quarta-feira, 22 de abril de 2015

VALETES, DAMAS E REIS


É óbvio e LaPalissiano que as cidades, criadas pelos homens, foram concebidas para reflectir os seus anseios, projectar os seus sonhos e possuir a qualidade de vida expressa na(s) cultura(s) que as criaram. O que quer dizer que a cultura é a matriz de onde nasce a cidade e esta, naturalmente, interage com o cidadão, o seu principal fruidor, influenciando-o, tornando-o feliz ou infeliz, consoante a complexidade da sua organização cívica.
Até aqui não existe nada de errado. Muito pelo contrário, é o curso natural da história, como em todas as grandes cidades europeias que resistem o mais que podem a um processo de pseudo evolução, que é quando se confunde a preservação do património que confere a mais valia da identidade com a importação do chamado "moderno" para alguns e "contemporâneo" para outros. Quando bem concebido, o contemporâneo, como a pirâmide de I.M.Pei no Louvre, o Pavilhão de Portugal de Siza Vieira ou a Casa da Música no Porto de Rem Koolhaas , e outros exemplos que seria exaustivo listar, estamos perante a adequação de actos de cultura que convivem bem com o passado, integrando-se pronta e qualificadamente na malha urbana.
Mas para que tal exista é preciso exigência e um sentido crítico de uma população que, infeliz e generalizadamente, o não possui, perdida na confusão dos signos que não descodifica, senão o do todo-poderoso cifrão.
É o resultado de uma escolaridade maioritariamente anacrónica, onde ninguém leu os Clássicos, originando uma visão estreita e retrógrada, reprimida e, assim, despojada dos valores humanizantes que uma formação de âmbito mais alargado aos ensinamentos de Confúcio daria.
Se esta situação, constatável a todo o momento, dura há décadas, a acentuação de predominantes prioridades como a busca da riqueza, num ambiente onde a opulência se torna um culto que se patenteia por todo o lado, então estamos doentes.
Subsistem sérias dúvidas de que numa sociedade com estas características se possa desenvolver    um processo cultural, pelo cerco dos poderosíssimos componentes do capital, com excepção de uma pequena percentagem de interessados. A oferta é crescente e mais que abundante, porém afigura-se faltar um estrado ou um púlpito que conquiste mais gente, e que já se apontou: a Educação. Sem uma Educação adequada não há nem civismo nem cultura.
O que no caso presente sucede é o excesso. Significa isto que, por exemplo, há demasiada gente a afirmar-se artista ou criativo. Há demasiada gente contaminada pelo desejo de sucesso. Subitamente, sobretudo na última década, surgiu uma onda jovem, cujo principal objectivo é estar na cultura, é ser artista, mesmo que nunca tenha lido Roland Barthes, Gaston Bachelard, Deleuze, Walter Benjamin, ou só tenha começado a ler história de arte a partir dos impressionistas. Chamaria a essa onda, por uma questão meramente prática de datação, de casinista. Porque coincide, mais ano menos ano, com o aparecimento dos grandes grupos de jogo e entretenimento.
Estão no seu direito, tanto mais que o talento é facilmente perceptível e, como sempre, de toda uma plantação saem escassos rebentos, porque assim é a natureza das coisas. Arte não é néon, talento não se compra e quantidade é algo, por natureza, incompatível.
Por isso talento requer melhor tradução e conteúdo. Uma parte dos candidatos a protagonistas da cultura artística de Macau está contaminada pelo desejo, fonte de toda a ilusão e sofrimento. O facto de se agruparem não camufla. Todo o trabalho criativo é também, necessariamente, solitário. Acresce que o olho, mesmo a nu, ainda é o melhor controlador de qualidade e esta, quando existe, salta à vista. 
Como dizia Picasso, desenhar não custa, os primeiros oitenta anos é que são mais difíceis. E, nesse sentido, torna-se óbvio que se deve apostar nos poucos mas prometedores talentos que têm vindo a dar provas de o serem. São naturalmente poucos, pouquíssimos. Mas é nesses e só nesses que se deve apostar, por uma questão de boa gestão e de consequentes bons resultados.
É o caso de Fortes Pakeong Sequeira, que vive da sua arte, coisa dada a poucos em Macau, e que merece o nosso melhor entusiasmo. O lançamento de um livro seu constitui a consagração de um desses poucos jovens de talento transbordante que, como dizia, está patente ao primeiro olhar.
Mesmo assim, é bom recordar a morada das boas intenções, não vá o diabo tecê-las e andar por aí um baralho de reis, todos nus, sem valetes nem damas de companhia.


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