sempre fomos incentivados a fazer tudo. Lembro-me de adorar a época do regresso às aulas, em que forrávamos os livros e os cadernos e organizávamos os nossos espaços de trabalho... As gavetas e os armários lá de casa eram forrados com papel decorativo e eu ainda tenho algures um caderno que fiz com poemos escritos e ilustrados por mim, muitos antes de ir para Macau.





Álbum de casamento ou para outra função



Nos primeiros anos do novo milénio, em que deixei de trabalhar em publicidade, senti que tinha chegado o momento de me dedicar àquilo que realmente sinto ser o meu potencial natural, basicamente, o regresso à construção de paisagens com texturas e cores que possam surpreender quem com elas interagir... Curiosamente, a dedicação ao origami acontece já depois de ter regressado a Portugal, mas o fascínio por esta arte foi despoletado desde cedo, na minha ida ao Japão e mesmo em Macau, lembro-me dos frasquinhos com estrelinhas que as minhas amigas Macaenses tinham.


Reparei que tens recebido encomendas de algumas empresas. O que te satisfaz mais? Encomendas dessas ou de particulares que reconhecem o teu talento e know how?

FPR: Ambas. Gosto tanto de ir de encontro a um pedido específico para um determinado objectivo, como o de criar uma peça singular, para usufruto individual ou colectivo... Gosto do Belo... E as pessoas também... 


Tabuleiros para Joalharia

Tens um corpo de trabalho já bastante grande, o que me leva à constatação de que és uma trabalhadora compulsiva. Estou certo? E como articulas essa actividade com a de Mãe e de Mulher? 

FPR: Pois... às vezes não é fácil, se por um lado, tanto o meu marido como a minha filha são os maiores fãs e ao mesmo tempo, críticos construtivos do meu trabalho, respeitando todo o tempo do meu processo criativo, por outro, não poucas vezes, acham que complico e que extravaso a razoabilidade...


Tabuleiro para correspondência

A verdade é que essa característica "compulsiva" é intrínseca e manifesta-se tanto no trabalho como na vida pessoal e doméstica, sou algo obsessiva tanto no corte do cartão, como na limpeza do pó... a minha sorte é que a família me compreende, e muitas vezes a hora das refeições é determinada em função das minhas necessidades artísticas, isto, porque tenho a sorte de ter um “chef particular”, o meu marido, que cozinha para nós 365 dias por ano... 


Entre caixas cartonadas, tabuleiros, livros forrados, origami e o mais que sabes melhor do que ninguém, o que gostas mais de fazer? Quanto tempo demoras em média?

FPR: Honestamente, gosto de fazer tudo... A verdade é que cada actividade tem um momento próprio e, por exemplo, o origami é feito tanto numa viagem de metro, como ao serão, enquanto estamos em família. Tenho alguma dificuldade em estar sem fazer nada... 



Caixa de Jóias com tabuleiro para anéis


Se tivesse que escolher uma peça, os contadores de mesa são o que me dá mais prazer, nomeadamente a minha mais recente série “Tributo a”, em que o maior desafio é o de recriar espaços arquitectónicos que admiro, com um novo propósito, tão intimista, como o de um contador de mesa.

Relativamente ao tempo, é demasiado, sobretudo, face à valorização que não é fácil obter.


Contador de mesa


                                             As influências Extrem-Orientais do contador de mesa


Realizas trabalhos com materiais escolhidos por outros, como por exemplo papéis, veludos e cabedais?

FPR: Sim, sou totalmente receptiva às sugestões que me possam fazer, embora normalmente em função do que me é pedido, eu faça duas ou três sugestões tanto de materiais, como de opções cromáticas... Mas prefiro criar com liberdade...


Com este corpo já tão vasto de trabalho, que outros sonhos tens por realizar?

FPR: Tenho vários... Desde o vitrinismo, fazendo montras de autor, que é um sonho que tenho desde sempre — as montras que namorava nas lojas de Hong Kong — até trabalhar para uma marca de luxo, utilizando materiais nobres, como o ouro ou os diamantes e, sobretudo, de poder viver exclusivamente da minha Arte...


EXPOSIÇÕES

2020

ARTFEM Women Artists 2nd International Biennial of Macau

2014

- Oporto Business School - POPs SERRALVES

- POPs SERRALVES 6a Edição Projectos Originais Portugueses, Mostra de Serralves, Porto

1996 - 1998

Diversas exposições colectivas de Projectos de Design, Jan van Eyck Akademie, Holanda;

1994

Bienal dos Jovens Artistas da Europa Mediterrânica, Lisboa;

1992 - 1994

Participou em diversas exposições colectivas de pintura e ilustração em Coimbra, Lisboa, Porto, Tomar e Viseu.




quarta-feira, 27 de maio de 2020

HO, STANLEY HO


Há uma Macau antes de Stanley Ho, e outra depois da sua entrada em cena.
Stanley Ho era de ascendência mista, aquilo que, no Oriente, se chama um Euro-asiático. O seu bisavô foi Charles Henri Maurice Bosman, de origem judaico-holandesa. O avô, Ho Fok, era irmão de Sir Robert Ho-tung ele também de aspecto muito pouco chinês, apesar das vestes, como o comprova esta fotografia.


A biografia de Stanley Ho é por demais conhecida, e qualquer busca mostrará os seus principais avanços, desde os tempos em que fez contrabando de bens de luxo e outros, enfrentando também a pirataria que ainda existia a par dos invasores japoneses, até à sua empresa de querosene e à construção civil. Em 1961, em conjunto com o milionário de Hong Kong Henry Fok Ying Tung,  Yip Hon e o seu cunhado Teddy Yip, ganharam à empresa Tai Heng, o monopólio do jogo, que duraria até 2003.
O primeiro casino hotel que a nova Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (S.T.D.M.) lançou foi o Hotel Estoril, que aqui se recorda com muito sabor pela pena do investigador macaense Manuel Basílio.
Também eu fui aos chás dançantes do Estoril de Macau, aos sábados, ouvindo os conjuntos (bandas) locais.
A imagem que Stanley causou no adolescente que eu era, foi a de um homem jovem, curiosamente com patilhas longas, e com fama de galã.


 Quando em 1971 regressei a Macau para prestar o serviço militar obrigatório, já Macau contava com o Hotel Lisboa e o Hotel Sintra. 
O meu primeiro encontro com Stanley Ho ocorreu possivelmente em 1972-73.
Eu tinha trazido de Portugal material para realizar serigrafias, e depois de ter cumprido parte do serviço militar, com o apoio de Herculano Estorninho que era gerente do Hotel Lisboa, pude realizar uma exposição de serigrafias, a maioria incompreensíveis para a época, em Macau.
Stanley Hó, acompanhado pelo poeta do patois de Macau, José (Adé) dos Santos Ferreira, Secretário-Geral da S.T.D.M. foi à inauguração e depois de, com simpatia, ouvir as minhas explicações sobre o conteúdo das obras, virou-se para mim e apontando para uma, disse-me: "This one I understand. I buy it".
E não muito depois, o Hotel Lisboa passava também a ser uma galeria de arte das obras compradas por Stanley, conforme o link proveniente do blogue de Rogério P. da Luz.
Pude comprovar, uma vez mais, o que desde muito cedo me fui apercebendo. Em Macau, as pessoas chinesas verdadeiramente importantes, eram afáveis e simpáticas, nunca se dando ares de arrogância, que eram reservados para os candidatos a importantes.
Depois foram décadas a participar nos jantares da abertura do jogo, por alturas do Ano Novo Chinês, com a presença do governador e com as inevitáveis piadas que Stanley incluía nos seus discursos, quer em português quer, depois, em chinês.
Stanley Hó Hong Sân, se beneficiou com o jogo em Macau, deu igualmente muito a Macau, além de ser responsável por um quarto da força de trabalho do Território, algo que em 2018 totalizava 96.400 pessoas. Poderiam ter sido muitas mais.
O que sempre me agradou em pessoas como Stanley Hó foi a sua visão de futuro, o cumprimento das suas promessas para com o Contrato de Jogos que, durante a Administração Portuguesa, durante uma das suas revisões até deu origem à Fundação Oriente que estranhamente, não se sediou em Macau.
Stanley deu mais ao Governo de Macau do que aquilo a que era obrigado. O desenvolvimento de Macau ao nível das infraestruturas também se ficou a dever em grande parte à sua participação. Stanley nunca desinvestiu de Macau, como um verdadeiro empresário não deve fazer. Pelo contrário, investiu mais do que era obrigado, acedendo sempre aos pedidos dos diversos governadores.
Não pediu, não exigiu. Criou ele próprio a frota de jactoplanadores e depois de hidroplanadores e turbojatos que asseguravam não apenas a vinda dos jogadores, criando assim as infraestruturas para as comunicações com Hong Kong, dantes asseguradas apenas pelos velhos ferries do porto interior, o Takshing, o Tai Loy e o Fatshan, filhos da antiga concessionária Tai Heng.

Segundo da esquerda, Henry Fok Ying Tong visitando uma exposição no Queen's College de Hong Kong, na companhia do sócio Stanley Ho. Ambos estudaram aí.


Dos sócios de Stanley, que era o Administrador-Delegado, a figura de Henry Fok emerge como o mais poderoso dos sócios, com um curriculum igualmente invejável, mas sem o carisma do seu amigo Stanley Hó. Era mais tradicionalmente chinês.
Era um apaixonado do futebol, de tal modo que possuía uma equipa da primeira divisão profissional de Hong Kong e ele próprio jogava, tendo a equipa a jogar para ele marcar golos.
Teddy Yip era o sócio da sino-indonésio, fanático das corridas de automóveis que muito contribuiu para o desenvolvimento do Grande Prémio de Macau. 

 Teddy Yip com Ayrton Senna no seu Theodore Racing Team no GP de Macau

É incontornável a importância do trabalho de Teddy Yip no desenvolvimento do turismo em Macau e, sobretudo, da emergência do Circuito da Guia como o passo final para a entrada de jovens corredores na Fórmula I.

Com a morte de Stanley Hó, fecha-se um capítulo da história do jogo em Macau, desde o fan tan do século XIX, passando pela capital do jogo na Ásia para a capital mundial do jogo.


1880 chineses jogando fan tan

A CNN, dedica-lhe este video que reconhece a sua importância.
Tomara que o termo empresário tivesse em toda a parte a conotação de visão, de insatisfação, de expansionismo que Stanley Hó personificou. 




domingo, 17 de maio de 2020

PATRIMÓNIO DE MACAU – A DESTRUIÇÃO DO BAIRRO ALBANO DE OLIVEIRA

Comandante Albano de Oliveira Governador de Macau (1947 - 1951)

O Comandante da Marinha, Albano de Oliveira, terá sido dos poucos governadores que Macau teve que conhecia previamente a então "Província", por aqui ter passado parte da sua infância e juventude, conforme nos diz João Botas.
Deixou obra feita, como o Edifício das Repartições, agora denominado "antigo tribunal", Escola Luso-Chinesa Sir Robert Ho Tung e, entre outras, as habitações para funcionários num bairro, inaugurado em 1949, que lhe tomou o nome e onde meus pais foram os primeiros habitantes.

O airoso bairro Gov. Albano de Oliveira, acabado de construír, e ainda sem árvores 1949.

Este bairro, de oito casas-moradias com jardins, quatro de um lado e  quatro de outro, albergava 16 famílias, uma no rés-do-chão e outra no primeiro andar, com uma rua interior pelo meio, a Rua Governador Albano de Oliveira.
Um dos topos confinava com a Av. Coronel Mesquita, onde se situava o templo de Kun Iam e, mais acima, o Colégio D. Bosco com o seu campo de futebol de sete. Estava, podia-se dizer, distante do centro da cidade, de tal modo que todas as crianças conheciam os motores dos carros de cada um dos habitantes. 
Nesse bairro viveram professores do Liceu, médicos, o director dos Serviços Meteorológicos, funcionários superiores, etc.
Na canícula do Verão passavam por lá vendedores diversos, de vassouras, espanadores e outros objectos para a casa, até ao homem que, com duas latas aos ombros, vendia papo-secos, gritando pang quenti. Passava também o homem do chi cheong fan (massa de arroz cozida a vapor e enrolada sobre si mesma, regada com molho de soja, molho de sésamo, molho doce, sementes de sésamo) ou o vendedor de lulas fritas.

Chü cheong fan (massa em forma de intestino de porco)

Esse bairro onde tantos viveram, como em todos os bairros de Macau, ganhou características com o tempo, convivendo os filhos dos habitantes, de diferentes idades. 


À esquerda, o futuro advogado Francisco Gonçalves Pereira e o futuro engenheiro Raimundo Arrais do Rosário, hoje Secretário para as Obras Públicas, no bairro, já com arvoredo. 


Em nome da verdade é preciso dizer-se que a qualidade arquitectónica era comum a muitos lugares do chamado ultramar português. Eram habitações que tinham um modelo comum muito parecido como se pode ver na fotografia abaixo, mas que nem por isso as tornava menos confortáveis e, sobretudo, iniciadores de memórias e afectos comuns.
Outros bairros muito próximos, situados ao longo da Coronel Mesquita e cruzamento com a Francisco Xavier Pereira, tinham características semelhantes.




















O bairro Albano de Oliveira assistiu ao fluir de gerações e de memórias inesquecíveis para os seus habitantes.
Perguntar-se-á o que o torna tão especial para merecer este registo. Infelizmente não é pela positiva. 
Com efeito, em 1983, governando com arrogância e autoritarismo – o também oficial da marinha, Almirante Vasco de Almeida e Costa, que viria a ter veleidades de candidatura à presidência da república (o mal que Macau sempre fez aos pequenotes, destituídos e vulgares) – determinou a destruição do bairro Albano de Oliveira para, em seu lugar, se implantar um conjunto de quatro torres assentes sobre uma plataforma que seria um parque de estacionamento. 
O assunto causou alguma celeuma, tendo o jornalista Hélder Fernando, que viria a ser meu muito querido amigo, referido o assunto neste seu texto do Jornal Tribuna de Macau.
Indiferente, no seu todo-poderosismo, o Almirante Almeida e Costa deu ordem de liquidação.

A última casa a ser demolida

Meu Pai, que juntamente com minha Mãe foram os primeiros inquilinos do bairro, faleceu precisamente em 1985. Não teria resistido a esta visão de destruição. A dele, a nosso, foi a última casa a ser destruída, sob a sombra horrenda do prédio miserável e medíocre que espreitava por trás. Ficou a fotografia, testemunho da barbárie insolente e arrogante de quem, julgando ser eterno, deixou dúvidas muitas sobre a razão subjacente à decisão que tomou.

O edifício Pak Vai

A especulação imobiliária, nascida a partir dos finais dos anos 1960 é, por definição local, a utilização máxima da área de implantação disponível sem quaisquer preocupações estéticas, num completo desprezo por cérceas ou preocupações semelhantes.

Área originalmente destruída está delimitada a vermelho enquanto que a zona delimitada
a amarelo e vizinha do campo de futebol, foi mantida, provavelmente por estar confinada ao cemitério.

Em artigo próximo, abordarei com maior profundidade e documentação, o que foi o Património edificado de Macau.
Neste texto resta apenas a memória de um dos muitos bairros de Macau, que ajudaram ao reforço da identidade de Macau no seu todo.