quinta-feira, 10 de setembro de 2015

INTEIREZA


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Odes de Ricardo Reis

Faz o teu melhor, mesmo em coisas triviais.
A partir daí, podes alcançar a sinceridade.
Esta sinceridade torna-se aparente.
Sendo aparente, torna-se brilhante.
Sendo brilhante, afecta os outros.
Afetando os outros, muda-os.
Mudando as pessoas, ela transforma tudo.
É somente aqueles portadores da maior sinceridade que podem transformar tudo.
Se fizeres o teu melhor, um a um, o mundo mudará.
O Homem Superior, Confúcio

Dizer-se que uma cidade é de cultura constitui um pleonasmo, mais concretamente, um sinal de desconhecimento do que são cidade e cultura.
Enquanto legados multisseculares, quando não milenares, as cidades são expressões inerentemente culturais, sucessivamente transmitidas de geração em geração.
Assumir esta evidência é assumir a inteireza da consciência de um dos mais fortes valores colectivos supra-ideológicos, incontornavelmente universal: a cidadania!
No século XXI, os valores que devem presidir à globalidade das culturas urbanas devem ser universais. À boa gestão da urbe, ao respeito pela sua história, cultura, qualidade de vida, é imperativo construções que respeitem a sua história, a implementação de parâmetros regulamentados de urbanismo de qualidade, a educação cívica, transportes públicos, saneamento, e todo um amplo conjunto de tarefas e objectivos que se devem centrar no cidadão
Ter dinheiro não significa ter riqueza. A riqueza não é um bem material, não se compra com dinheiro, assim como o verdadeiro prestígio. Esta a ilação retirada de mais uma visita ao país que, nas faldas da grande China, ajudou a fecundar uma pequena península, tornando-a única na singularidade da sua mestiçagem, inteira enquanto verdadeira.
A inteireza é um modo de integridade, uma decisão a favor da verdade que a si mesma se sustenta.
As cidades harmónicas são inteirezas sem exclusões. São os legados que chegam até nós, circunstâncias fugazes em relação à perenidade da pedra.
A grandeza de uma cidade não se pauta pela sua dimensão, mas pela verdade que ela transporta, em alternativa à decadência, a inverdades enxertadas e embutidas em camadas de tempo, e de verdades erradicadas, pulverizadas, trocadas por brilhos de mau-gosto, que acarreta a inacessibilidade cultural e gritantes incompreensões.
A capacidade de regeneração das cidades depende, por isso, em muito, das vontades que a elas presidem.
No caso da cidade do Porto,  esse mando está disseminado em termos de gosto, de regra e de regulamentos, nessa inteireza de que nos fala Ricardo Reis. Se a Pessoa lhe cabem bem os heterónimos, às cidades são-lhe reservadas acumulações de tempos e expressões, merecedoras que são da autenticidade que lhes devemos.
Esse é o caso da revitalização da Rua das Flores na cidade do Porto. Uma recuperação que constitui o resgate de abandonos ou ruínas, pela reposição contemporânea da tradição arquitectónica, retomando a continuidade do discurso do granito, do azulejo ou da parede (bem) pintada.
Essa continuidade constitui, não um pastiche que é uma inverdade de mau gosto e kitsch, pele que se coloca sem se ter conhecido ou vivenciado a origem, mas antes a expressão de um ADN em diferentes momentos no tempo.
Tudo o que se me patenteou aos olhos na Rua das Flores foi uma contemporaneidade respeitosa das origens, uma contiguidade do ontem no agora, esteticamente bela em termos formais.



O Porto, enquanto cidade, está mais bonito do que há um ano, e a Rua das Flores floriu.  Músicos de rua que a animam, portas velhas revisitadas pela cor, casas antigas inteira e impecavelmente recuperadas, a rematar o imperativo da ideia. É o hostel soberbamente reaproveitado, é o hotel de luxo anunciado para breve, é a ourivesaria sucinta e bela na sua limpidez, são as esplanadas pejadas de cidadãos e de turistas, a imponente Misericórdia, e o brasão esperançado na recuperação breve, para um outro fim.
Por aqui passeia-se história a desaguar no presente. Por aqui, a herança cultural insemina, como seria de esperar, o gosto bom.
As Cardosas oferecem-se ao olhar em planos diversos, num pátio triangular para onde se debruçam fachadas recuperadas, em exercícios de cor e de planos, num convívio discreto e civilizado.
De tudo isto sobressai a qualidade da mão de obra, daquela que sabe verdadeiramente lacar ou pintar, exteriores e interiores impecáveis nos acabamentos, onde  se sente o prazer de fazer bem até ao mais pequeno detalhe - põe quanto és no mínimo que fazes.
Pergunto-me quando é que na minha cidade natal se perdeu esta tradição. Pergunto-me quem terá construído o Teatro D. Pedro V, o estuque original do medalhão da fachada de S. Domingos, o Clube Militar? Quem construiu a bela biblioteca do velho Leal Senado? Os móveis de pau-rosa, de pau-preto ou de huang hua li, em estilo chinês ou ocidental, já não se fabricam em Macau. Também as gerações de mestres, outrora formados nas escolas salesianas, foram substituídos por curiosos sem preparação, seguindo os ditames corrompidos dos sifu. Tudo se vai tornando descartável. A cidade pede qualidade e tranquilidade, mas é-lhe exigida rapidez desvairada, e oferecido ruído, poluição e confusão, também esteticamente.
Porém, a cidade somos todos nós, a cidade é, como já foi dito, um legado. Cabe a governantes e governados, cidadãos em geral, proceder ao resgate desta urbe antiga.
Os finais do anos 1960 deram início à sua descaracterização. Perdidas algumas raízes, há que firmar o terreno desta cidadezinha, cuja mais-valia é a sua singularidade e a hibridez que ainda se respira, para que não se desmorone e  não empenhe o seu futuro.
As fotografias da Rua das Flores, que aqui ficam, são testemunhos de vontades do que foi aflorado e que urge implementar em força, contra ventos e lobbies, aqui nesta cidade que se deseja venha a ser Centro Mundial de Turismo e Lazer.

Ver aqui a versão do Jornal Hoje Macau

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