domingo, 14 de abril de 2019

ENCONTROS NA VERMELHA RUA DA FELICIDADE

MAPA PARCIAL DA RUA DAS FELICIDADES

As estórias nunca terminam. Elas dependem apenas dos intervenientes, e nesta Rua da Felicidade, muitos foram os intervenientes ao longo das muitas décadas em que ela foi distrito onde o rubor do vermelho presidiu.

Quando aí passei e escrevi o texto supra, omiti deliberadamente, por descontextualizado, os encontros que tive.
Descia eu a dita Rua, quando junto a uma das entradas do estranho Beco da Felicidade, que se pode ver no topo do mapa, reparei pelo canto do olho que um homem de mais idade que a minha, calculei, cara bem marcada pelo tempo e, quem sabe, talvez pela bebida, me olhava fixamente. Habituado ainda hoje a estranharem as minhas barbas, prossegui em frente em direcção ao porto interior, fingindo não reparar no olhar, mas vendo que o rubro das portas terminava logo ali, voltei para trás, sempre seguido pelo silencioso olhar do dito habitante. 
No regresso reparei à minha direita com a entrada do Beco da Felicidade, aquela mais próxima do Beco do Matapau. Quedei-me a admirar o altar que ali se encontrava.

Altar do Beco da Felicidade, sem dúvida dedicado aos manes do local
Copyright António Conceição Júnior


Poucos metros depois, na perpendicular à entrada, uma fachada já muito desgastada pelo tempo e uso indicava uma ruela paralela à rubra rua de onde eu vinha.
Virando à minha direita, deparou-se-me com um edifício recuperado nos seus característicos tijolos cinzentos, talvez museu. Tinha porém apenas uma placa em chinês, estando de resto encerrado, sem se perceber o que versava.

A tradicionalíssima casa chinesa, recuperada, e escondida numa viela paralela à Rua da Felicidade, 
cuja finalidade não descortinei no cartaz do lado esquerdo.
Copyright António Conceição Júnior

Passada a casa e olhando para trás constato o elevado estado de degradação, deparando-se-me o resto da rua assim:

De como se pode lastimar o abandono do Passado
Copyright António Conceição Júnior


Voltei então à direita e eis-me a observar, sem que ele me visse, o senhor que tanto me olhara. Era a outra entrada para o Beco da Felicidade.
Andando com cuidado quis fotografá-lo, pelo menos de costas, contra um fundo vermelho lindíssimo.
Eis porém que, como por instinto, o senhor se volta. Apanho-o a meio, ambos surpresos.

O inesperado estampado no rosto marcado
Copyright António Conceição Júnior

Assumi imediatamente a minha culpa e fazendo-lhe uma saudação com a mão aproximei-me. Não vi nele nenhuma recriminação, pelo contrário, trazia perguntas no olhar.
Perguntou-me se era filho da senhora Chiang, a chinesa de Xangai que casou com meu Pai anos depois de enviuvar. 
Para os chineses, qualquer pessoa mais velha, ou é a-sôk (tio) ou a-pák (avô) se for homem, daí ter aceite a filiação que era a única que ele conhecia.
Confessou-me então que me reconhecera, que eu ia às vezes com a sra. Chiang à loja de caranguejos dos pais dele, defronte do Grand Hotel, no fim da Almeida Ribeiro. 
Confesso a minha estupefacção porque, quando muito, teria uns onze anos e após trocarmos as idades, ele tem oito anos mais do que eu. Como era possível recordar-se de um miúdo de onze anos, tendo ele dezoito ou dezanove anos?
Que sim, que me tinha reconhecido logo. "Apesar das barbas?". Que sim. 
Ele vinha agora para aqui todos os dias, ficava ali junto ao amigo que estava à porta da loja mesmo ao lado esquerdo de quem sai como eu saí, do Beco da Felicidade.

Sorriu para mim, certo de que não lhe iria roubar a alma. Que rosto fantástico
Copyright António Conceição Júnior

Despedi-me dele com um aperto de mão, e com a promessa de que sim, que certamente o procuraria quando voltasse à Rua, agora também dos Encontros.

Retornei então ao mesmo trajecto em direcção à saída, isto é, à Rua da Alfândega que me levaria à Rua Dr. Soares e, assim, ao Largo do Senado. 
Eis senão quando, à minha direita, surge o Beco das Galinhas. 

O Beco das Galinhas com entrada pela Rua da Felicidade
Copyright António Conceição Júnior

No Beco das Galinhas terminavam os eufemismos. Desconfio que havia uma hierarquia no modo como os negócios do entretenimento se faziam, porém é apenas uma dedução:
A Rua da Felicidade patenteava-se ao público passante em geral, era a mais aberta e, consequentemente a mais cara, porque oferecia várias formas de prazer, a começar pela música, pelo vinho, pela comida e a terminar em discretas conversas. 
Depois, no Beco da Felicidade haveria eventualmente menos floreados. E, por fim, no Beco das Galinhas, a coisa era pura e crua, tanto mais que a contrastar com tantos ademanes e floreados, o termo galinha pelo menos em cantonense, é sinónimo de meretriz.
Ainda me lembro de ouvir soldados portugueses contarem das suas incursões ao Pátio das Galinhas e dos gastos do seu pré.

Hoje, apenas o vermelho ainda subsiste, ameaçado pelo verde da ignorância ou, sabe-se lá, do preconceito.
Por aí pairam os fantasmas das tocadoras de pi-pa (p'ei-p'á em cantonense) e de gerações de frequentadores.
Basta entrever o que tudo aquilo evoca, semelhando barcos de flores em terra.

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